13 de Setembro de 2004 O Vespertino de Reading CRÓNICA 21
Camden - Composição de fotografias de Rui Gonçalves

9/11

Este fim-de-semana fui para Londres. Doem-me as pernas desde o dedo grande do pé até ao pescoço. Acho que andei a pé mais de 25 quilómetros durante todo o fim-de-semana. Tenho a certeza que fiz mais que de 20.

Tudo começou na sexta-feira [10 de Setembro de 2004]. Aliás começou para aí a meio da semana, com os primeiros contactos com o Miguel Braga para ficar lá em casa dele. Mas na verdade só na sexta-feira é que fui para Londres. Apanhei o comboio e em meia-hora estava em Paddington. E em 45m estava no centro de Londres. Mas o que mais me surpreendeu foi que se eu comprar um bilhete de ida e volta para Londres, de Reading, pago £11.40 e se comprar um bilhete só de ida pago menos £0.10. E acho que o bilhete de ida e volta inclui o passe do metro de um dia para as zonas 1 a 6 (eu comprei só para a zona 1 e 2 e paguei mais £4.50). Ou seja, compensa mais comprar o bilhete ida e volta do que comprar o bilhete só de ida mais o bilhete do metro. A lógica inglesa baralha-me...

Fui directo a Holborn e como combinado às 20:00 estava à porta da estação à espera do Miguel. Aqui começa a aventura! O Miguel é um jovem (de 30 e poucos) que fez o Programa Contacto (C3) ao mesmo tempo que eu (na Califórnia) só que ele fê-lo na Alemanha. Em muitas coisas faz-me lembrar o meu irmão, principalmente na aparente obsessão que tem pelo trabalho. Ah! Tem o curso de direito mas trabalha numa consultora. Passa quase a semana toda na Alemanha e em França e ao fim-de-semana dorme.

Não vos vou contar muito sobre os peculiares aspectos do lugar onde mora porque lhe prometi que não o fazia. Mas vou-vos dizer que arrendou um quarto numa das melhores zonas da cidade, mesmo ao lado do hotel onde eu e a Cláudia passámos a lua-de-mel há 7 anos (Royal National em Russell Square). Vive com um inglês que para poder pagar as dívidas de jogo, arrendou os quartos da casa e vive no que em tempos foi a sala de estar. Aliás sala de estar é mesmo o nome certo, porque ele só está na sala e vê televisão o dia todo (como a Royle Family). O senhorio é casado com uma filipina muito simpática, de seu nome Marilú, que deseja voltar a casa e é como uma escrava dele. Uma história muito complicada, hilariante e quase saída de uma série cómica inglesa de sábado à noite.

Eu fiquei a dormir no quarto do outro inquilino que no entretanto estava para casa de fim-de-semana. Um quarto bem grande para o que é normal aqui na terra do Portugal-dos-pequeninos. Só que como sempre as paredes estão pintadas de uma cor e há marcas de arranjos por todo o lado, mas pintado noutro tom. Tem uma lareira na parede que não é lareira, mas que serviu em tempos para um aquecedor, apesar de ter radiador de aquecimento central. E uma janela. Uma cama, claro! E tudo o resto espalhado pelo quarto, porque nunca há arrumação possível para os ingleses. Para um povo tão organizado é surpreendente ver as casas deles.

Tanto eu como o Miguel estávamos estoirados na sexta, mas ainda fomos a pé até Covent Garden e Leicester Square. Surpreendentemente acho que conheço melhor Londres que o Miguel e definitivamente ele tem o sentido de orientação de uma galinha. Mas conhece uns sítios porreiros para comer. Assim fomos a um italiano mesmo em Leicester Square que por sinal serviu bastante bem. Não me lembro do nome, mas fica mesmo em frente ao Hippodrome.

Enquanto o Miguel telefonava à namorada (Catarina) aproveitei para observar quem passava. Devo ter visto três ingleses. Londres não é Inglaterra. Londres é uma cidade do mundo o que começa a torná-la numa cidade sem identidade. Pelo menos ali no centro. É muito engraçado ver aquela multidão e a mistura de tribos e raças, mas a verdadeira Londres está perdida nas ruas estreitas que saem dali.

Fomos dormir! Fez 3 anos e uma semana que trabalho na NEC! Um recorde pessoal!

Sábado [11 de Setembro de 2004] foi um dia dedicado à marcha de meio fundo. Com o cansaço esqueci-me de desligar o despertador e às 7:30 estava acordado. Sabia que não voltaria a adormecer e resolvi sair. O objectivo era Portobello Road Market. Mas esbarrei na porta fechada. Por sorte o senhorio acordou comigo e abriu-a, se não já pensava sentar-me a ler até que o fizesse.

