D14 QUARTA-FEIRA, 18 DE JUNHO DE 2003
Jigokudani - Fotografia de Rui Gonçalves

Graças a estas novas tecnologias posso escrever-vos enquanto estou aqui a apanhar um seca de 12 horas num avião apinhado de gente. Além disso estes aviões americanos só têm problemas (estou num Boeing 777-400). Tenho um écran de TV nas costas do banco da frente que apenas me permite ver as notícias de ontem, um filme japonês, exercícios de relaxamento e moda. Sempre em contínuo. Já adormeci uma série de vezes e fui vendo o filme japonês por colagens, apanho bocados aqui e outros ali, fora de ordem, que tudo somado faz com que tenha visto o filme todo. Ah! E já vi as mesmas notícias umas 3 ou 4 vezes mas nunca mudam.

Já são horas de estar acordado em Portugal, embora no Japão já seja hora de jantar, mas como andei a trabalhar até tarde nos últimos dias, espero que não me dê o sono quando chegar a Paris, daqui por quase 5 horas, pois ainda tenho outro avião para apanhar.

Há pouco passámos os Urais, mas eu estou numa fila central e não me apeteceu ir até lá atrás ver a vista, porque há pouco só se viam nuvens e aqui e ali uns bocados da Sibéria. Deve ser uma coisa linda, viver naquela imensidão inóspita. Acho que só se via água, gelo e estepe, pelos buracos das nuvens.

A minha vizinha do lado, que para além de ser gorda, dar uns traques de vez em quando, quase cair para cima de mim a dormir e decidir pintar as unhas a meio da viagem, até que é uma tipa fixe. Ainda não me chateou para ir à casa de banho. Chateia sempre a tipa do outro lado.

Nunca mais servem o almoço. O Amine vem no mesmo voo que eu e já estivemos lá atrás a comer e beber, mas falta algo de mais consistente que umas sanduíches ou um sumo de laranja. Faltava-me agora um cozido à portuguesa, um bacalhau à Gomes de Sá, uma cabidela, umas papas de sarrabulho ou mesmo umas belas de umas tripas à moda do Porto. Aí já podia competir aqui com a tipa aqui do lado. Mas na verdade a comida japonesa é muito parecida com a portuguesa, excepção feita ao Sushi e ao Sashimi, porém começo a sentir falta de algo mais potente como uns feijões, uns enchidos ou sangue...

Mas voltando à minha experiência no Japão, acho que vos tinha deixado na minha aventureira viagem a Noboribetsu-Onsen (que acho que quer dizer Termas Quentes da Divisão de Escalada segundo me disse o Yoshida-san e o Ohkubo-san).

Apanhar o autocarro não foi fácil, porque só tarde compreendi que as partes a rosa no horário, eram relativas a uma empresa de camionagem e as partes a branco, eram relativas a outra. Bem, se fosse só isso que eu não compreendia era bom, pois para além das horas e os preços tudo o resto estava em japonês, pelo que nem sabia a que paragem correspondiam as horas e nem a que trajecto correspondiam os preços. Mas nada de grave, pelo menos sabia a hora de partida e a hora da chegada.

Depois de ter ido à plataforma dos autocarros Chuo e descobrir que afinal o que queria apanhar era o Donan e ter que andar para trás e para a frente no centro de camionagem, lá consegui comprar o bilhete de ida e volta e entrar no autocarro certo. Agora só tinha que sair na última paragem, duas horas depois.

Foi o que aconteceu quando chegámos ao centro de camionagem da Donan em Noboribetsu-Onsen. O mais engraçado é que o símbolo das camionetas Donan parece-se com um pénis com uma coroa em cima. Não havia que enganar qual era o local a que tinha que voltar para apanhar a camioneta de volta a Sapporo.

Mas antes disso atravessei a ilha de Hokkaido quase da costa norte à costa sul. Não há quase nenhum ponto do trajecto em que não se veja uma fábrica ou casas. As marcas humanas estão por todo o lado, embora esta ilha apenas seja habitada há cerca de 150 anos, mas estes japoneses reproduzem-se como coelhos e há que pô-los a viver em algum lado. Acho que passei por uns três campos de golfe, todos com um centro de prática daqueles com dois ou três andares e uma rede em frente com alguns 10m de altura. Os japoneses gostam muito de golfe e sobretudo de baseball, só depois vem o futebol.

Algures ao longe vi uma cúpula de um vulcão, aparentemente inactivo. Vi o pacífico, pois já não via o mar há uma semana e para quem vive tão próximo dele (do atlântico, claro) como eu é difícil.

E lá chegámos a Noboribetsu-Onsen, assim um misto de parque de diversões, com uma estância termal e estância de neve. Mas esta não estava a funcionar, obviamente, aliás pelo contrário, estava muito calor. E ainda mais calor ficou quando entrei no Vale do Inferno, que como o nome diz é uma coisa infernal. Um rio de água enxofrada com uma temperatura de cerca de 50ºC atravessa um vale não ficando nada vivo à sua passagem. O cheiro a diabo está por todo o lado e a actividade vulcânica é uma constante. Fumos e caldeiras em plena actividade fazem-me lembrar que afinal de contas estou num país vulcânico, pois já me tinha esquecido do terramoto da outra semana.

