Ontem deixei-vos junto ao Duero a apreciar o
nascer da lua reflectido nas águas do Embalse de la
Cuerda Del Pozo. Mas esqueci-me de vos contar a visita que
fizemos a La Fuentona de Muriel, a nascente do rio Abión
que brota do chão, de uma gruta, com uma água
muito cristalina e gelada. Mas isso foi na segunda-feira, porque
na terça-feira [12 de Agosto de 2003] partimos para
os Pirinéus aragoneses.
Bem! Se se estava bem na montanha, quando começámos
a descer para os vales, o calor começou a aumentar a
tal ponto que se tornou insuportável. Houve alturas
da viagem até Canfranc-Estación, o nosso próximo
destino, que não conseguíamos pensar e nem falar
com o calor. Ainda fomos ligando o ar-condicionado nas partes
mais planas, mas nas subidas mais íngremes tornava-se
impraticável. Quando passámos em Jaca, a última
cidade antes de se começar a subir para os Pirinéus
pelo Vale do rio Aragão, o termómetro do jipe
marcava 38º, por volta das 5h da tarde. Antes tínhamos
parado no Embalse de Yesa para um mergulho e almoçar.
A água azul da montanha convidava...
Com tanto calor o humor estava a níveis
muito baixos, mas nada que umas cañas e umas tapas numa
esplanada não melhorasse. Ah! E uma sonequinha à porta
da tenda...
Quarta-feira [13 de Agosto de 2003], pegámos
numas mochilas, impermeáveis, um mapa e as máquinas
fotográficas e fomos à conquista do Anayet. Bem!
Mais propriamente dos Ibones de Anayet, porque o monte Anayet
(2.545m) é um bocado escarpado na parte final. Ibón é uma
palavra aragonesa que significa lago de alta montanha e os
Ibones são lagos de origem glaciar que existem um pouco
por todos os Pirinéus. Os Ibones de Anayet são
um grupo de lagos que se encontram à volta do monte
Anayet e nós pretendíamos chegar a um vale a
2.227 metros de altitude onde estão três desses
Ibones. Partimos do parque de campismo de Canfranc-Estación
(1.400m) pelo Canal Roya.
A subida fez-se bem enquanto se ia pelo vale
do Canal Roya, junto ao rio, refrescando e agradecendo às
nuvens as sombras. Mas quando chegámos a La Rinconada,
um anfiteatro com paredes verticais e olhámos para a
ascensão ziguezagueante que nos esperava até ao
topo, parámos e metemos os pés nas águas
geladas dos riachos que povoam aquele vale. No momento que
resolvemos conquistar os últimos cerca de 400m de altitude
em regime vertical, chamado de El Salto del Agua, até ao
nosso objectivo, as nuvens abriram e resolveram dar-nos o "prazer" de
fazer a subida com o sol. Mas valeu a pena pelas vistas sobre
os picos consecutivos dos Pirinéus, a imponência
do Midi d'Ossau, o vale dos Ibones e acima de tudo o prazer
de ter conseguido chegar ali.
Mas se o sol esteve presente em quase toda a
subida, assim que chegámos ao topo fomos presenteados
com as primeiras pingas de chuva do dia. Infelizmente as pingas
tornaram-se depressa em chuva e a 2.000 metros só agradecemos
o facto de termos carregado os impermeáveis.
A descida fizemos por outro caminho. Subindo
ao Collado Rojo situado entre o Vértice (2.559m) e o
Pico de Anayet e daí seguindo um caminho até ao
refúgio do outro lado do monte, já no Canal Roya.
Porém as marcas do caminho desapareciam no meio de um
pico menor muito rochoso e daí até ao vale foi
em corta-mato. Ainda houve tempo para me enganar e dirigir-me
ao refúgio errado o que nos fez perder algum tempo e
acima de tudo cansar-nos ainda mais. Mas, vimos uma marmota,
cavalos selvagens e cabras montesas, isto sem falar na quantidade
enorme de vacas que cagam os caminhos existentes todos e fazem
novos caminhos em todo o lado e que só enganam.
À chegada os pés estavam feitos
num oito. Principalmente os da Cláudia que depois desta
caminhada nunca mais calçou as botas durante as férias,
pois criou uma bolha no calcanhar que infectou.