É impressionante como nada no centro abre antes das 10h. Em Nottingham já estava tudo aberto, mas pela quantidade de turistas que àquela hora já lá andava, convinha. Depois foi só ver, uma barraca que vende relógios antigos, russos, jarras de vidro, espanhóis, jóias antigas, italianos, máquinas fotográficas antigas, alemães, móveis, espanhóis, bugigangas, italianos, alemães, espanhóis, russos, italianos, espanhóis, franceses, alemães, espanhóis, italianos, brasileiros, espanhóis, italianos, italianos, italianos, italianos... Uma barraca que vende Natas Cake? "Bolo de Arroz" da Alentejano Patisserie? Comi uma nata mas nem perguntei se a senhora era portuguesa.

No entretanto passei na casa onde em tempos viveu o George Orwell, um dos inventores do Big Brother. Se ele visse como o mundo está dez anos depois do que ele imaginou.

Acabam as antiguidades e começam as hortaliças. Da última vez que ali tinha estado (com a Cláudia há dois anos) não tinha passado das couves, mas desta vez vi um sinal que indicava que a feira continuava para além das cenouras e dos agriões. Flea Market (um género de feira da Vandoma – para quem é do norte – ou Ladra – para quem é do sul). Numa banca um tipo discutia com outro quais os melhores filmes pornográficos que tinha e quais as actrizes que entravam naqueles que ali estavam à venda. Uma conversa de entendidos sobre filmes com nomes tão indiscritíveis que o mais simpático era "Virgens Latinas". Mas a feira tinha de tudo, desde CDs de dança a roupa hippie em barracas especializadas.

Ainda segui a feira até ao fim e de virei para Golborne Road onde uns antiquários vendiam na rua umas velharias. De repente pareceu-me ouvir "...amanhã...". Ahm? Mais à frente alguém diz "... hoje acordei às 8 da manhã". Olho para o outro lado da rua e vejo "O'Porto Café". Atravesso para ver... O dono tem um bigode lindo! Mas as empregadas devem ser de leste. Do outro lado da rua "Lisboa Patisserie" e a "Lisboa Papelaria & Retrosaria" (sim em português). E um antiquário chamado "Les Couilles du Chien"... Será que se eu abrisse aqui um antiquário chamado "Os Tomates do Cão" alguém me comprava alguma coisa?

Mais à frente havia um restaurante madeirense chamada "Casa Santana" que tinha no menu Sardinhas, Bacalhau com todos e mais algumas coisas que fazia salivar qualquer português, mas ainda não tinha fome e ainda não tenho assim tantas saudades. Segui para Camden Market.

Havia uma maneira bastante mais fácil de chegar a Camden (tipo apanhar o metro), mas eu decidi seguir o canal fluvial tendo em mente que em Camden existe uma eclusa (Camden Lock), uma vez que aquela zona já estava fora do mapa que eu tinha. Parti à aventura!

No início as vistas nem eram nada de mais. Bastantes prédios, o que nem é normal por estes lados, mas quando me comecei a aproximar de Paddington a paisagem começou a mudar. De repente estava num entroncamento de canais chamado Little Venice, povoado de característicos barcos-casa pintados em cores vistosas e com flores por todo o lado. Há pessoas que vivem nos barcos e há outras que têm permissão de aportar durante 14 dias. Deve haver gente a passear pelos canais o ano inteiro. Se tivesse carta...

De repente o canal entrou por um túnel que eu não podia atravessar e dou comigo no meio de uma outra feira (Church Street Market). Ainda nem sabia onde estava quando pára ao meu lado uma limousine Mercedes, não muito grande apenas com o dobro do tamanho de um carro normal. E uma muçulmana toda vestida de preto apenas com os olhos à vista abre a mala e tira um saco de plástico. Por coincidência, a mulher entrou na feira mesmo à minha frente. Debaixo do vestido islâmico a mulher usava distintivamente um vestido vermelho berrante. Ao andar via-se surgir o outro vestido, assim como os chinelos Snickers.

A mulher parou numa barraca de venda de sapatos e começou a protestar com o homem porque este lhe tinha vendido umas sandálias cujo o par não correspondia. Supostamente uma mulher muçulmana não pode mostrar nenhuma parte do corpo excepto as mãos e a cara, para que ela queria as sandálias? E porque é que usa um vestido vermelho se depois tem que usar o outro negro a tapar? É só para usar dentro de casa no quarto com o marido?

Nessa feira a mulher que mais mostrava o corpo era um transexual. De resto a maioria das mulheres eram muçulmanas e árabes mas também haviam algumas muçulmanas africanas. No reflexo num espelho vi um homem branco, era eu... Acho que era melhor sair dali antes que começassem a pensar que eu andava a querer alguma coisa com as mulheres (todas tapadas) deles.