Segui um passadiço de madeira até bem perto do centro do vale onde se pode ver uma caldeira no solo em plena actividade. Pelo caminho ficaram dois pequenos templos e um local onde se podia testar a temperatura da água. Queimei-me, mas nada de grave. Foi um género de "Quem é que ligou a água fria?" durante um banho lá em casa.

Parei de escrever porque estávamos a passar sobre a Finlândia e quis ver os lagos do ar. Na altura em que visitei a Finlândia não vos escrevi uma Crónica, mas prometo que o farei um dia, pois foi o primeiro país que visitei depois de um período difícil da minha vida após o retorno dos Estados Unidos. E, de alguma maneira, foi um país que me marcou. Se o Japão é o exemplo de um país superpovoado e poluído, a Finlândia é o exemplo contrário, onde a natureza tem um papel muito importante e a população está dispersa. É bom ver os contrastes agora...

Acho que se tivesse que escolher entre o Japão e a Finlândia para viver uns tempos, preferia o Japão. Mas não me importava nada de viver na Finlândia, embora ache que quando se chega aos -20ºC o factor sobrevivência começa a ser importante. No Japão, e especificamente em Sapporo pode-se chegar a -10ºC, mas acho que aí existem mais possibilidades de sobrevivência... Quando vivemos uns em cima dos outros!

Acho que sou um privilegiado por já ter visitado 4 dos 5 continentes e conhecer países tão díspares como a Finlândia e o Japão. Acho que o que mais me agradou na Finlândia foi o que mais me chocou no Japão, a importância da natureza no primeiro e o desprezo completo pela preservação ambiental no segundo. Acho que não vos falei no rio perto de Kamoi, que no dia do Tufão transbordou e trazia à superfície mais lixo (garrafas, pacotes e afins) que o rio Leça, lá perto de casa dos meus pais. E olhem que é difícil competir com os sacos de plástico e as tintas das fábricas de tinturaria lá da zona.

Voltando ao Vale do Inferno (Jigokudani) depois deste pequeno aparte. O passeio de madeira que leva até à pequena caldeira quase no centro vale, passa sobre o riacho de água azul esverdeada enxofrada, que parece um rio poluído. Há marcas amarelas, do enxofre, em algumas partes, especialmente nas curvas do riacho e a vegetação é nula (ou diferente do habitual), mas também quem é que quer viver naquelas condições. O cheiro é nauseabundo e só se houve barulhos de água a borbulhar como se estivesse a ferver.

No meio de umas montanhas verdejantes umas paredes desérticas e esfumar-se dão nas vistas. Espero que dêem também umas boas fotos, mas àquela hora vai ser difícil, pois eram 11h da manhã, mas como o relógio destes tipos está meio adiantado e sol levanta-se às 4h e põe-se às 19h, quer dizer que as 11h deve equivaler às nossas 13h, uma má hora para fotografar. Mas se calhar não teria outra oportunidade, não é?

Segui o caminho por entre um bosque denso e barulhento. Não sei o que era, mas parecia que estava na selva pelo barulho ensurdecedor. O ambiente até era relaxante e o caminho agradável, mas parei para comer umas bolachas e nem consegui pensar tal era a barulheira. Parecia que estava num filme sobre Vietname, só via pessoas de olhos em bico e parecia a selva. Esperava uma emboscada em cada esquina...

O caminho levava ao lago de Oyunuma que segundo as perguntas que me eram postas pelos sinais do caminho, tem cerca de 1km de diâmetro, 22m de profundidade, a temperatura atinge os 130ºC no fundo do lago mas à superfície é de apenas (só) 50ºC e fica no sopé do Monte Tempo ("weather" em inglês, Hiyodi em Japonês) porque as pessoas podem saber o tempo olhando para o fumo que sai do vulcão no seu topo. Sim! Um pequeno vulcão em plena actividade, mas sem grandes alarmes nem lava à vista. Apenas muito vapor de água e um cheiro insuportável a enxofre.

Voltei pelo caminho do monte Funami onde fui acompanhado por imagens de guardiões vestidos de vermelho e por poemas dedicados aos pássaros e plantas de Noboribetsu-Onsen. Um caminho de beleza extraordinária, embora barulhento, que calmamente me levou de volta à povoação. Estava esfomeado e começava a sentir algum sono, porque isto de acordar cedo ao domingo mata qualquer um.

Comprei um Sushi e umas prendas para a família e sentei-me junto a um lago a comer. Ao longe reparei num teleférico que parecia levar ao lago Kuttara, aquele que se dizia ter umas das águas mais límpidas do Japão e que ficava ali no topo do monte, dentro da cratera de um vulcão desactivado. Mas já era tarde para tentar a caminhada de uns 7 quilómetros e além disso precisava desesperadamente de um café.

Não sei se escolhi descafeinado na máquina ou se estava completamente gaseado de todo aquele enxofre, mas adormeci na viagem de volta no autocarro cujo símbolo é um pénis coroado. E assim que cheguei ao hotel, por volta das 8h da noite, vi os primeiros dois golos da Argentina contra o Japão e adormeci.

Isto foi o que vos escrevi no voo de volta, de Tóquio para Paris, onde fiz escala antes de chegar ao Porto, depois de mais de 24h de viagem. Ainda tive um problemazito com os tipos do controlo alfandegário que não acharam muita piada a um tipo que transportava um portátil e três câmaras e vinha do Japão. Resultado, paguei IVA sobre uma das câmaras novas.

E foi assim o Japão. Mais histórias haverão mas vou vos poupar, por agora!



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