2 de Setembro de 2004 O Vespertino de Reading CRÓNICA 13
Dingle - Fotografia de Cláudia Fernandes

Irlanda IV - Killarney

[Quarta-feira, 25 de Agosto de 2004 – 21:51] Caragh Restaurant, Killarney

"Ufa! Finalmente sentado à mesa. Se ontem vi muita coisa bonita, hoje fiz muitos quilómetros. Fizemos, eu, a Cláudia e o Besouro. Só parámos em Galway e nos Cliffs de Moher. Se o primeiro sítio é uma cidade cheia de vida e lojas, o segundo é se calhar a maior atracção da Irlanda. Camionetas de estrangeiros e muito vento. Depois foram quilómetros até aqui chegar ao lado de uma pint de Guinness."

Este foi provavelmente o dia em que mais quilómetros fizemos (tirando as ligações no Reino Unido). Desde Roundstone em Connemara a Killarney no Kerry devemos ter feito cerca de 300 quilómetros. O que não parece muito mas atendendo ao tipo de estradas que existem na Irlanda foi muito.

Num mapa da Irlanda as estradas estão marcadas por cores, como as pistas de Ski numa estância. As azuis são auto-estradas (uns 80 quilómetros delas), as verdes são as estradas nacionais mais fáceis, seguidas das vermelhas que são sofríveis e depois há as pretas (como no Ski) que são um terror (apesar de uma das estradas mais bonitas que fiz estar marcada a preto entre Clifden e Roundstone). A Irlanda fica muito a dever no que toca a estradas, também com 40% da população a viver em Dublin para que interessa fazer estradas no resto do país (não é para aí que estamos a caminhar em Portugal, também?).

A estrada que leva aos Cliffs de Moher é uma vermelha, que equivale a uma estrada municipal em Portugal, sem bermas e mal asfaltada. Agora imaginem uma estrada dessas, com largura suficiente para dois carros se cruzarem a custo, carregada de autocarros de turistas conduzidos por irlandeses sem contemplações e prontos a levar o máximo de espelhos que puderem. O do Besouro não levaram mas cheguei a temer que o fizessem.

Há que referir o Burren (se não o fizesse o João matava-me) que fica entre Galway e os Cliffs de Moher e que é uma zona de calcário. Digamos que quem conhece bem a Serra de Aires e Candeeiros não fica surpreendido com a paisagem, mas é uma sequência de montanhas brancas (mais cinzentas por causa da proximidade ao mar). E com estradas vermelhas sinuosas.

E tudo isto para ver os Penhascos de Moher, que são imponentes é verdade, mas cujas fotografias em qualquer guia fazem jus à sua dimensão. Aliás a maioria das fotografias dão uma melhor perspectiva porque com a ventania que estava era difícil aproximarmo-nos muito da berma. Mesmo assim haviam alguns malucos, como é costume. E turistas? Já falei nas camionetas deles?

Daí até Killarney foi o martírio. Principalmente em Limerick, a terceira cidade do país, que nem uma circular tem. Ou aliás tem uma estrada circular com rotundas de quilómetro a quilómetro e com três quilómetros de fila em cada uma. Uma beleza!

E Killarney? Como capital do County de Kerry e início do Ring of Kerry é tudo aquilo que não desejamos numas férias: uma cidade apinhada de turistas. O melhor foi o parque de campismo que era protegido do vento e como acampámos junto a um rio ouvíamos a água a correr a noite toda.

[Meia-hora depois]

"Comi um Homemade Sheppard's Pie e a Cláudia, Lamb. Estamos à espera de uns profiterols. Depois de uma pint de Guinness a vida parece muito mais alegre. Começo a perceber estes simpáticos irlandeses.

Ah! Alguns pormenores. A bandeira que se assemelha à portuguesa acho que é de um clube de futebol gaélico (uma versão irlandesa do rugby) da região do county de Mayo (Maigh Eo) [N.R. – É mesmo! A bandeira do Maigh Eo é metade verde, metade vermelha e tem o escudo do clube, em tons de amarelo, no centro].

Maigh Eo

Outra curiosidade é o facto de se pagar na caixa [N.R. – Como nas padarias dos emigrantes venezuelanos]. Mesmo nos restaurantes mais finos não se traz a conta à mesa, mas os clientes levantam-se para pagar."