Quando entrei no Regent's Park foi um alívio. Estava quase a chegar e haviam sombras. Já estava quase na hora de almoço e começava a ficar calor. Dali até Camden Lock foi um instante, sempre ao lado do canal e com vistas muito bonitas. Passa-se ao lado do Zoo e até dá para ver umas cabras cornudas e uns pássaros. Mas o melhor é um restaurante de três andares que existe no canal e que é um barco. E umas rampas que eram usadas para salvar os cavalos que caiam ao canal assustados com a passagem do comboio? Nem as vi, mas a história está lá...

Às 12h recebo uma mensagem do Miguel a dizer que tinha acordado, que em 50m estava pronto e que ia ter comigo a Camden Town. Dei uma volta por Camden Lock Market e Camden Stables Market, mas a quantidade de informação e a multidão estava-me a fazer confusão. Comprei qualquer coisa para comer (tanto faz, porque ali sabe tudo ao mesmo) e sentei- me nas escadas a comer. De repente senta-se um casal ao meu lado e ela pergunta-lhe a ele "Está bom?". Eu olhei e ele notou que eu tinha percebido. Uns minutos mais tarde perguntei (em português) donde eram, o que resultou numa gargalhada dele, porque ia fazer o mesmo.

Por coincidência ele está destacado em Newbury (aqui ao lado de Reading) na Vodafone por 6 meses e também é Engenheiro de Telcomunicações. O mundo é tão pequeno e as coincidências teimam em existir. Estava a ficar na hora do Miguel aparecer e tive que os deixar. Nem fiquei com o contacto mas o mais provável é que os volte a encontrar. São de perto de Almeirim (Casalinho, suponho).

14h e do Miguel nada. Sentei-me a ver um barco usar a eclusa. Um mecanismo interessante e bastante artesanal, bem conservado nos dias de hoje. As comportas são de madeira e devem ser bastante pesadas, mas como o centro de massa deve estar sobre o eixo são relativamente fáceis de virar. Mas não são fechadas pelo homem, a pressão da água a entrar na eclusa faz o seu trabalho. O homem simplesmente abre e fecha as entradas de água e o resto é mais ou menos natural. A água sobe e o barco segue caminho.

15h e do Miguel nada. Não uma mesa para beber uma cerveja. Mais uma volta por Camden Town e pelo Quay Market. Já nem consigo ver mais nada.

16h mando uma mensagem ao Miguel para saber o que se passava e a dizer que estava em Chalk Farm. Aproveitava e ia ver a vista de Londres de Primrose Hill (um raro sítio alto da cidade) e ia ao Triyoga (o maior centro de yoga da cidade). Se a vista de Primrose Hill foi uma desilusão, o Triyoga foi maior. Estava à espera de uma vista em que se visse alguma coisa mais que árvores e a torre de telecomunicações e estava à espera de algo mais do que uma recepção e um depósito de sapatos.

No entretanto o Miguel telefonou a dizer que tinha adormecido. Em 15m estava em Chalk Farm e voltamos a Camden Lock. É engraçado ver o Miguel fascinado com aquilo tudo (ou seria eu que já estava farto e cansado?). Para mim o melhor foi aquilo que o Miguel chamou de loja- discoteca - a Ciberdog. Imaginem que entram num outro mundo, numa outra dimensão onde a música de rave salta em altos décibeis das colunas e os empregados usam implantes e chips. Uns têm crista, outros a cabeça rapada ou cabelos de plástico. A roupa parece saída do filme "O quinto elemento" desenhada pelo Gaultier. T-shirts com displays, sacos com chips e muita loucura. Quando se sai de lá e se volta ao ambiente hippie/punk de Camden parece que voltámos atrás no tempo.

Tempo para beber uma (ou duas) cervejas e pôr a conversa em dia. A noite foi caindo e a conversa estava interessante, ali mesmo ao lado do canal em Camden, mas estava na hora de jantar. Apanhámos o metro e de repente estávamos em Queensway. O Miguel queria comprar um cartão telefónico e numa Cornershop aproveitei para saber as últimas do Zé Maria pela TV Guia. Tinha a Bola e o Record, mas o Expresso não.

Num restaurante indiano (tínhamos combinado que era noite de caril) ali mesmo e depois de termos comido um delicioso Roghan Josh e um Lamb Pasanda, acompanhado por um belo Nan de alho, somos confrontados com um empregado que sabe português. De seu nome Luís Rebelo é originário de Goa e é de uma simpatia que me faz querer voltar lá (além disso a comida é muito boa). Se forem para aqueles lados procurem o Standard Indian Restaurant (o nome é que podia ser melhor) em Westbourne Grove. Fiquei com mais vontade de ir a Goa pelo que ele me contou, mas o sonho dele é voltar a Portugal onde tem família em Queluz.

Um dia bem passado e com imensas referências portuguesas (é impressionante como aqui é difícil não encontrar portugueses e ainda hoje de manhã ouvi um "foda-se" logo à saída de casa). Mas estava na hora de descansar. Nem me lembrei que fazia três anos desde o ataque às torres gémeas em Nova Iorque.



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