Mas o melhor destas caminhadas é o modo
como a comida depois sabe melhor. Não é só nas
caminhadas, mas tenho a sensação que a melhor
coisa do campismo é mesmo as refeições
e sentarmo-nos à porta da tenda a olhar a envolvente
com um prato de uma massa qualquer na mão. Sabe sempre
bem! Como se a comida feita num fogão a gás que
mal se endireita em pé, numa panela mais amolgada que
um sino de igreja e nuns pratos de plástico soubesse
a um manjar de rei. Suponho que deve ser pelo ar puro que nos
rodeia e naquela altura pelo cansaço e a satisfação
de ter feito algo que nos agradou tanto.
Quinta-feira [14 de Agosto de 2003] fomos para
o vale de Ossau, paralelo ao do Rio Aragão, pelo lado
francês, passando por Borce uma pequena aldeia que nos
aconselharam a ver pela sua traça medieval. Por amor
de Deus! Que bela perda de tempo... Não fosse pelo almoço
na tasca-supermercado-livraria da terra e tinha dado o tempo
mesmo por perdido. Depois e além disso o lado francês
dos Pirinéus é muito mais húmido e frio
que o espanhol, pelo que mal passámos o Col du Somport,
o tempo começou a piorar e só voltámos
a ver o sol quando chegámos ao Col du Portalet. Ah!
E ainda há os franceses que têm que levar as suas
roulottes (caravanas) até mesmo à porta dos sítios
que querem visitar e entopem as estradas todas. E quando chegam à fronteira
param e ficam ali como se tivessem medo de apanhar alguma doença
se atravessarem aqueles 5 metros que os separam de Espanha.
A verdade é que fiz a subida do lado francês até ao
Col du Portalet em fila e assim que cheguei à fronteira
fiquei sozinho na estrada. Vivam os espanhóis.
Ah! Já me esquecia que fomos a Astún
a estância de esqui espanhola e subimos no teleférico
para vermos mais uns lagos. A Cláudia de chinelos queria
subir aos picos todos para ver se via os Ibones de Anayet dali.
Era giro ver o pessoal todo artilhado de botas, mochilas e
batons para fazer uma caminhada de uma centena de metros quase
sem desnível nenhum e a Cláudia de chinelos.
Mas voltando. Quando chegámos a Torla,
perto do Parque Nacional de Ordesa e Monte Perdido, é que
nos apercebemos da dimensão do mesmo e de que não
se podia entrar no vale de carro, mas apenas no autocarro que
existia para o efeito. Além disso a quantidade de gente
que visita o parque é extraordinária e de muitos
países, espanhóis na sua maioria, mas desde franceses,
holandeses, alemães, belgas e até checos (a quem
dêmos boleia)... Só portugueses é que eram
dois! Bem, quatro, connosco!
É impressionante como nós portugueses
(estou-me a incluir) somos tão de ideias fixas e pouco
aventureiros. Nem parece que demos meio mundo ao Mundo ou já nos
esquecemos?... Se calhar achamos que já não é necessário!
Temos o Algarve e as melhores praias da Europa, porque é que
havemos de nos ralar em ir para a montanha e logo em Espanha
que ali tão longe. Montanha? Temos a Serra da Estrela...
E o Gerês, que nesta altura do ano está apinhado
de gente... Mas ninguém vai ao outro lado! "Para
quê? É igual e ainda por cima eles falam estrangeiro!" Ou
se vão é só para ir comprar caramelos...
A verdade é que as praias do norte de Espanha têm
a água mais quente que as do norte de Portugal. A areia é que
não há como a nossa, nem no caldinho do Mediterrâneo...
E os Pirinéus são tão grandes e tão
bonitos que compensa os poucos quilómetros que temos
que fazer a mais do que ir ao Algarve. Ah! E sem falar nas
filas de trânsito, nos engarrafamentos, nas esperas de
mesa no restaurantes, nos empurrões no bar e acima de
tudo nos preços a pagar. Vão todos para o Algarve...
Eu não vou descrever o vale de Ordesa,
mas posso vos dizer que não sei como é que se
sonha em ir aos Estados Unidos e ao Grand Canyon, quando aqui
mesmo ao lado e a menos de 1.000 quilómetros temos um
parque natural que é património da humanidade,
e que em nada fica atrás dos parques do sudoeste americano
e ninguém lá põe os pés. É verdade
que não aparece nos filmes de Hollywood, nem nas revistas
de fotografia e nem nos á lbuns das melhores maravilhas
da Terra, mas isso são tudo americanices. Até há um
canyon que se pode fazer de carro, se não se quiserem
cansar - Cañón de Añisclo – mas
podem-no fazer em canyoning que deve ser uma loucura, pela
beleza e pelos rápidos e estreitos.
