Acho que vos deixei no Domingo [7 de Dezembro
de 2003]. Desde então pouco se tem passado para além
do que é normal, ou pode ser considerado normal, num
usual dia de trabalho de 12 ou 13 horas. É impressionante
como a nossa mente começa a fraquejar depois de 8 ou
9 horas seguidas de trabalho, mesmo que não seja intenso.
Acho, que o ser humano (e aqui os japoneses estão excluídos)
não aguenta este ritmo durante um longo período
de tempo, a não ser que faça o mesmo que eles
e coma, beba e durma no escritório, nos comboios ou
nos restaurantes. Sim! Tudo...
Ainda não conheci nenhum país
em que a hierarquia tenha um peso tão grande nas organizações
e onde as regras são feitas para serem cumpridas. Como
já vos contei da primeira vez, os trabalhadores estão
sentados em filas de mesas na horizontal e na vertical está uma
outra fila onde se senta o chefe de cada fila, de frente para
a fila que rege. Ninguém nessa fila vai para casa antes
do chefe da fila. Se o chefe morrer e ficar de olhos abertos
a olhar para eles, morrem todos. Além disso é-lhes
requerido que trabalhem o mais possível, mesmo que a
dada altura só estejam a fazer asneiras, como já aconteceu
variadíssimas vezes.
Outra coisa estranha (como diria aqui David) é o
facto de haverem regras subentendidas, legisladas ou afixadas
em diversos locais que toda a gente cumpre. Aqui em frente à saída
da fábrica existe uma passadeira numa estrada recta
com visibilidade de cerca de 2 quilómetros para cada
lado da mesma. Ninguém, mas mesmo ninguém, atravessa
a passadeira se não estiver verde (eles dizem que é azul!
Aquilo é assim anis, mas não azul!), mesmo que
não se veja um carro na rua. Claro, que o David com
tantas idas a Portugal já está aculturado e já percebeu
as vantagens de não esperar pelo verde e agora decidiu
que os japoneses também tem que o aprender. Por isso
sempre que pode atravessa com o vermelho e diz que se ficasse
cá mais algum tempo iria conseguir com que todos os
trabalhadores da fábrica fizessem o mesmo. Ou isso,
ou saia daqui com alguns ossos partidos depois de levar com
um Toyota, Suzuki ou Mitsubishi em cima.
Hoje [11 de Dezembro de 2003] estivemos a contar
quantos carros não-japoneses é que vimos pelo
caminho. Até agora e desde que cá estamos já vimos
um Mini (Rover), um Volvo, dois Ford (um Mustang) e um Mercedes.
De resto só carros japoneses, incluindo um Altezza que
vi hoje que está longe de ser um carro real. Agora compreendo
que haja anúncios do governo japonês a incentivar
a compra de produtos estrangeiros pois se eles não importarem
de outros países, estes começam a cortar as importações
do Japão. Mas para compensar nas lojas de Shibuya só se
vê marcas estrangeiras.
Aliás o David conseguiu tirar o dia de
terça-feira [9 de Dezembro de 2003] de folga e foi até Shibuya.
E vinha estoirado, que nem eu. Eu infelizmente fiquei aqui
no escritório sozinho. Infelizmente não, porque
já começo a ficar farto de estar só com
o David e o Christophe estava a tornar-se uma companhia amorfa.
Mas, o Christophe foi para Hong Kong, assim de repente. Estava
em pânico, embora o ritmo de trabalho lá seja
menor que o de cá, ele não sabia e temia pelo
pior. Por outro lado, o David é 14 anos mais velho do
que eu, tem dois filhos, uma rapariga de 19 anos e um rapaz
cuja idade não sei, por isso imaginem que interesses
em comum é que teremos. Além disso é inglês
e pior ainda não gosta de futebol. Não é que
eu goste, mas sempre se podia falar de outra coisa que só problemas
de trabalho.
