10 CRÓNICA O Vespertino de Reading 31 de Agosto de 2004

Irlanda I: Jampa Ling

De volta depois de uma semana de férias na Irlanda (passámos em Gales e atravessámos metade da Inglaterra, mas foi quase sem parar). Vou tentar contar-vos como foi, usando os apontamentos e pensamentos que fui escrevendo durante a viagem no meu Moleskine (entre aspas) e no blog alternando com descrições e comentários feitos agora, enquanto escrevo isto. Também encontrarão muitas [N.R. - Nota da Redacção] que aparecerão sempre que ache necessário.

Altar em Jampa Ling - Fotografia de Origem Desconhecida

[21 de Agosto de 2004 - 16:00] Ulysses (Irish Ferries)

"Saímos de Reading muito cedo, mas com a quantidade de rotundas e obras que existem por estes lados foi-nos impossível não chegar ao ferry atrasados. Aquilo que no ViaMichelin era feito em 4:30 demorou cerca de 6:10 (com uma paragem de 30m para ir à casa-de-banho e comer qualquer coisa).

Desde umas infidáveis filas em Birmingham às 1639 rotundas (nunca mais digo que S. João da Madeira tem muitas rotundas) tudo serviu para nos atrasar. Incluindo uma ou duas saídas em entroncamentos errados. Acerca das rotundas, é extraordinário como os ingleses e os franceses não se gostam, mas quanto mais os conheço mais os acho parecidos. Até no número de rotundas.

Mas chegámos a tempo. Mesmo sendo o último carro (depois de nós só entrou um camião e fecharam as comportas) e apesar do Besouro ter que ficar estacionado no andar dos T.I.R. [N.R. - aqui chamam-se HGV – Heavy Goods Vehicle], aqui vamos nós para Dublin. As últimas 20 milhas até Holyhead foram feitas entre as 80 e 90 mph [N.R. - O limite é de 70 mph – 112 km/h - mas chegou a andar a 100 mph – 160 km/h – nunca pensei que um Micra andasse tão depressa]. Mesmo assim fomos ultrapassados por um carro com a bandeira portuguesa (e inglesa) pendurada nos vidros*. Também devia de vir atrasado.

* À saída do ferry descobri que a bandeira verde e vermelha não era da de Portugal. Ainda não descobri de que era [N.R. - Continuem a ler]."

[22:45] Camac Valley, Dublin

"Chegámos bem. Não fomos os últimos a sair do ferry, mas foi divertido ver a cara das pessoas nos outros carros ao verem o Besouro sair do meio dos camiões T.I.R. Viemos directos para o parque de campismo, mas deu para perceber que Dublin é muito bonita. Embora confusa para conduzir.

Fomos presenteados com um galego quase perfeito à chegada falado por um irlandês que disse lá [N.R. - Na Galiza] passar meio ano (o outro meio passa-o aqui). Era o recepcionista. Simpático! Aliás espanhóis aqui não faltam, sendo provavelmente a nação mais bem representada logo atrás da Itália. Mas há muitos holandeses, alemães e ingleses. E há um par de portugueses pelo menos (nós) e alguns franceses (como o nosso vizinho). Já falei galego e francês, mas não consigo apanhar nenhum do dialecto local.

O parque de campismo fica ao lado do Tagus Park cá da zona. Muito fino, não fosse o facto de mais uma vez se ouvir o barulho do "mar" (o barulho feito pelos carros na auto-estrada). Outro nosso vizinho é um inglês mudo que tem 4 filhos e que demorou montes de tempo a montar a sua tenda gigante (os ingleses têm sempre uma tenda de 5mx3m ou maior). Deu tempo de eu ir à vila mais próxima levantar euros (estes tipos são como o resto dos europeus e não usam libras) e comprar umas cervejas, fazer o jantar e lavar a loiça.

Está frio! Está frio lá fora, aqui dentro [N.R. - da tenda] está-se bem.

Estou triste. Não sei mas acho que tem a ver com o facto de estar muito cansado. Acho que tenho andado a adiar a minha vida. Vim para a Inglaterra para adiar algumas decisões na minha vida. [...] Gosto de trabalhar onde trabalho. Acho que nunca gostei tanto e detestei tanto trabalhar numa organização como esta. Acho-a capaz do melhor e do pior. Vir para Inglaterra foi uma maneira de fugir aos problemas que ninguém me conseguia resolver e ao mesmo tempo manter-me na organização. Duas semanas depois não sei ainda se fiz bem. Mas acho que não fiz mal. O futuro o dirá."

[22 de Agosto de 2004 - 16:45] Brú na Bóinne (Centro de Recepção)

"A Cristina acordou-nos à meia-noite e meia para me dar os parabéns. A nós e ao parque de campismo.

Esteve a chover a manhã toda e com vontade de ir à casa-de-banho e com o barulho da água a cair só potenciava mais a vontade. Aguentei até onde pude e fui pôr à prova os impermeáveis comprados para esta viagem. E que foram usados toda a manhã nas visitas que fizemos a Knowth e Newgrange, dois sítios arqueológicos em Brú na Bóinne, um dos locais mais visitados na Irlanda e património da humanidade."