Nós ficámos pela zona, cerca de
três dias. Chegámos na quinta-feira [14 de Agosto
de 2003] e partimos no domingo [17 de Agosto de 2003]. Ficámos
no Camping Valle de Bujaruelo (http://www.campingvalledebujaruelo.com/index.asp)
que fica num vale, cuja estrada de terra, junto ao rio, num
desfiladeiro, parece saído de um filme. Talvez agosto
não seja o melhor mês para estar lá, pelas
enchentes de gente, mas o respeito que as pessoas têm
umas pelas outras e o barulho da água corrente do rio,
torna o ambiente muito calmo e acolhedor. Não se houve
barulho algum depois das 23h e as manhãs são
sempre muito sossegadas. A vista sobre o vale no patamar em
que acampamos merece uma contemplação diária
pela manhã e ao fim da tarde, quando o nevoeiro liberta
ou invade o canyon de Bujaruelo.
Devido ao problema no calcanhar da Cláudia
não fomos à Brecha de Rolando, como ela tinha
sonhado, mas ficou previsto uma nova visita assim que a vida
nos deixar. Mas, na sexta-feira [15 de Agosto de 2003] visitámos
o vale e ainda fizemos uma caminhada, a Cláudia de chinelos
e eu de sandálias. Uma coisa pouca, só para não
dizermos que não fizemos nada... A verdade é que
mais uma vez nos metemos num caminho que não era para
chinelos nem sandálias, apesar de que era muito bonito,
aliás deslumbrante, mas perigoso e muito aterrorizador.
Começámos na Pradera de Ordesa (1.310m), onde
o autocarro nos deixou e subimos à ponte do Circo de
Cotatuero (1.660m) de onde se vê a deslumbrante cascata
do mesmo nome e com mais de 200m de queda de água num
anfiteatro natural. Mas em vez de voltar pelo caminho, que
até era fácil e para chinelos, resolvemos continuar
a subir até à falha de Canarellos e daí seguimos
num caminho estreito num declive enorme sobre o vale a cerca
de 300m do solo na vertical, até ao Bosque de Hayas.
De chinelos e sandálias algumas passagens tinham de
ser feitas com muita calma, concentração e atenção,
uma pequena falha e íamos a voar até ao destino...
No sábado [16 de Agosto de 2003] com
a preguiça fizemos o Cañón de Añisclo
de carro e fechamo-nos dentro da tenda muito cedo, pois lá fora
chovia torrencialmente. Mas o vinho rosé comprado em
Olite (Navarra) fez o seu efeito sedativo e só eu é que
acordei com o barulho da chuva a cair na tenda. Na noite anterior
tínhamos sido visitados por uma trovoada que naquele
vale se tornou um espectáculo ao mesmo tempo fantástico
e aterrador. Imaginem que cada trovão era repetido pelo
eco e fazia toda a viagem pelo vale acima repetindo-se em movimento.
Lindo!
No domingo [17 de Agosto de 2003] rumámos
a Barcelona... Na companhia de um espanhol chamado Raul, a
quem demos boleia e com uma vida que eu depois vos conto. Mas
antes ainda de vos deixar queria só contar-vos uma última
história que se passou quando voltávamos do Cañón
de Añisclo pela estrada de terra no vale de Bujaruelo.
Não havia ninguém na estrada e um tipo numa carrinha
pediu-me para abrandar. Quando parei ao lado dele, o homem,
que era de Saragoça, disse-me que adorava Portugal e
que há três anos que cá vem passar férias
e que o nosso país é lindíssimo. Tinha
acabado de voltar da Costa Alentejana e que adorou. Assim como
adorou o Douro... Mas não falou no Algarve! Já viram?
Eu só lhe pude dizer que também gostava muito
de Espanha senão não estaria ali...
Mas a presença de um carro português
devia de ser mesmo uma raridade (nós só vimos
mais dois) porque noutra ocasião um tipo passou por
mim na mesma estrada de terra e disse alto a rir-se "Xe
eu tivesxe um carro como exse!"... Era de La Coruña!
Só um galego...
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