20 CRÓNICA O Vespertino de Reading 9 de Setembro de 2004

Um mês

Algumas impressões do meu primeiro mês em terras de S. Majestade. A terra do Bed and Breakfast, do Fish and Chips e terra das rotundas e filas de trânsito.

Da fama que a Inglaterra tem de ter muito poucas horas de sol garanto que ainda não vi muito. Tirando os primeiros dias e até têm estado uns dias fantásticos, às vezes até insuportáveis, pois a humidade é muita. O sol por estas paragens nunca está muito acima do horizonte o que dificulta em muito a visão para quem não trouxe os óculos de sol, como eu, convencido que não iria precisar. Falamos disto daqui a umas semanas quando os dias começarem a ser mais curtos, porque por agora ainda são maiores do que em Portugal. Ah! E o pôr-do-sol é um pouco mais lento e mais longo.

Reading Gaol - Fotografia de Rui Gonçalves

Se das outras vezes passei imenso tempo em Londres, desta vez ainda nem lá pus os pés (talvez este fim-de-semana). Tenho passado a maioria do tempo na Inglaterra rural e balnear. E tenho gostado. A Inglaterra é um país bonito, um pouco monótono é verdade (mas não tanto como França) mas muito verde e cheio de fugas à civilização, embora sempre com a presença humana bem vincada. Ainda não vi nenhum lugar em que a presença humana não seja notada, mas pode ser que haja um Gerês por aqui.

O mais surpreendente é a essência de metrópole patente, principalmente, nas cidades. Embora as cidades comecem a parecer todas iguais (as tais Clones) a verdade é que se consegue ver seres de todas as nacionalidades da Commonwealth, da Europa Continental, da longínqua Ásia e até alguns extraterrestres (juro que já vi seres que não são deste planeta). Muito semelhante ao que se via nos Estados Unidos, mas aqui a mistura é maior. Apesar de se dizer que os Estados Unidos são um país livre a verdade é que há uma maior sectorização do que aqui. Mesmo na divisão de classes. Aqui não se vêm tantos mendigos e sem-abrigo como nos Estados Unidos.

Mas quando se vai para a Inglaterra rural a coisa muda de figura. Aí só se vêm os verdadeiros ingleses, brancos como o cal ou vermelhos que nem pimentos por causa do anormal sol que anda por estes lados. E cavalos, vacas, ovelhas e (pelos vistos) lamas.

O melhor de aqui estar é sem dúvida a escolha. O acesso a coisas que não é possível ter em Portugal. Embora com a Internet as coisas sejam mais fáceis agora do que há 10 anos, a verdade é que poder tocar e mexer nas coisas ao vivo tem muito mais interesse. E há coisas que não se podem comprar via Internet, como por exemplo as aulas de Yoga. Se se pode comprar os ingredientes e fazer cerveja em casa, a verdade é que no Yoga há que experimentar para se saber exactamente o que temos que sentir.

Não vou falar do trabalho porque essa parte pouco interessa à maioria, mas posso falar de alguns meus colegas que por aqui andam e do escritório para terem uma ideia de como estes tipos são (um bocadinho) diferentes de nós.

Para começar o guarda nocturno aqui do prédio lê Clive Barker. Alguém leria Clive Barker se trabalhasse à noite? Só se for para o manter acordado com medo. Além disso em Portugal um guarda nocturno se souber ler, lê a bola e vê televisão. Por falar em televisão, já repararam que em Portugal todos os cafés e bares têm pelo menos uma televisão e sempre ligada? Conseguem imaginar um pub com televisão. Pois! Aqui a televisão é para estar em casa. Tirando nos bares mais modernos onde há sempre um jogo de futebol na telly.

Mas voltemos aqui ao escritório. No outro dia vinha a subir as escadas e à minha frente vinha uma loira alta. Como homem olhei (desinteressadamente) para o corpo da beldade. Reparei que o rabo era esquisito. Feio. Parecia um rabo de homem. Quando chegou ao fim do lanço de escadas e se virou reparei que afinal ela era a Kate, aquela que há poucos meses era o Keith.

A mesma personagem há dias estava cá com os filhos, que são dois e devem ter entre os 4 e 7 anos. Deve ser muito estranho para aquelas crianças aperceberem-se que de um momento para o outro passaram a ter duas mães. Eu não condeno, mas acho perturbador numa sociedade como a nossa. E não sou o único. Estes ingleses apesar de muito abertos e permissivos com estas coisas por vezes têm dificuldades em aceitar estas mudanças de atitude por parte de uma pessoa que passa de homem a mulher histérica. As conversas de corredor sobre a personagem são sempre muito engraçadas.