Por isso a chegada do Fabrice nesse dia foi
uma lufada de ar fresco. Pelo menos podia falar de vinhos e
foi o que fizemos ao jantar até que notámos
que o David estava a leste do que estávamos a falar.
Para um inglês o vinho serve para beber e ficar bêbado,
não é um tema de conversa e muito menos um tema
supostamente em que se possa pensar. Será que alguém
discute tipos de água a um jantar? Então porque
se há-de de discutir vinho? Na verdade conseguimos
mudar de assunto... E continuar a beber umas cervejas. E até consegui
ir para a cama antes das 3h da manhã, como de costume.
Nesse dia também chegou o Tim e o Derick,
mas nem os vimos. Só os vi na quarta-feira [10 de Dezembro
de 2003] quando aqui apareceram na nossa sala de asfixia em
conjunto. Aliás o Tim que é o meu chefe de departamento
conseguiu agradecer pelo esforço que tenho feito aqui
e nem sequer me cumprimentou ou dirigiu a palavra. É sempre
bom uma pessoa sentir-se recompensado pelo seu trabalho e sentir
que os nossos superiores sentem que somos elos importantes
na organização. Quase tão importantes
como o apêndice no corpo humano... Ou ainda menos!
Não fiquei nada feliz. Se há coisa
que tenho feito é lutar para que as pessoas se sintam
reconhecidas no meu pequeno grupo de trabalho. Eu sei que numa
grande organização é difícil conhecer
todos os empregados, mas aqui eu e o David somos os únicos
que ele deveria conhecer. Disse-o ao David e disse que muito
se fala em motivação, mas não é assim
que se melhora o desempenho das pessoas. O David disse que
o Tim é tímido e achou que foi culpa dele por
não mo ter apresentado. Eu acho que um director de departamento
não pode ser tímido e que ele foi mal educado.
Para compensar as coisas, hoje quando aqui chegou nem me levantei
para o cumprimentar e disse-lhe um "hello" porque
ele tomou a iniciativa.
O David também não estava feliz
ontem e fomos os dois jantar ali ao lado para apaziguar as
nossas mágoas. Acho que foi o jantar menos conversado
que tive desde que aqui estou, mas também foi o único
em que não bebemos cerveja, pois tínhamos que
voltar ao trabalho. Mas foi a refeição mais saudável
que tive desde que aqui cheguei. Comi só sushi, pois
nos últimos dias tenho comido só porcarias. É impressionante
como é diferente a qualidade da comida daqui para Sapporo.
Aqui a maioria dos restaurantes são franchisados e a
comida basicamente fritos e pouco mais. Nós é que
não sabemos onde são os verdadeiros restaurantes
japoneses e é difícil pedir quando o menu está todo
em japonês e não há figuras.
Mas este restaurante é bem porreiro e
a comida era boa. Fica numa viela em frente à fábrica
e tem uma decoração sui-generis um misto de restaurante
americano com toques mexicanos e japoneses claro. Era num antigo
armazém ou garagem e parecia que a decoração
foi feita com as coisas que estavam no local antes de ser um
restaurante. Nas paredes haviam capas de revistas antigas,
dos anos 60 e japonesas. Um máquina de costura da mesma época
estava entre as mesas e na parede acima uma tampa de um bidão
de óleo da empresa Argentina S.A. San Miguel. Haviam
alguns tecidos rasgados espalhados de modo a manter as mesas
separadas.
Na televisão dava o jogo de futebol entre
o Japão e a o Coreia, que como viemos a saber mais tarde
estava a decorrer no estádio mesmo ao lado do Hotel.
Foi fácil de ver que havia algo de anormal quando chegámos à estação
de Shin-Yokohama e quase nem conseguíamos sair. Mas
só soubemos quando perguntámos ao empregado do
bar onde fomos beber um copo antes de ir dormir. À 1h
da manhã...
Empataram! Mas a Coreia do Sul sagrou-se a primeira
equipa campeã do Campeonato da Ásia Oriental.
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