26 CRÓNICA O Vespertino de Reading 23 de Setembro de 2004

É muita coisa

Eram já quase duas da manhã [sexta-feira, 17 de Setembro de 2004] e não haviam autocarros dali para Brixton. Tínhamos que apanhar um qualquer que começasse por `N', de nocturno, até Clapham Junction e daí um outro `N'-qualquer para Brixton. Para voltar, da festa da Mary em Sands End (SW6), a casa do Paulo, Edgar e Miguel (SW2). Nem sabíamos muito bem onde estávamos, mas sabíamos para onde tínhamos que ir. Para a cama!

St. Luke's Church - Fotografia de Rui Gonçalves

Foi-nos dito que teríamos que retornar à rotunda do outro lado da ponte, onde tínhamos passado o Tamisa, para chegar à Townmead Road, onde era a casa da Mary. A ponte, olhando agora para o mapa, chama-se Wandsworth Bridge, e ficava a cerca de 20 minutos a pé. Já na rotunda, depois da ponte, havia que identificar qual a direcção pretendida. O que vale aqui as coisas estão mais ou menos bem assinaladas, pelo menos para os automobilistas, e foi fácil ver para onde era Clapham Junction e 100 metros à frente a paragem do N44. Faltavam 20 minutos para o próximo.

Estávamos sós, cansados e com um copo a mais numa zona desconhecida da enorme Londres. Algures entre Chelsea e Brixton, muito perto do Tamisa. Mas nem sequer sabíamos onde estávamos. Levantei a mão a um taxi que passava, porque já pensava que não valia a pena esperar mais pelo N44. Nem ligou... A zona devia ser mesmo má para ele não parar. Chegou o N44!

Entrámos, se não passasse em Clapham Junction, pelo menos deixava-nos mais próximos. Não passava lá, mas deixou-nos no cruzamento abaixo e disse-nos onde apanhar o próximo `N' para lá chegar. Atravessámos a rua e no semáforo estava um Lorry, que não era `N' mas que dizia passar em Clapham Junction. Nem olhei qual o destino, mas bati à porta e deixaram-nos entrar.

Quando chegámos a Clapham Junction, onde tínhamos comprado as Super Bock, sabia onde estava. "Desculpe, isto é Clapham Junction? Como posso ir para Brixton?" O tipo aponta para o chão e diz "Seguindo neste autocarro!". Que luxo, o 345 também ia para Brixton e nem era preciso passar pela casa da partida e receber dois contos.

Que bem tínhamos feito em ter comprado o Day Travelcard de Reading para Londres, que é um bilhete de comboio de ida e volta mais o passe para todas as zonas de Londres e que custa menos que o bilhete de ida mais o passe da zona 1 e 2. Começo a aprender os truques locais.

Quando chegámos a Brixton, o edifício da Cãmara Municipal de Lambeth e sua grande torre iluminada passou a ser a referência. Ainda faltavam 20 minutos a pé, ou uns minutos de espera pelo autocarro, que nem sabíamos qual era, ali ao frio e rodeados de marginais por todo o lado. Decidimos ir a pé. O ar fresco na cara sabia bem. A Cláudia repetiu algumas vezes "agora só faltava sermos assaltados" ou "ainda vamos ser roubados", quando passa por nós um negro e nos diz, bem alto, "marijuana?". Foi o mais próximo que estivemos de ser assaltados, isto às 3h da manhã em Brixton, bem no sul da profunda Londres.

Acordar no dia seguinte [sábado, 18 de Setembro de 2004] pareceu uma aventura mais complicada que chegar a casa na noite anterior. Parece que as bebidas que o argentino andou a misturar eram imiscíveis e algumas delas na sua forma original reagiam com as paredes do estômago como a saliva dos Aliens em qualquer superfície. Além disso, algumas eram mais voláteis e subiram até ao cérebro dando a sensação que este flutuava numa solução muito pouco espessa pelo que abanava bastante. A chamada ressaca... Nada que não se cure com uma dose substancial de gordura e café. Um pequeno-almoço inglês numa esplanada ao sol e estávamos prontos para de novo enfrentarmos o mundo.

O Miguel, o único anfitrião lá da casa que ainda não conhecíamos, ficou surpreso de nos ver. Ninguém o tinha avisado da nossa visita. Mas foi simpático em nos apontar um sítio porreiro para tomarmos o pequeno-almoço/almoço. No Brockwell Park mesmo ao fundo da rua, e subindo a ladeira. Era mesmo aquilo que precisávamos.