Mas para verem como eles aceitam bem estas coisas, vejam o caso da Nadia Almada, a vencedora do Big Brother 5 aqui no Reino Unido. Uma beldade nascida na Ribeira Brava na Madeira com o nome de Jorge. É transexual e vive há oito anos por terras de S. Majestade, porque na Madeira não aceitavam a sua maneira afeminada de ser. O pai, numa entrevista à televisão, disse que sempre quis ter uma filha e que esta, agora, finalmente lhe tornou o sonho em realidade. A Nadia agora quer gravar um disco e quer arranjar um marido com quem partilhar o prémio do Big Brother. Se calhar ainda lhe acontece o mesmo que o Zé Maria...

Falando de novo dos meus colegas, o meu vizinho John P. parece o Ben, filho do Dr. Katz (Professional Therapist) – uma série de desenho animado que costuma dar na SIC Radical – fala num tom monocórdico e sem emoção como se todo e qualquer assunto abordado por ele fosse desinteressante ou indiferente. E digo-vos que é um tipo que "sabe" e fala de muitos assuntos, o que já lhe vale a alcunha de "story" aqui no escritório. Anda a comprar uma casa no sul de Espanha (em Almeria) e acho que ninguém aqui na empresa ainda conseguiu escapar a ver o panfleto pelo menos duas vezes. Namora com uma espanhola.

O outro meu vizinho Steve W. é um fumador nato. Sim! Nato, porque deve ter nascido a fumar. Se não nasceu de cigarro na boca, disfarça mal, porque pelo número de vezes que sai para fumar dá a entender que os cigarros são a única coisa que o prendem à vida. É um tipo fixe. Estava comigo em Paris quando a guerra do Iraque começou.

Depois há a Julie T. que é a chefe dos outros dois, mas que aparenta ser mais destravada que eles. Já sabe dizer "Bom Dia" e faz o favor de mo dizer todos os dias. Anda muito bem de bicicleta e tem uma Marin de suspensão total e só por isso já subiu uns largos pontos na minha consideração (para quem não se lembra em vivia em Marin nos tempos das Crónicas da Califórnia).

E há o Alex "Frodo" G. que ainda não percebi se é um Hobbit, mas não parece apesar de não lhe ter visto os pés, mas pela altura dele. Porém usa um anel que tenho que a impressão que foi roubado ao Gollum. Além disso é tão vaidoso que às vezes tenho a impressão que as portas são estreitas para ele, apesar de ter ficado vermelho de embaraço quando, ontem, lhe deram o certificado de 5 anos de serviço da empresa. Normalmente compra as bicicletas usadas do Phil B.

O Tong Y. que é um personagem único. Chinês, fala tão baixo e com um sotaque tão cerrado que só se percebe quando ele escreve. Vem todos os dias de bicicleta. Uma bicicleta de estrada com quadro de mulher uns dois números abaixo do dele. Mesmo assim o selim está colocado no mínimo da altura o que faz com que quando ele pedala os joelhos subam acima da linha da cintura. Uma figura única, com o seu raro cabelo ao vento. Esteve no Japão na mesma altura que eu, da última vez. Acho que falámos duas vezes apesar de estarmos na mesma sala 14h por dia durante duas semanas.

E o Andrew C.? Lembram-se do Bucha e o Estica? Pois ele é o estica. Parece uma dactilógrafa a escrever. Nunca vi ninguém a escrever tão rápido como ele. Aliás o teclado dele é tão barulhento que é impossível não perceber quando é que ele não está, porque quando está, está a escrever, o que se ouve. Consta que bebe vodka e joga as cartas como o Boris Yeltsin.

Há ainda o Steven W. que tem uma mancha na cara que lhe dá um ar de Serial Killer e que cada vez que passa aqui na minha baía olha como se eu estivesse marcado para ser a sua próxima vítima. Porém à hora de almoço descalça-se e estica-se no sofá da cantina a ler aqueles livros de histórias de espiões e ladrões. Se calhar é aí que se inspira para os seu maquiavélicos crimes.

Ainda há o Julian P. que parece um judeu ortodoxo mas que se pega à pancada com o vizinho do lado ou o Mark R. que costa já fez várias curas por causa do ecstasy e mesmo assim encharca-se de cerveja sempre que sai à noite. Ou o Kiv G. que parece saído do Matrix ou mesmo a Sarah M. que parece que saiu de um convento. Ou o Jason N. que resolveu deixar crescer o cabelo e parece um dos Boney M branco.

A lista é infindável! Os personagens multiplicam-se, mas o guião não muda muito.



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