QUARTA-FEIRA, 27 DE AGOSTO DE 2003 D17
Midi d'Ossau reflectido nos Ibones de Anayet - Fotografia de Rui Gonçalves

Ontem deixei-vos junto ao Duero a apreciar o nascer da lua reflectido nas águas do Embalse de la Cuerda Del Pozo. Mas esqueci-me de vos contar a visita que fizemos a La Fuentona de Muriel, a nascente do rio Abión que brota do chão, de uma gruta, com uma água muito cristalina e gelada. Mas isso foi na segunda-feira, porque na terça-feira [12 de Agosto de 2003] partimos para os Pirinéus aragoneses.

Bem! Se se estava bem na montanha, quando começámos a descer para os vales, o calor começou a aumentar a tal ponto que se tornou insuportável. Houve alturas da viagem até Canfranc-Estación, o nosso próximo destino, que não conseguíamos pensar e nem falar com o calor. Ainda fomos ligando o ar-condicionado nas partes mais planas, mas nas subidas mais íngremes tornava-se impraticável. Quando passámos em Jaca, a última cidade antes de se começar a subir para os Pirinéus pelo Vale do rio Aragão, o termómetro do jipe marcava 38º, por volta das 5h da tarde. Antes tínhamos parado no Embalse de Yesa para um mergulho e almoçar. A água azul da montanha convidava...

Com tanto calor o humor estava a níveis muito baixos, mas nada que umas cañas e umas tapas numa esplanada não melhorasse. Ah! E uma sonequinha à porta da tenda...

Quarta-feira [13 de Agosto de 2003], pegámos numas mochilas, impermeáveis, um mapa e as máquinas fotográficas e fomos à conquista do Anayet. Bem! Mais propriamente dos Ibones de Anayet, porque o monte Anayet (2.545m) é um bocado escarpado na parte final. Ibón é uma palavra aragonesa que significa lago de alta montanha e os Ibones são lagos de origem glaciar que existem um pouco por todos os Pirinéus. Os Ibones de Anayet são um grupo de lagos que se encontram à volta do monte Anayet e nós pretendíamos chegar a um vale a 2.227 metros de altitude onde estão três desses Ibones. Partimos do parque de campismo de Canfranc-Estación (1.400m) pelo Canal Roya.

A subida fez-se bem enquanto se ia pelo vale do Canal Roya, junto ao rio, refrescando e agradecendo às nuvens as sombras. Mas quando chegámos a La Rinconada, um anfiteatro com paredes verticais e olhámos para a ascensão ziguezagueante que nos esperava até ao topo, parámos e metemos os pés nas águas geladas dos riachos que povoam aquele vale. No momento que resolvemos conquistar os últimos cerca de 400m de altitude em regime vertical, chamado de El Salto del Agua, até ao nosso objectivo, as nuvens abriram e resolveram dar-nos o "prazer" de fazer a subida com o sol. Mas valeu a pena pelas vistas sobre os picos consecutivos dos Pirinéus, a imponência do Midi d'Ossau, o vale dos Ibones e acima de tudo o prazer de ter conseguido chegar ali.

Mas se o sol esteve presente em quase toda a subida, assim que chegámos ao topo fomos presenteados com as primeiras pingas de chuva do dia. Infelizmente as pingas tornaram-se depressa em chuva e a 2.000 metros só agradecemos o facto de termos carregado os impermeáveis.

A descida fizemos por outro caminho. Subindo ao Collado Rojo situado entre o Vértice (2.559m) e o Pico de Anayet e daí seguindo um caminho até ao refúgio do outro lado do monte, já no Canal Roya. Porém as marcas do caminho desapareciam no meio de um pico menor muito rochoso e daí até ao vale foi em corta-mato. Ainda houve tempo para me enganar e dirigir-me ao refúgio errado o que nos fez perder algum tempo e acima de tudo cansar-nos ainda mais. Mas, vimos uma marmota, cavalos selvagens e cabras montesas, isto sem falar na quantidade enorme de vacas que cagam os caminhos existentes todos e fazem novos caminhos em todo o lado e que só enganam.

À chegada os pés estavam feitos num oito. Principalmente os da Cláudia que depois desta caminhada nunca mais calçou as botas durante as férias, pois criou uma bolha no calcanhar que infectou.

