Graças a estas novas tecnologias posso escrever-vos
enquanto estou aqui a apanhar um seca de 12 horas num avião
apinhado de gente. Além disso estes aviões americanos
só têm problemas (estou num Boeing 777-400). Tenho
um écran de TV nas costas do banco da frente que apenas
me permite ver as notícias de ontem, um filme japonês,
exercícios de relaxamento e moda. Sempre em contínuo.
Já adormeci uma série de vezes e fui vendo o filme
japonês por colagens, apanho bocados aqui e outros ali, fora
de ordem, que tudo somado faz com que tenha visto o filme todo.
Ah! E já vi as mesmas notícias umas 3 ou 4 vezes
mas nunca mudam.
Já são horas de estar acordado em
Portugal, embora no Japão já seja hora de jantar,
mas como andei a trabalhar até tarde nos últimos
dias, espero que não me dê o sono quando chegar a
Paris, daqui por quase 5 horas, pois ainda tenho outro avião
para apanhar.
Há pouco passámos os Urais, mas eu
estou numa fila central e não me apeteceu ir até lá atrás
ver a vista, porque há pouco só se viam nuvens e
aqui e ali uns bocados da Sibéria. Deve ser uma coisa linda,
viver naquela imensidão inóspita. Acho que só se
via água, gelo e estepe, pelos buracos das nuvens.
A minha vizinha do lado, que para além de
ser gorda, dar uns traques de vez em quando, quase cair para cima
de mim a dormir e decidir pintar as unhas a meio da viagem, até que é uma
tipa fixe. Ainda não me chateou para ir à casa de
banho. Chateia sempre a tipa do outro lado.
Nunca mais servem o almoço. O Amine vem no
mesmo voo que eu e já estivemos lá atrás a
comer e beber, mas falta algo de mais consistente que umas sanduíches
ou um sumo de laranja. Faltava-me agora um cozido à portuguesa,
um bacalhau à Gomes de Sá, uma cabidela, umas papas
de sarrabulho ou mesmo umas belas de umas tripas à moda
do Porto. Aí já podia competir aqui com a tipa aqui
do lado. Mas na verdade a comida japonesa é muito parecida
com a portuguesa, excepção feita ao Sushi e ao Sashimi,
porém começo a sentir falta de algo mais potente
como uns feijões, uns enchidos ou sangue...
Mas voltando à minha experiência no
Japão, acho que vos tinha deixado na minha aventureira viagem
a Noboribetsu-Onsen (que acho que quer dizer Termas Quentes da
Divisão de Escalada segundo me disse o Yoshida-san e o Ohkubo-san).
Apanhar o autocarro não foi fácil,
porque só tarde compreendi que as partes a rosa no horário,
eram relativas a uma empresa de camionagem e as partes a branco,
eram relativas a outra. Bem, se fosse só isso que eu não
compreendia era bom, pois para além das horas e os preços
tudo o resto estava em japonês, pelo que nem sabia a que
paragem correspondiam as horas e nem a que trajecto correspondiam
os preços. Mas nada de grave, pelo menos sabia a hora de
partida e a hora da chegada.
Depois de ter ido à plataforma dos autocarros
Chuo e descobrir que afinal o que queria apanhar era o Donan e
ter que andar para trás e para a frente no centro de camionagem,
lá consegui comprar o bilhete de ida e volta e entrar no
autocarro certo. Agora só tinha que sair na última
paragem, duas horas depois.
Foi o que aconteceu quando chegámos ao centro
de camionagem da Donan em Noboribetsu-Onsen. O mais engraçado é que
o símbolo das camionetas Donan parece-se com um pénis
com uma coroa em cima. Não havia que enganar qual era o
local a que tinha que voltar para apanhar a camioneta de volta
a Sapporo.
Mas antes disso atravessei a ilha de Hokkaido quase
da costa norte à costa sul. Não há quase nenhum
ponto do trajecto em que não se veja uma fábrica
ou casas. As marcas humanas estão por todo o lado, embora
esta ilha apenas seja habitada há cerca de 150 anos, mas
estes japoneses reproduzem-se como coelhos e há que pô-los
a viver em algum lado. Acho que passei por uns três campos
de golfe, todos com um centro de prática daqueles com dois
ou três andares e uma rede em frente com alguns 10m de altura.
Os japoneses gostam muito de golfe e sobretudo de baseball, só depois
vem o futebol.
Algures ao longe vi uma cúpula de um vulcão,
aparentemente inactivo. Vi o pacífico, pois já não
via o mar há uma semana e para quem vive tão próximo
dele (do atlântico, claro) como eu é difícil.
E lá chegámos a Noboribetsu-Onsen,
assim um misto de parque de diversões, com uma estância
termal e estância de neve. Mas esta não estava a funcionar,
obviamente, aliás pelo contrário, estava muito calor.
E ainda mais calor ficou quando entrei no Vale do Inferno, que
como o nome diz é uma coisa infernal. Um rio de água
enxofrada com uma temperatura de cerca de 50ºC atravessa um
vale não ficando nada vivo à sua passagem. O cheiro
a diabo está por todo o lado e a actividade vulcânica é uma
constante. Fumos e caldeiras em plena actividade fazem-me lembrar
que afinal de contas estou num país vulcânico, pois
já me tinha esquecido do terramoto da outra semana.
Segui um passadiço de madeira até bem
perto do centro do vale onde se pode ver uma caldeira no solo em
plena actividade. Pelo caminho ficaram dois pequenos templos e
um local onde se podia testar a temperatura da água. Queimei-me,
mas nada de grave. Foi um género de "Quem é que
ligou a água fria?" durante um banho lá em casa.