Passeámos por Brixton até que nos decidíssemos a ir a algum lado. Já que estávamos ali, havia que ver o mercado e toda aquela influência africana e das Caraíbas. É como o Sardo dizia, a carne pendurada no talho à face da estrada e ninguém se preocupa muito com a higiene. Ainda vimos uma peixaria cuja dona parecia portuguesa (Stockwell não é muito longe) e vendia Chincharros (Sim! Era assim que estava escrito).

Rumámos a Covent Garden, não pelo sítio em si, mas porque era a estação mais próxima de Neal's Yard, onde decidimos ir passear. Sem pressas e ver umas coisas diferentes de Londres. Neal's Yard, onde eu estive na semana anterior, é um canto perdido, mesmo no centro de Londres, onde é possível comer comida biológica, comprar produtos naturais e desfrutar uma conversa numa esplanada sem confusões. Mas começou a chover.

Muito devagar fomos percorrendo os espaços e vendo o que nos interessava. Parámos no Neal's Yard Cafe para um chá, um batido e uma fatia de bolo de chocolate (que quase ficou mais caro que o almoço). Espairecemos por ali.

Depois de uma ronda pela Londres natural, passámos à Londres das compras e fomos até à King's Road em Chelsea, uma das zonas mais ricas da cidade. Foi fácil de ver, pela quantidade de BMWs, que estávamos numa outra Londres, muito diferente de Brixton. Mas pouco mais interessante que Covent Garden, pelo menos àquela hora do dia e com a falta de cafeína no sangue. De qualquer maneira as lojas estavam a fechar e tínhamos que voltar para ir jantar com os portugas em Stockwell.

Do jantar não vou falar muito, porque todos sabemos como são os jantares portugueses. Aqui, a única diferença foi entrar num café igual a qualquer confeitaria `venezuelana' em Aveiro (aliás montada pela Aveirotel) e no restaurante (ao lado) comer dobrada, beber fino Sagres e ver o Futebol Clube do Porto (empatar) na televisão. E subitamente, num espécie de tele-transporte, passar de um local qualquer em Londres, para um normal café/restaurante em Portugal.

O melhor foi falar com pessoas que não conhecia e que a única afinidade (naquele momento) era termos feito o Programa Contacto do ICEP, ou sermos amigos ou familiar de alguém que o fez. Foi bom perceber que há bem mais afinidades, com alguns, do que só isso. E foi bom ouvir as aventuras dos outros para avaliar as nossas.

Como uma jovem que lá estava e que era assistente social em Edgware (lembram-se de vos ter falado numa feira que eram só muçulmanos, na semana passada?). As histórias que ela contava eram no mínimo saídas de um filme cómico ou de um de terror. Como o facto de num inquérito britânico uma boa mãe ser considerada aquela que comprava comida pré- confeccionada e a colocava no microondas. Ou seja, aquela que não levava os filhos ao fast-food. Imaginam como anda esta sociedade?

Dali ainda fomos a um bar em frente à estação do tube (como o metro é carinhosamente chamado) de Clapham North, beber um copo. O Luís, e a mulher Cátia, que vivem perto de Oxford, o Miguel e o Miguel Braga, o David, amigo do Miguel, eu e a Cláudia. O David estava há uma semana em Londres, para onde se tinha mudado para a Caixa Geral de Depósitos, deixando o emprego que tinha em Portugal na Price Waterhouse Coopers. Tem lógica? Mudar de uma empresa estrangeira em Portugal para uma empresa portuguesa no estrangeiro? Que interessa? É uma experiência de vida.

Novamente deitámo-nos tarde, segundo os standards ingleses. Mas o acordar [domingo, 19 de Setembro de 2004] foi pacífico. Eu ia escrever `amanhecer' mas como acordámos à uma da tarde não é muito correcto. Decidimos só ir dar uma vista de olhos a Camden e depois passear de barco no Tamisa e eventualmente ir a Tate Gallery. Um programa ambicioso para quem acorda tarde, pelo que nem conseguimos passar do primeiro objectivo.

É impossível ver Camden numa tarde. É humanamente impossível, quer seja porque há muita coisa para ver, quer seja porque o nosso corpo não aguenta a quantidade de espaço a percorrer e a quantidade de informação a absorver. Camden é um mundo! E nem sequer vou tentar descrever agora e aqui a dimensão da coisa, porque sei que não sou capaz neste momento. Fica para uma próxima crónica.

Chegámos a Reading quase às 11h da noite, estoirados mas felizes porque foi um bom fim-de-semana, passado com pessoas interessantes em sítios interessantes. Mas ainda estávamos confusos com tanta coisa que ainda tínhamos que arrumar no nosso cérebro. Acho que vamos andar assim até voltarmos a casa.



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