Mas o melhor destas caminhadas é o modo como a comida depois sabe melhor. Não é só nas caminhadas, mas tenho a sensação que a melhor coisa do campismo é mesmo as refeições e sentarmo-nos à porta da tenda a olhar a envolvente com um prato de uma massa qualquer na mão. Sabe sempre bem! Como se a comida feita num fogão a gás que mal se endireita em pé, numa panela mais amolgada que um sino de igreja e nuns pratos de plástico soubesse a um manjar de rei. Suponho que deve ser pelo ar puro que nos rodeia e naquela altura pelo cansaço e a satisfação de ter feito algo que nos agradou tanto.

Quinta-feira [14 de Agosto de 2003] fomos para o vale de Ossau, paralelo ao do Rio Aragão, pelo lado francês, passando por Borce uma pequena aldeia que nos aconselharam a ver pela sua traça medieval. Por amor de Deus! Que bela perda de tempo... Não fosse pelo almoço na tasca-supermercado-livraria da terra e tinha dado o tempo mesmo por perdido. Depois e além disso o lado francês dos Pirinéus é muito mais húmido e frio que o espanhol, pelo que mal passámos o Col du Somport, o tempo começou a piorar e só voltámos a ver o sol quando chegámos ao Col du Portalet. Ah! E ainda há os franceses que têm que levar as suas roulottes (caravanas) até mesmo à porta dos sítios que querem visitar e entopem as estradas todas. E quando chegam à fronteira param e ficam ali como se tivessem medo de apanhar alguma doença se atravessarem aqueles 5 metros que os separam de Espanha. A verdade é que fiz a subida do lado francês até ao Col du Portalet em fila e assim que cheguei à fronteira fiquei sozinho na estrada. Vivam os espanhóis.

Ah! Já me esquecia que fomos a Astún a estância de esqui espanhola e subimos no teleférico para vermos mais uns lagos. A Cláudia de chinelos queria subir aos picos todos para ver se via os Ibones de Anayet dali. Era giro ver o pessoal todo artilhado de botas, mochilas e batons para fazer uma caminhada de uma centena de metros quase sem desnível nenhum e a Cláudia de chinelos.

Mas voltando. Quando chegámos a Torla, perto do Parque Nacional de Ordesa e Monte Perdido, é que nos apercebemos da dimensão do mesmo e de que não se podia entrar no vale de carro, mas apenas no autocarro que existia para o efeito. Além disso a quantidade de gente que visita o parque é extraordinária e de muitos países, espanhóis na sua maioria, mas desde franceses, holandeses, alemães, belgas e até checos (a quem dêmos boleia)... Só portugueses é que eram dois! Bem, quatro, connosco!

É impressionante como nós portugueses (estou-me a incluir) somos tão de ideias fixas e pouco aventureiros. Nem parece que demos meio mundo ao Mundo ou já nos esquecemos?... Se calhar achamos que já não é necessário! Temos o Algarve e as melhores praias da Europa, porque é que havemos de nos ralar em ir para a montanha e logo em Espanha que ali tão longe. Montanha? Temos a Serra da Estrela... E o Gerês, que nesta altura do ano está apinhado de gente... Mas ninguém vai ao outro lado! "Para quê? É igual e ainda por cima eles falam estrangeiro!" Ou se vão é só para ir comprar caramelos... A verdade é que as praias do norte de Espanha têm a água mais quente que as do norte de Portugal. A areia é que não há como a nossa, nem no caldinho do Mediterrâneo... E os Pirinéus são tão grandes e tão bonitos que compensa os poucos quilómetros que temos que fazer a mais do que ir ao Algarve. Ah! E sem falar nas filas de trânsito, nos engarrafamentos, nas esperas de mesa no restaurantes, nos empurrões no bar e acima de tudo nos preços a pagar. Vão todos para o Algarve...

Eu não vou descrever o vale de Ordesa, mas posso vos dizer que não sei como é que se sonha em ir aos Estados Unidos e ao Grand Canyon, quando aqui mesmo ao lado e a menos de 1.000 quilómetros temos um parque natural que é património da humanidade, e que em nada fica atrás dos parques do sudoeste americano e ninguém lá põe os pés. É verdade que não aparece nos filmes de Hollywood, nem nas revistas de fotografia e nem nos á lbuns das melhores maravilhas da Terra, mas isso são tudo americanices. Até há um canyon que se pode fazer de carro, se não se quiserem cansar - Cañón de Añisclo – mas podem-no fazer em canyoning que deve ser uma loucura, pela beleza e pelos rápidos e estreitos.