Parei de escrever porque estávamos a passar
sobre a Finlândia e quis ver os lagos do ar. Na altura em
que visitei a Finlândia não vos escrevi uma Crónica,
mas prometo que o farei um dia, pois foi o primeiro país
que visitei depois de um período difícil da minha
vida após o retorno dos Estados Unidos. E, de alguma maneira,
foi um país que me marcou. Se o Japão é o
exemplo de um país superpovoado e poluído, a Finlândia é o
exemplo contrário, onde a natureza tem um papel muito importante
e a população está dispersa. É bom
ver os contrastes agora...
Acho que se tivesse que escolher entre o Japão
e a Finlândia para viver uns tempos, preferia o Japão.
Mas não me importava nada de viver na Finlândia, embora
ache que quando se chega aos -20ºC o factor sobrevivência
começa a ser importante. No Japão, e especificamente
em Sapporo pode-se chegar a -10ºC, mas acho que aí existem
mais possibilidades de sobrevivência... Quando vivemos uns
em cima dos outros!
Acho que sou um privilegiado por já ter visitado
4 dos 5 continentes e conhecer países tão díspares
como a Finlândia e o Japão. Acho que o que mais me
agradou na Finlândia foi o que mais me chocou no Japão,
a importância da natureza no primeiro e o desprezo completo
pela preservação ambiental no segundo. Acho que não
vos falei no rio perto de Kamoi, que no dia do Tufão transbordou
e trazia à superfície mais lixo (garrafas, pacotes
e afins) que o rio Leça, lá perto de casa dos meus
pais. E olhem que é difícil competir com os sacos
de plástico e as tintas das fábricas de tinturaria
lá da zona.
Voltando ao Vale do Inferno (Jigokudani) depois
deste pequeno aparte. O passeio de madeira que leva até à pequena
caldeira quase no centro vale, passa sobre o riacho de água
azul esverdeada enxofrada, que parece um rio poluído. Há marcas
amarelas, do enxofre, em algumas partes, especialmente nas curvas
do riacho e a vegetação é nula (ou diferente
do habitual), mas também quem é que quer viver naquelas
condições. O cheiro é nauseabundo e só se
houve barulhos de água a borbulhar como se estivesse a ferver.
No meio de umas montanhas verdejantes umas paredes
desérticas e esfumar-se dão nas vistas. Espero que
dêem também umas boas fotos, mas àquela hora
vai ser difícil, pois eram 11h da manhã, mas como
o relógio destes tipos está meio adiantado e sol
levanta-se às 4h e põe-se às 19h, quer dizer
que as 11h deve equivaler às nossas 13h, uma má hora
para fotografar. Mas se calhar não teria outra oportunidade,
não é?
Segui o caminho por entre um bosque denso e barulhento.
Não sei o que era, mas parecia que estava na selva pelo
barulho ensurdecedor. O ambiente até era relaxante e o caminho
agradável, mas parei para comer umas bolachas e nem consegui
pensar tal era a barulheira. Parecia que estava num filme sobre
Vietname, só via pessoas de olhos em bico e parecia a selva.
Esperava uma emboscada em cada esquina...
O caminho levava ao lago de Oyunuma que segundo
as perguntas que me eram postas pelos sinais do caminho, tem cerca
de 1km de diâmetro, 22m de profundidade, a temperatura atinge
os 130ºC no fundo do lago mas à superfície é de
apenas (só) 50ºC e fica no sopé do Monte Tempo
("weather" em inglês, Hiyodi em Japonês)
porque as pessoas podem saber o tempo olhando para o fumo que sai
do vulcão no seu topo. Sim! Um pequeno vulcão em
plena actividade, mas sem grandes alarmes nem lava à vista.
Apenas muito vapor de água e um cheiro insuportável
a enxofre.
Voltei pelo caminho do monte Funami onde fui acompanhado
por imagens de guardiões vestidos de vermelho e por poemas
dedicados aos pássaros e plantas de Noboribetsu-Onsen. Um
caminho de beleza extraordinária, embora barulhento, que
calmamente me levou de volta à povoação. Estava
esfomeado e começava a sentir algum sono, porque isto de
acordar cedo ao domingo mata qualquer um.
Comprei um Sushi e umas prendas para a família
e sentei-me junto a um lago a comer. Ao longe reparei num teleférico
que parecia levar ao lago Kuttara, aquele que se dizia ter umas
das águas mais límpidas do Japão e que ficava
ali no topo do monte, dentro da cratera de um vulcão desactivado.
Mas já era tarde para tentar a caminhada de uns 7 quilómetros
e além disso precisava desesperadamente de um café.
Não sei se escolhi descafeinado na máquina
ou se estava completamente gaseado de todo aquele enxofre, mas
adormeci na viagem de volta no autocarro cujo símbolo é um
pénis coroado. E assim que cheguei ao hotel, por volta das
8h da noite, vi os primeiros dois golos da Argentina contra o Japão
e adormeci.
Isto foi o que vos escrevi no voo de volta, de Tóquio
para Paris, onde fiz escala antes de chegar ao Porto, depois de
mais de 24h de viagem. Ainda tive um problemazito com os tipos
do controlo alfandegário que não acharam muita piada
a um tipo que transportava um portátil e três câmaras
e vinha do Japão. Resultado, paguei IVA sobre uma das câmaras
novas.
E foi assim o Japão. Mais histórias
haverão mas vou vos poupar, por agora!
|