D4 SEGUNDA-FEIRA, 7 DE ABRIL DE 2003
Eu num restaurante em Montparnasse - Fotografia de Fabrice Beaugrand

Há umas semanas estive em Paris em trabalho, e nessa altura comecei a escrever uma crónica daquelas para vos enviar. Porém e ao fim de dois dias de tentativas de escrever depois do sol se pôr e depois de algumas horas de muito trabalho mental, desisti. Mas ainda consegui escrever umas linhas que gostava de partilhar com vocês e que passo a transcrever. Lá para o final complementarei com o que se passou a seguir e com o que se tem passado ultimamente. Pois, foi assim...

Neste momento [17 de Março de 2003] em que vos escrevo estou em Paris na La Défense. Mais uma daquelas viagens tipo carro até ao Porto, uma hora no aeroporto, entra no avião, levanta voo, duas horas depois estamos a aterrar no destino, metemo-nos num escritório ou hotel, trabalhamos as horas normais, comemos comida à pressa, uma coisa qualquer, voltamos ao aeroporto e voamos de volta ao Porto onde nos espera um carro alugado que conduzimos até Aveiro e voltamos ao escritório para trabalhar. Talvez desta vez não seja desse tipo de viagem, em que os únicos monumentos que vemos são aeroportos, aeronaves e hotéis e em que o maior divertimento é o levantar e pousar do avião. Talvez desta tenha mais tempo para ver alguma coisa mais que o escritório, o interior do táxi ou os lençóis da cama do hotel.

Vou ficar três noites em Paris e pode ser que consiga ver a La Défense à noite, que nunca vi, ou ir ao Centro Pompidou ver uma exposição do designer Philippe Starck. Vamos a ver... Logo vos direi! Agora tenho que me ir encontrar com a Susana ao bar do Hotel. Lembrem-me de vos contar as histórias dos bilhetes no aeroporto e das minhas tentativas frustradas de falar francês. Quer acreditem quer não, estes chauvinistas cada vez que tento falar francês falam-me em inglês. Assim vai ser difícil melhorar o meu francês.

Já volto.

Voltei, depois de uma cervejinha com o Steve no bar do hotel, isto já depois de uma refeição levezinha no restaurante aqui do Mercure. Eu não percebo mas estes estrangeiros exageram no açúcar. As sobremesas por aqui são sempre tão doces. Comi um tiramisu tão doce que por pouco ia ficar na taça, coisa que vai contra a educação que o meu pai me deu e contra todos os meus princípios de glutão. Na verdade nem jantei, eu e a Susana comemos apenas uma entrada e uma sobremesa cada. É que ela está grávida e não pode deixar de comer, mas já era tarde para jantar.

Mas voltando ao assunto que me trouxe a Paris de França, a segunda cidade portuguesa em número de habitantes. Vim cá porque anda-se a integrar o software feito na Europa com o que é feito no Japão e há algumas coisas que não colam muito bem e então é preciso decidir onde se vai limar e acrescentar para que ambas as superfícies façam um contacto perfeito para a colagem. Para quem já não se lembra e embora pareça, o meu trabalho não é marcenaria, mas sim software para telemóveis.

Assim, e voltando ao trabalho acima descrito, eu e a Susana viemos de Portugal, o Steve veio da Inglaterra, para nos encontrarmos amanhã com um francês – Hubert - e depois de amanhã se nos juntar um japonês de seu nome Kosukegawa-san, para decidirmos como é que vocês no futuro irão aceder à Internet nos telemóveis de terceira geração. Ah! E na quinta junta-se o John Jennings (um outro inglês) para ajudar a rever os cenários. Como podem ver, aquilo que para vocês vai ser fácil, afinal levou a que 6 engenheiros se juntassem em França, durante 3 dias para produzir uma solução. Vocês só têm que carregar num botão...