Nós ficámos pela zona, cerca de três dias. Chegámos na quinta-feira [14 de Agosto de 2003] e partimos no domingo [17 de Agosto de 2003]. Ficámos no Camping Valle de Bujaruelo (http://www.campingvalledebujaruelo.com/index.asp) que fica num vale, cuja estrada de terra, junto ao rio, num desfiladeiro, parece saído de um filme. Talvez agosto não seja o melhor mês para estar lá, pelas enchentes de gente, mas o respeito que as pessoas têm umas pelas outras e o barulho da água corrente do rio, torna o ambiente muito calmo e acolhedor. Não se houve barulho algum depois das 23h e as manhãs são sempre muito sossegadas. A vista sobre o vale no patamar em que acampamos merece uma contemplação diária pela manhã e ao fim da tarde, quando o nevoeiro liberta ou invade o canyon de Bujaruelo.

Devido ao problema no calcanhar da Cláudia não fomos à Brecha de Rolando, como ela tinha sonhado, mas ficou previsto uma nova visita assim que a vida nos deixar. Mas, na sexta-feira [15 de Agosto de 2003] visitámos o vale e ainda fizemos uma caminhada, a Cláudia de chinelos e eu de sandálias. Uma coisa pouca, só para não dizermos que não fizemos nada... A verdade é que mais uma vez nos metemos num caminho que não era para chinelos nem sandálias, apesar de que era muito bonito, aliás deslumbrante, mas perigoso e muito aterrorizador. Começámos na Pradera de Ordesa (1.310m), onde o autocarro nos deixou e subimos à ponte do Circo de Cotatuero (1.660m) de onde se vê a deslumbrante cascata do mesmo nome e com mais de 200m de queda de água num anfiteatro natural. Mas em vez de voltar pelo caminho, que até era fácil e para chinelos, resolvemos continuar a subir até à falha de Canarellos e daí seguimos num caminho estreito num declive enorme sobre o vale a cerca de 300m do solo na vertical, até ao Bosque de Hayas. De chinelos e sandálias algumas passagens tinham de ser feitas com muita calma, concentração e atenção, uma pequena falha e íamos a voar até ao destino...

No sábado [16 de Agosto de 2003] com a preguiça fizemos o Cañón de Añisclo de carro e fechamo-nos dentro da tenda muito cedo, pois lá fora chovia torrencialmente. Mas o vinho rosé comprado em Olite (Navarra) fez o seu efeito sedativo e só eu é que acordei com o barulho da chuva a cair na tenda. Na noite anterior tínhamos sido visitados por uma trovoada que naquele vale se tornou um espectáculo ao mesmo tempo fantástico e aterrador. Imaginem que cada trovão era repetido pelo eco e fazia toda a viagem pelo vale acima repetindo-se em movimento. Lindo!

No domingo [17 de Agosto de 2003] rumámos a Barcelona... Na companhia de um espanhol chamado Raul, a quem demos boleia e com uma vida que eu depois vos conto. Mas antes ainda de vos deixar queria só contar-vos uma última história que se passou quando voltávamos do Cañón de Añisclo pela estrada de terra no vale de Bujaruelo. Não havia ninguém na estrada e um tipo numa carrinha pediu-me para abrandar. Quando parei ao lado dele, o homem, que era de Saragoça, disse-me que adorava Portugal e que há três anos que cá vem passar férias e que o nosso país é lindíssimo. Tinha acabado de voltar da Costa Alentejana e que adorou. Assim como adorou o Douro... Mas não falou no Algarve! Já viram? Eu só lhe pude dizer que também gostava muito de Espanha senão não estaria ali...

Mas a presença de um carro português devia de ser mesmo uma raridade (nós só vimos mais dois) porque noutra ocasião um tipo passou por mim na mesma estrada de terra e disse alto a rir-se "Xe eu tivesxe um carro como exse!"... Era de La Coruña! Só um galego...



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