Brú na Bóinne (que significa algo como "O palácio do outro mundo do rio da Deusa Vaca") é um conjunto de monumentos funerários do Neolítico dos quais apenas as passagens megalíticas de Knowth e Newgrange podem ser visitadas. A primeira tem a maior passagem funerária com cerca de 40m de comprimento e outra menor no lado oposto. A segunda é se calhar a mais conhecida por ter uma parede branca (quartzo) à volta e por estar virada a nascente, dando um espectáculo de luz no solstício de inverno quando a sala funerária fica iluminada. Basicamente são antas com cerca de 40m de comprimento que estão enterradas sobre montes artificiais. Os montes são de tal maneira grandes (80m de diâmetro) que em Knowth existia uma quinta no topo do mesmo em diferentes períodos da história. Também em Knowth existem alguns mais pequenos monumentos funerários satélites que rodeiam o principal.

O que é normal nestas coisas é a espectacularidade do feito de humanos, sem os meios que temos hoje, transportarem pedras, com algumas toneladas, distâncias inacreditáveis de modo a venerarem os seus mortos mais ilustres. Pelo que se estima e como a esperança de vida há 5000 anos era apenas de 25-30 anos, estes monumentos funerários terão demorado 3 a 4 gerações a construir. Além disso quase todas as pedras que decoram as laterais dos tais montes artificiais têm desenhos (espirais principalmente) gravados sem ainda se conhecer o ferro (possivelmente até foram feitos uns 1000 anitos mais tarde).

Os irlandeses têm muito orgulho em dizer que estes montes artificiais com passagens e câmaras funerárias foram construídos antes das Pirâmides do Egipto.

[19:45] Jampa Ling (Buddhist Centre), Bawnboy

"Estou cansado. Cheio de sono e a tomar um chá de ervas e especiarias (Yogi Bhajan's) na cozinha de um centro budista perdido no meio da Irlanda profunda. Além da Cláudia, está connosco uma alemã – Ulrika [N.R. – Nunca percebi bem o nome dela, mas era algo como Alrika] – e uma irlandesa que é a responsável pelo jardim do centro. Ainda não sei o nome dela. Descobrimos este lugar no Lonely Planet (a Cláudia descobriu) e como íamos passar perto decidimos pernoitar aqui. Foi difícil dar com o sítio exacto, mas é isso que torna os lugares especiais. E este parece-nos especial.

Estamos à espera que o responsável do centro termine a meditação para vermos quais as condições e se podemos ficar. Já vimos os quartos e por nós ficamos. A casa é uma casa rural antiga com pé alto, portas que rangem e alcatifa. A fachada está decorada com Nós do Tibete que servem de apoio ao crescimento das trepadeiras. Se ficarmos, ficamos nos anexos [N.R. – Tara House] que está preparada com camaratas e quartos. Tem ainda uma sala de meditação ou yoga. Da casa propriamente dita só vi a cozinha.

Continuamos à espera do Desmond."

Jampa Ling vai ficar na minha memória como um sítio de paz. Aliás o nome quer dizer mais ou menos isso, pois significa algo como lugar de infinita bondade e amor. As pessoas que povoavam aquele lugar tinham na alma a paz que todos os nós procuramos, mas ainda estavam à procura da delas. A vida ali decorre com muito menos ritmo e os objectivos estão muito distantes daqueles que nós procuramos.

Não me tornei budista, mas fiquei mais próximo.

[22:00] Tara House, Jampa Ling (Buddhist Centre), Bawnboy

"Ficámos. Já estamos na cama preparados para dormir mas ainda a delinear o dia de amanhã. O Desmond foi espectacular. Pagámos €60.00 para ficar, mas inclui o pequeno-almoço e o almoço [N.R. - O chá e uma sopa antes de dormir]. Acho que podíamos ir à meditação da manhã, mas 7h30m é muito cedo, embora ache que vá acordar cedo, pois aqui não há cortinas [N.R. – Como em todo o lado nestas ilhas].

A chuva lá fora acalmou e a sensação de frio diminuiu. Espero que o tempo melhore. Os agostos ultimamente andam horríveis.

Foi um dia de aniversário completamente diferente dos que tenho tido nos últimos anos. No ano passado escrevi que me estava a aproximar de casa e que eventualmente este ano passaria este dia com os meus amigos em casa. Desculpem mas ainda não foi este ano. Se por boas ou más razões, o tempo o dirá, mas fica adiado mais uma vez.

Fiz 35 anos e hoje dei conta que tenho pelos brancos na barba. Não há que negá-lo, estou mais velho. Nestes dias (assim como na passagem de ano) é normal fazer-se uma retrospectiva do ano que passou. Acho que por isso ontem estava triste. A vida não tem sido muito gentil connosco ultimamente. Mas hoje fiquei com a sensação que uma nova era se anuncia, que temos de ser fortes e procurar ser felizes. Procurar e encontrar sítios, pessoas e ocasiões que nos façam sonhar. Hoje vou sonhar!"

Besouro entre Gigantes - Fotografia de Rui Gonçalves Newgrange - Fotografia de Cláudia Fernandes


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