[23:00] O'Connors, Killarney

"Acho que estão cá dois irlandeses. Na cidade inteira só se houve falar francês, italiano, espanhol e (claro) português (o nosso).

A caneta está a acabar e a Guinness a aquecer, por isso `Ciao!'."

[Quinta-feira, 26 de Agosto de 2004 – 15:00] John Benny's, Dingle

"Depois de alguns dias de sol o tempo voltou a trocar-nos as voltas e se não está muito frio, está a choviscar e um nevoeiro denso. Estamos na península de Dingle, num pub a tentar comer qualquer coisa. Isto continua cheio de turistas, mas a vila de Dingle é muito gira. Uma pitoresca terra de pescadores.

O parque onde dormimos (e onde vamos ficar mais duas noites) é muito sossegado. Dormi a ouvir um rio correr.

Há ciclistas por todo o lado. Vou marcar a Irlanda (assim como as ilhas Åland na Finlândia) como um destino a retornar de bicicleta. Assim como nas Åland aqui fala-se uma língua imperceptível, apesar de toda a gente falar inglês. O irlandês é quase tão difícil como o finlandês ou o sueco. Muitas vezes tenho a sensação de estar num país muito mais a norte [N.R. – Não só pela língua, mas pelas paisagem e o tempo].

Estamos a comer uma sopa que é feita com diferentes peixes (salmão principalmente), camarão, amêijoas e mexilhões cozidos em natas. A melhor coisa que já comi desde que aqui cheguei. Chama-se Creamy Seafood Chowder (Anraith Mara em irlandês). Agora vem uma sobremesa chamada Rhubarb Apple Crumble, aconselhada pelo empregado. Uma pasta (que acaba de chegar) feita com amêndoas, maçã e natas. Quente. Muito Bom!"

[21:15] Cozinha, White Bridge Camping, Killarney

"A caneta acabou. Tenho que escrever azul.

As minhas mãos cheiram a salmão fumado. Estamos a cozinhar aqui. Lá fora chove. Tem chovido o dia todo. Em toda a minha vida não me lembro de um tão mau dia de férias. A Irlanda é linda mas com este tempo as coisas tornam-se difíceis de ser apreciadas. Esperemos por um melhor dia amanhã.

Dingle e a sua península é muito bonita, mas Connemara continua a ser o que mais me surpreendeu aqui. A Cláudia diz que Dingle lhe pareceu muito com os Açores, só que em vez de ovelhas por lá há imensas vacas. E menos gente (nos Açores), mas menos praias de areia branca.

Passar na Connor Pass a chover torrencialmente e com ventos muito fortes, foi quase tão impressionante como ver as Yosemite Falls sem água. A diferença é que aqui não há ursos (animais) mas há chuva. O caminho mais alto da Irlanda (a 400m), num estreito e não conseguir ver mais que 5m à frente é como ir a Roma e não ver o Papa.

Mas pensemos noutras coisas. Estamos cercados de alemães que falam alto e francesas que parecem lésbicas (não são). É pena que as pessoas não comuniquem mais, mas se amanhã cá estivermos se calhar é diferente.

Bebemos uma garrafa de Mondeville Chardonnay 2003, francês. Não vai ficar na minha memória mas neste momento soube muito bem."

[22:30] Já na tenda.

"Estes dias de chuva obrigam a ter alguma criatividade para serem passados num país estranho. Em casa era fácil. Ou ligávamos a televisão, ou acendíamos a lareira ou acedíamos à Internet. Aqui lê- se ou observam-se os estranhos. Eu escrevo. Não me apetece ler.

Penso em Reading e como deve estar caótica com o festival. O Freddy mandou-me uma mensagem a dizer que a fila de carros já chagava à NEC (5km do recinto) e ainda falta um dia.

Penso no calor que está em Portugal. Procuro não ter saudades. É difícil.

Hoje decidimos ir em Outubro para Goa. Temos que procurar destinos que nos surpreendam. A Irlanda é linda mas é Europa. Não é tão diferente de casa como isso. As viagens que mais me surpreenderam ultimamente foram as que fiz a S. Tomé e ao Japão.

Ainda queria `falar' do milagre irlandês mas acabaram as pilhas [N.R. – da lanterna].

Até amanhã!"

Connor Pass - Fotografia de Cláudia Fernandes Cliffs de Moher - Fotografia de Cláudia Fernandes


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