20 de Outubro de 2004 O Vespertino de Reading CRÓNICA 37
Bhagavan Das no Yoga Place E2 - Fotografia de Rui Gonçalves

Bhagavan Das

A casa do Paulo, Edgar e Miguel (PE&M), em Brixton, ali mesmo ao lado do Brockwell Park, goza de um silêncio pela manhã que não é possível de se conseguir, mesmo com vidros duplos, no centro de Reading. E isso faz com que consigamos repousar muito mais profundamente quando lá dormimos, mesmo dormindo no chão, enrolados em sacos-cama e num espaço relativamente diminuto. Um luxo num dos centros de Londres, um dos centros do mundo. Obrigado Paulo, Edgar e Miguel.

E foi isso que aconteceu no sábado [16 de Outubro de 2004] de manhã. Dormimos até serem quase horas de almoçar. E fomos almoçar um pequeno- almoço inglês no Brockwell Hall no ponto mais alto de Brockwell Park. Estava um dia cinzento, pelo que não podemos desfrutar da esplanada, mas o interior desta casa, quase em ruínas, é também agradável. Não só pelo espaço mas pelas pessoas que o frequentam. E enquanto comíamos observávamos que lá estava.

Entrou um homem com três filhos e uma mulher com duas filhas e um filho. Durante algum tempo julgámos que seriam marido e mulher e que, tirando a mais velha, todos os outros cinco diferiam uns dos outros pouco menos que um ano. Achámos muito estranho como era possível ter cinco filhos no espaço de 4 anos, não havendo gémeos. Mas quando ela saiu percebemos que o homem também estava só. Bem! Só, é como quem diz, porque quando se está com três rapazes é impossível estar-se só.

Depois entrou um grupo de três deficientes adultos. Um deles até com uma idade avançada. Estavam acompanhados por uma assistente. Fizeram bem menos barulho que a trupe dos miúdos famintos do casal que não o era. Claro que estes miúdos chamaram a atenção de outros que por ali andavam e de repente entra o vocalista dos Stereo MCs à procura da filha. De aspecto, não andava muito longe do grupo de deficientes e por momentos tive dúvidas que seria mesmo ele, uma vez que estava sóbrio e com uma filha linda, de dois ou três anos. Mas quando fui buscar o café tive a certeza que era ele, porque mais ninguém tem um andar como o dele, que parece que está sempre sentado.

Fomos a pé até à estação de Brixton, mas antes ainda passámos na estação de Herne Hill, onde comprámos uma estátua para a nossa casa, cujo o peso na minha mochila fez com que no fim do dia estivesse a sofrer dos ombros. Pelo caminho ficaram as ruas de Brixton e a feira. Uma mistura de culturas que transforma Brixton numa matiz indescritível. Que ao contrário do que diz a minha colega Victoria C. não é um freakshow. Freakshow é Camden!

O nosso objectivo agora era Greenwich, no East End de Londres. O tal sítio onde passa o tal meridiano que em tempos dividiu a terra em dois, a parte positiva e negativa do tempo. Mas não era para ver o meridiano que lá queríamos ir, era para ver a aldeia. Mais uma dentro da grande cidade de Londres.

Mas antes de chegarmos à terra do meridiano ou ao meridiano da terra ainda parámos em Canary Wharf, uma zona em tudo semelhante ao Parque Expo em Lisboa. Esta em vez de ser recuperada para uma exposição mundial foi-o para a comemoração da passagem do milénio. É lá que está o Millennium Dome. Mas as semelhanças com o Parque Expo acabam quando se sai aos jardins. Ao contrário do resto de Londres ali os prédios têm muitos andares e começa-se a assemelhar à La Defense em Paris.

Mas, ali, como todos esses sítios, o único interesse está nas compras e não estava em modo de compras, fomos para Greenwich. Logo à chegada o Cutty Sark, o último dos sobreviventes dos grandes veleiros ingleses das campanhas do chá. O barco é majestoso embora não muito bonito e ficou para mais tarde. O nosso interesse estava no mercado, ali do outro lado daquela rua pintada de diferentes cores das lojas e cafés de Greenwich.

