D22 QUINTA-FEIRA, 11 DE DEZEMBRO DE 2003
Sala de Fumo da Fábrica de Kamoi - Fotografia de Rui Gonçalves

Acho que vos deixei no Domingo [7 de Dezembro de 2003]. Desde então pouco se tem passado para além do que é normal, ou pode ser considerado normal, num usual dia de trabalho de 12 ou 13 horas. É impressionante como a nossa mente começa a fraquejar depois de 8 ou 9 horas seguidas de trabalho, mesmo que não seja intenso. Acho, que o ser humano (e aqui os japoneses estão excluídos) não aguenta este ritmo durante um longo período de tempo, a não ser que faça o mesmo que eles e coma, beba e durma no escritório, nos comboios ou nos restaurantes. Sim! Tudo...

Ainda não conheci nenhum país em que a hierarquia tenha um peso tão grande nas organizações e onde as regras são feitas para serem cumpridas. Como já vos contei da primeira vez, os trabalhadores estão sentados em filas de mesas na horizontal e na vertical está uma outra fila onde se senta o chefe de cada fila, de frente para a fila que rege. Ninguém nessa fila vai para casa antes do chefe da fila. Se o chefe morrer e ficar de olhos abertos a olhar para eles, morrem todos. Além disso é-lhes requerido que trabalhem o mais possível, mesmo que a dada altura só estejam a fazer asneiras, como já aconteceu variadíssimas vezes.

Outra coisa estranha (como diria aqui David) é o facto de haverem regras subentendidas, legisladas ou afixadas em diversos locais que toda a gente cumpre. Aqui em frente à saída da fábrica existe uma passadeira numa estrada recta com visibilidade de cerca de 2 quilómetros para cada lado da mesma. Ninguém, mas mesmo ninguém, atravessa a passadeira se não estiver verde (eles dizem que é azul! Aquilo é assim anis, mas não azul!), mesmo que não se veja um carro na rua. Claro, que o David com tantas idas a Portugal já está aculturado e já percebeu as vantagens de não esperar pelo verde e agora decidiu que os japoneses também tem que o aprender. Por isso sempre que pode atravessa com o vermelho e diz que se ficasse cá mais algum tempo iria conseguir com que todos os trabalhadores da fábrica fizessem o mesmo. Ou isso, ou saia daqui com alguns ossos partidos depois de levar com um Toyota, Suzuki ou Mitsubishi em cima.

Hoje [11 de Dezembro de 2003] estivemos a contar quantos carros não-japoneses é que vimos pelo caminho. Até agora e desde que cá estamos já vimos um Mini (Rover), um Volvo, dois Ford (um Mustang) e um Mercedes. De resto só carros japoneses, incluindo um Altezza que vi hoje que está longe de ser um carro real. Agora compreendo que haja anúncios do governo japonês a incentivar a compra de produtos estrangeiros pois se eles não importarem de outros países, estes começam a cortar as importações do Japão. Mas para compensar nas lojas de Shibuya só se vê marcas estrangeiras.

Aliás o David conseguiu tirar o dia de terça-feira [9 de Dezembro de 2003] de folga e foi até Shibuya. E vinha estoirado, que nem eu. Eu infelizmente fiquei aqui no escritório sozinho. Infelizmente não, porque já começo a ficar farto de estar só com o David e o Christophe estava a tornar-se uma companhia amorfa. Mas, o Christophe foi para Hong Kong, assim de repente. Estava em pânico, embora o ritmo de trabalho lá seja menor que o de cá, ele não sabia e temia pelo pior. Por outro lado, o David é 14 anos mais velho do que eu, tem dois filhos, uma rapariga de 19 anos e um rapaz cuja idade não sei, por isso imaginem que interesses em comum é que teremos. Além disso é inglês e pior ainda não gosta de futebol. Não é que eu goste, mas sempre se podia falar de outra coisa que só problemas de trabalho.

Por isso a chegada do Fabrice nesse dia foi uma lufada de ar fresco. Pelo menos podia falar de vinhos e foi o que fizemos ao jantar até que notámos que o David estava a leste do que estávamos a falar. Para um inglês o vinho serve para beber e ficar bêbado, não é um tema de conversa e muito menos um tema supostamente em que se possa pensar. Será que alguém discute tipos de água a um jantar? Então porque se há-de de discutir vinho? Na verdade conseguimos mudar de assunto... E continuar a beber umas cervejas. E até consegui ir para a cama antes das 3h da manhã, como de costume.

Nesse dia também chegou o Tim e o Derick, mas nem os vimos. Só os vi na quarta-feira [10 de Dezembro de 2003] quando aqui apareceram na nossa sala de asfixia em conjunto. Aliás o Tim que é o meu chefe de departamento conseguiu agradecer pelo esforço que tenho feito aqui e nem sequer me cumprimentou ou dirigiu a palavra. É sempre bom uma pessoa sentir-se recompensado pelo seu trabalho e sentir que os nossos superiores sentem que somos elos importantes na organização. Quase tão importantes como o apêndice no corpo humano... Ou ainda menos!

Não fiquei nada feliz. Se há coisa que tenho feito é lutar para que as pessoas se sintam reconhecidas no meu pequeno grupo de trabalho. Eu sei que numa grande organização é difícil conhecer todos os empregados, mas aqui eu e o David somos os únicos que ele deveria conhecer. Disse-o ao David e disse que muito se fala em motivação, mas não é assim que se melhora o desempenho das pessoas. O David disse que o Tim é tímido e achou que foi culpa dele por não mo ter apresentado. Eu acho que um director de departamento não pode ser tímido e que ele foi mal educado. Para compensar as coisas, hoje quando aqui chegou nem me levantei para o cumprimentar e disse-lhe um "hello" porque ele tomou a iniciativa.

O David também não estava feliz ontem e fomos os dois jantar ali ao lado para apaziguar as nossas mágoas. Acho que foi o jantar menos conversado que tive desde que aqui estou, mas também foi o único em que não bebemos cerveja, pois tínhamos que voltar ao trabalho. Mas foi a refeição mais saudável que tive desde que aqui cheguei. Comi só sushi, pois nos últimos dias tenho comido só porcarias. É impressionante como é diferente a qualidade da comida daqui para Sapporo. Aqui a maioria dos restaurantes são franchisados e a comida basicamente fritos e pouco mais. Nós é que não sabemos onde são os verdadeiros restaurantes japoneses e é difícil pedir quando o menu está todo em japonês e não há figuras.

Mas este restaurante é bem porreiro e a comida era boa. Fica numa viela em frente à fábrica e tem uma decoração sui-generis um misto de restaurante americano com toques mexicanos e japoneses claro. Era num antigo armazém ou garagem e parecia que a decoração foi feita com as coisas que estavam no local antes de ser um restaurante. Nas paredes haviam capas de revistas antigas, dos anos 60 e japonesas. Um máquina de costura da mesma época estava entre as mesas e na parede acima uma tampa de um bidão de óleo da empresa Argentina S.A. San Miguel. Haviam alguns tecidos rasgados espalhados de modo a manter as mesas separadas.

Na televisão dava o jogo de futebol entre o Japão e a o Coreia, que como viemos a saber mais tarde estava a decorrer no estádio mesmo ao lado do Hotel. Foi fácil de ver que havia algo de anormal quando chegámos à estação de Shin-Yokohama e quase nem conseguíamos sair. Mas só soubemos quando perguntámos ao empregado do bar onde fomos beber um copo antes de ir dormir. À 1h da manhã...

Empataram! Mas a Coreia do Sul sagrou-se a primeira equipa campeã do Campeonato da Ásia Oriental.



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