32 CRÓNICA O Vespertino de Reading 6 de Outubro de 2004

Dois meses

Ontem [Terça-feira, 5 de Outubro de 2004] fez um ano desde que tenho Vinho do Porto a envelhecer num barril, em minha casa, em Portugal. Sexta-feira [8 de Outubro de 2004] faz dois meses desde que estou cá. Começo a sentir as primeiras saudades de casa. Saudades daquele cantinho a que posso chamar de meu. Aqui nada é meu, estou de passagem e os lugares já pouco têm de novo.

Adamastor - Fotografia de Rui Gonçalves

Por isso sexta-feira vamos passear até Edinburgh na Escócia. Vai ser um belo fim-de-semana de chuva, frio e inverno, mas espero que também muito aconchegante como um fim-de-semana de inverno pode ser. Procurar ver outros lugares! Lugares onde as pessoas dizem falar uma língua que supostamente conhecemos, mas que não percebemos. Se o inglês aqui da Inglaterra consegue ser, às vezes, muito difícil, na Irlanda era quase sempre difícil, na Escócia é supostamente imperceptível. Lá para o fim do mês pretendemos experimentar o de Gales. Depois digo-vos qual é o ranking.

Mas há coisas que me fazem pensar que se calhar aqui está-se melhor. Coisas como um artigo num jornal chileno sobre o nosso Portugal e que nos coloca muita atrás do resto da nova e velha Europa. Um artigo que diz que "para muchos es más importante el automóvil que conducen, el tipo de tarjeta de crédito que pueden lucir al pagar una cuenta o el modelo del teléfono celular, que la eficiencia de su gestión" e "todo esto va modelando una mentalidad que, a fin de cuentas, afecta al desarrollo de un país". E acaba com "Si un país "permite que un profesional liberal con dos casas y dos automóviles de lujo declare ingresos de 600 euros (738 dólares) por mes, año tras año, sin ser cuestionado en lo más mínimo por el fisco, y encima recibe un subsidio del Estado para ayudar a pagar el colegio privado de sus hijos, significa que el sistema no tiene ninguna moralidad". Onde vai parar este país? Valerá a pena voltar para um país que se está afundar?

Mas há coisas boas em Portugal, é preciso é ter as barbatanas prontas!

Hoje [Quarta-feira, 6 de Outubro de 2004], há pouco menos de uma hora recebi um telefonema, no telefone directo aqui da empresa, cujo número ninguém fora da empresa conhece. Um telefonema, de uma empresa de recrutamento, para saber se um dado tipo de uma dada outra empresa de software para telemóveis, me podia telefonar para saber se estava disponível para ser entrevistado, para uma vaga numa área que nunca trabalhei. A tipa da empresa de recrutamento sabia o meu nome (embora não o soubesse dizer e como é normal chamou-me Gonzales) e sabia a minha extensão. Ou seja, alguém aqui dentro deu os meus dados a alguma empresa de recrutamento e como eu estava sentado na baía de outro grupo, deve ter dito que eu trabalhava nessa área. Vamos a ver o que eles querem...

Na verdade as coisas aqui funcionam assim. Há tantos empregos que o difícil é estar desempregado. Mas para quem quer estar desempregado há subsídio de desemprego e até ajudas para pagar a casa e contas. Há cursos subsidiados e um desempregado pode andar seis meses a tirar cursos atrás de cursos. Mas ao contrário de Portugal, aqui quem frequenta os cursos não recebe dinheiro, mas paga menos. Como no domingo [3 de Outubro de 2004] que fomos fazer um curso de Kundalini Yoga em Londres, nós pagámos 25 libras e o Edgar, como desempregado, pagou 6. Mas há cursos de tudo e mais alguma coisa, estudar não implica ter que marrar ou saber matemática. Implica adquirir conhecimentos.

Mas não pensem que toda a gente é letrada. Porque há empregos a pedir o mínimo de literacia em computadores e digo-vos que o mínimo é saber usar o Windows e um rato. E há muita gente que não o tem, mas mesmo essas arranjam facilmente trabalho, nem que seja em limpezas ou armazéns a repor mercadoria. Como o Luís e a Cátia, que são licenciados em Engenharia Alimentar e trabalham cá. Querem voltar, mas não há empregos! E Portugal está a melhorar? Não é o que eu vejo! Nem onde trabalho...

E o que é que mudou em Portugal, desde aqui estou? Ainda se fala da colocação dos professores, do mesmo governo que não existe há anos e do presidente que os pós lá, mas que agora quer mudanças. De novo isto traz-me a um outro artigo, desta vez do Expresso de há cerca de um mês e da Clara Ferreira Alves, em que ela dizia que o país é um seca. Ela, como eu, esteve ausente do país durante uns tempos (apenas duas semanas) no Brasil. E quando voltou a Portugal achou que o país estava exactamente no mesmo sítio onde o tinha deixado. No mesmo lugar no tempo onde está há anos. As notícias eram as mesmas e as pessoas já nem se quer pensavam em mudar. Ela tinha voltado do Brasil onde as pessoas são alegres e vivem a alegria. Em Portugal vivemos as tristezas.

Aqui voltamos ao início da crónica. Se eu viesse para Inglaterra (onde o tempo não é tão mau como se diz) na verdade aqui nada é meu! Eu não sou de cá! Serei sempre um emigrante. Mesmo que saiba já conduzir pela esquerda e até já vá para o centro de Londres no Besouro, a verdade é que continuo a achar o facto anormal. Mesmo que já saiba que os bares fecham às 23:00, continuo a achar anormal. Mesmo que me habitue a comer sandes ao almoço, acho anormal.

As revoluções fazem-se de dentro, eu sei, e sei que pensei o mesmo quando voltei dos Estados Unidos. Uns meses depois senti-me impotente e só a tentar mudar um país sozinho. Desta vez não pretendo mudar toda uma nação, mas se conseguir mudar um português que seja já me vou sentir feliz. E vou-me mudar a mim, mudar a minha vida e o modo como a vejo. O processo de mudança já começou...



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