O mercado de Greenwich é muito parecido com o de Spitalfields, mas muito mais pequeno em tamanho e muito mais frequentado por turistas. Vê-se num instante e vale a pena. Aliás Greenwich é uma terrinha muito pitoresca. Por momentos esquece-se que se está numa grande cidade e somos transportados para uma pequena vila na margem do Tamisa.

Mas estava a ficar na hora de ir ver o Rei da World Music. O mítico de seu nome Bhagavan Das, nascido na Califórnia e de 59 anos. Nos anos 60 viajou para a India onde esteve seis anos, tornou-se um Yogi e renunciou à sua vida, tornando-se no primeiro pessoa a gravar um disco daquilo que, agora, se chama de World Music. O seu último disco resultou da colaboração com um dos elementos dos Beastie Boys.

Quando entrámos no Yoga Place E2 o ar estava carregado de fumo de incenso. Já lá estava uma dúzia de pessoas. Tirámos os sapatos à entrada, como é normal em todos os sítios do género e entrámos para a sala onde se iria realizar o concerto. Não era bem um concerto, mas sim um Kirtan, uma espécie de cantar ao desafio em que o músico canta um mantra e este é repetido pelo público consecutivamente.

Bhagavan Das entrou na sala cumprimentando todos os presentes do alto dos seus quase dois metros de altura. A barba chegava-lhe a meio da barriga, envergava um sarung laranja e turbante, a testa estava pintada de branco e trazia uns óculos vermelhos, que tirou assim que se sentou e agarrou a ektara, um instrumento de uma corda só e que ele toca apenas com um dedo.

Desde aí e até ao fim do kirtan, duas horas e tal depois, foi um experimentar de sensações que não vou descrever aqui, porque ainda pensam que ando metido em alguma espécie de seita religiosa ou a comer cogumelos mágicos. Mas cantou-se a Shiva, Vishnu, Ganesha e Krishna. Cantou-se a Shakti, a Divindade Mãe, que segundo ele, era celebrada nessa mesma altura por cerca de dois milhões de pessoas na India.

Bhagavan Das fez um intervalo em que nos falou da Divindade Mãe, falou-nos na necessidade de vivermos em uníssono com todo o mundo. Incitou-nos a sermos felizes e procurarmos o nosso caminho para a felicidade naquilo que gostamos. As palavras eram bonitas, mas por momentos a minha cabeça questionou se eu não estaria ali a pregar por coisas em que não acreditava. Não estava a participar num ritual religioso cujas divindades pouco ou nada me diziam? A maioria das orações que estava a cantar, eu nem sequer as conhecia e limitava-me a imitar o que ele dizia. Mas até que ponto estava a ser honesto comigo e com a cerimónia?

Mas depois pensei, que aquilo não era uma cerimónia religiosa. Não no sentido de uma missa ou uma oração tradicional. E se fosse? Fazia algum mal eu estar a pregar a uns Deuses que podiam fazer com que este mundo fosse melhor? Os Deuses não são invejosos. Os Deuses não podem ser invejosos. Eu posso cantar a estes Deuses como cantei a John Coltrane em São Francisco na Church of Saint John Will-I-Am Coltrane. É uma libertação, não é uma oração! E continuei a cantar e dançar.

Bhagavan Das é um mestre de Nada Yoga, uma linha de yoga que explora a natureza da percepção da realidade através dos sons. Para mim cantar numa aula de yoga, até à muito pouco tempo, parecia uma coisa de seita religiosa ou sem qualquer nexo. Mas a verdade é que desde que aqui estou que canto e danço nas aulas de yoga e acho muito libertador. E as vibrações produzidas pelo cantar contínuo de mantras produzem sensações de paz muito boas.

Foi isso que sentimos quando saímos do concerto. Apesar da zona onde está o Yoga Place não ser a mais aconselhável e àquela hora só nos apetecer fugir dali, a verdade é que a sensação de paz ficou e a satisfação de ter estado ali naquele momento tem crescido.

Ainda fomos a correr comer um Sushi ao Misato e fomos dormir em paz.

Canary Wharf - Fotografia de Cláudia Fernandes Cutty Sark - Composição de fotografias de Rui Gonçalves


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