D20 SÀBADO, 6 DE DEZEMBRO DE 2003
Lavatório na fábrica de Kamoi - Fotografia de Rui Gonçalves

Pois é! Hoje [6 de Dezembro de 2003] é sábado, são 21:15 e eu ainda estou a trabalhar. Para ajudar, em Portugal, é fim-de-semana prolongado. Aqui é mais um dia de trabalho. Acho que amanhã vou passear até Tóquio... Mas levo o telemóvel comigo, não vá eu estar a divertir-me e tenha que voltar a correr aqui para o inferno de Kamoi.

Eu já vos contei no passado como é aqui a fábrica, onde trabalham mais de 4000 pessoas, onde não se vê a luz do sol porque há poucas janelas e as que existem tem vidros foscos, há salas de fumo assistido e os corredores parecem saídos de um filme do Alfred Hitchcock. As retretes são buracos no chão à caçador, não há toalhas para limpar as mãos na casa-de-banho e vivemos todos em dois metros quadrados. Acho que não existe quase nada de bom nesta fábrica a não ser uma ligação permanente à Internet e a porta da saída... Quando saímos!

O tipo na secretária ao meu lado está a dormir há quase uma hora. Eu já tomei três cafés para não fazer o mesmo. As caras à minha volta têm todas os olhos em bico. Acho! Porque nem consigo ver os olhos de alguns pois estão mais fechados que os museus em Portugal à segunda-feira. Alguns destes japoneses ainda são os mesmos que eu conheci em Sapporo há seis meses atrás, quando cá vi da primeira vez. A maioria não tem um fim-de-semana livre desde então.

A fábrica está quase vazia, mas aqui neste escritório poucas são as secretárias vazias. Enquanto o telemóvel não for lançado no mercado de Hong Kong, ninguém descansa.

Dos engenheiros que eu conheci há seis meses, o Abuni-San está ali de pé a coçar a cabeça e olhar para um PC ligado a uma placa de testes que será um dia o hardware de um telemóvel, o Asai-san mal se vê e o Kanai-san, o chefe deles, anda à três dias com um emplastro na testa aparentemente porque está constipado.

Começou a falar uma tipa nos altifalantes. Suponho que seja a tal que diz para nos irmos embora porque estamos a gastar a luz à empresa e ela não nos paga para cá estarmos. É assim que querem melhorar a moral destes tipos. Como é que eles aguentam?

Mas mudando de assunto. O Olivier, o francês-chinês já se foi embora. Aliás, ele só vai embora amanhã à tarde, mas disse que ia hoje para poder ir a Tóquio dar uma volta. Acho que já cá estava há duas ou três semanas e hoje é o primeiro dia de folga. Eu fiz questão de mostrar que não me vai acontecer. Aliás o David apoia-me...

No entretanto chegou outro francês, o Christophe, que é um misto de francês com francês. Ainda não percebi que fascínio têm estes tipos pelas camisas bordeaux ou azul torqués. Ontem [5 de Dezembro de 2003] o Olivier tinha uma camisa bordeaux e o Christophe trazia a mesma camisa que traz hoje (como é normal) azul turquês. Uma camisa lisa e larga, bordeaux ou azul turquês... Aliás, eu só tenho confirmado que a fama de que os franceses não gostam muito de mudar de roupa é realmente verdade. Da última vez que cá estive andei a contar os dias que o Thomas usou a sua bela camisa bordeaux, aqui o colega Christophe anda há dois dias com a mesma camisa azul turquês, e a Christine, uma francesa que também anda cá pela fábrica, anda com a mesma roupa desde que a vi no primeiro dia que cheguei. Ou eles têm um guarda roupa muito pouco variado ou então gostam de poupar a roupa... Esperemos que não façam o mesmo com a pele ou em breve vou ter problemas.

Ou menos nisso o David é diferente. Hoje, ao fim de 5 dias, já quer saber onde é a lavandaria. Acho bem...

Por falar em David. Ele diz que o Japão só se define numa palavra – Strange! E acreditem que é a palavra certa. Quando fui daqui a última vez, eu e os meus colegas que cá estiveram, tentámos explicar como era o Japão, aos nossos amigos, colegas e chefes, mas acho que ninguém ficou com uma ideia correcta de como é o país, porque é mesmo estranho. Aliás, acho que o meu chefe só percebeu pelo que passámos, quando ele próprio veio para cá duas semanas. A atitude de para com a nossa vinda mudou radicalmente desde então.

Como é que se explica a uma pessoa que se comem as cartilagens dos ossos das coxas do frango e que é um pitéu? Como se explica o que é o wasabi ou os pickles de gengibre? Como se explica que se trabalham mais de 12h por dia, incluindo sábados e domingos, durante 7 meses e ainda têm empregados? Como se explica que existem máquinas de bebidas em cada esquina e que um telemóvel com televisão custa 15 contos? Como se explica que se separe o lixo excelentemente, de uma maneira como nunca vi e quando chove o rio só leve pacotes de leite e demais porcarias a boiar? Como se explica que não há passeios, mas que os peões nunca atravessam no vermelho? Como se explica que uma população inteira de vários milhões não saiba andar? Como se explica que há pessoas pagas para fazer de semáforo a noite toda?

É estranho!!! Mas é divertido... Talvez segunda-feira eu já veja mais coisas positivas!!!! Como o fascínio que um país como este nos transmite, pelas suas tradições e o modo calmo como os japoneses encaram tudo na vida.



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