Mas para acabar e antes de apagar a luz, porque como aqui têm uma hora a mais, significa que amanhã tenho que acordar mais cedo uma hora, vou-vos contar rapidamente a tal história dos bilhetes no aeroporto. Acontece que os computadores são uma grande ajuda, mas quando estão em baixo, esquecemo-nos como era a vida antes de os termos e dizemos mal deles. Foi o que aconteceu hoje. A rede informática da TAP não funcionava e então os nossos bilhetes não apareciam em lado nenhum, porque eram bilhetes electrónicos. Assim, e depois de ter sido avisado pela secretária da NEC para o facto, fui ao guichet da TAP tentar levantar os bilhetes, mas nem para isso havia computadores. Voltei ao check-in e já depois de as malas estarem a caminho do avião é que a tipa descobriu que não conseguia descobrir os nossos bilhetes. A Isaura (secretária da NEC) telefonou novamente e disse-lhe que não tínhamos bilhetes, mas que a bomba já estava a bordo. A hospedeira riu-se, mas mesmo assim não nos deu os bilhetes para podermos ir com a bomba.

Por fim e depois de mandarem um fax da agência de viagens a confirmar o pagamento e a 5 minutos da partida do voo é que nos deram os bilhetes. Corremos para descobrir que o avião estava atrasado 35 minutos. Será que não nos podiam ter avisado? Se calhar não havia computadores...

Até amanhã...

Hoje [18 de Março de 2003] acordei bem cedo. Embora tenha posto o despertador para as 7:15 (6:15 em Portugal), depois de me ter deitado por volta das 0:30 (11:30), a verdade é que acordei por volta das 6:45 (5:45) assustado porque o despertador não tinha tocado. Às vezes estas diferenças horárias pequenas são mais atrofiantes que diferenças mais significativas. Ao menos nos Estados Unidos sabia que com 8 horas de diferença estava todo trocado, onde era noite devia ser dia e vice-versa.

Mas chegámos cedo à NEC/FMDC, mas na verdade o Hubert não tinha ainda chegado e o Fabrice estava para Inglaterra. Mais valia ter dormido mais uma hora, porque os comboios estão em greve e sempre serviu de desculpa para o Hubert e bem podia servir para nós que andámos 15 minutos ao frio e a pé para lá chegar a tempo.

Depois seguiu-se o habitual conflito entre o portátil, a rede e as aplicações normais de trabalho, que conseguiram colaborar só muito tarde. No entretanto conhecemos o Kosukegawa-san, um japonês muito curtido que soube há pouco que até fala português. Por isso ele insistiu em ir a Portugal em vez de vir a Paris, que ainda não visitou e que aparentemente não pretende visitar. Disse-nos "Até Amanhã" (em português) antes de sairmos. O inglês dele é que nem por isso é bom, apesar de ser bom para um japonês.

O Steve deu-me uma encomenda que o Freddy me mandou de Inglaterra, composta por uma série de revistas e uns cabos para o telemóvel. Não é que o cromo abriu a encomenda, diz ele que com receio que fosse uma bomba, mas diz alguém que estava era à espera de encontrar droga. Para proveito próprio.

Não vos vou contar o que se passou em termos de trabalho, mas tivemos a discutir como Kosuke-san como é que vamos integrar o que ele fez com o que nós fizemos. E o John esteve em videoconferência a discutir o mesmo desde Reading. Uma brain storm multi-nacional, multi-língua e multimédia. Uma beleza.

Porém não posso deixar de falar nas diferenças que nos separam dos franceses e que só supostamente trabalham na mesma empresa que eu. Aparentemente, porque as diferenças são gritantes e as condições fazem-nos pensar que afinal nós somos é otários. Vejam lá que eles por trabalharam 37h por semana [nós trabalhamos 40] que está acima do que era normal, podem ter direito a mais 10 dias de férias para além dos normais 25 [22 para nós]. Além disso comem numa cantina relativamente boa e pagam cerca de 3 euros por refeição e têm café de borla [nós pagamos 0.25 por uma água tingida]. E nem falámos de ordenados.... Já não vale a pena comparar mais.

E será que eles são muito melhores que nós? Não! Eu não acredito! Um tipo que vem de Reading com umas folhas debaixo do braço rouba uma caneta no hotel, porque não trouxe nenhuma e nem BI traz, não pode ser muito bom! A verdade é que nós devemos mesmo ser otários... Não digam que é modéstia!

Acho que vou dormir antes que comece a guerra.

E a guerra começou! Mas nós estávamos a dormir. Eu estava! Por pouco que dormisse, foi preferível estar a dormir do que a ver a desgraça da guerra. A verdade é que tinha saído mesmo tarde na noite anterior. Nem para ver uma loja tive tempo, quanto mais vontade para apanhar o metro até ao Centro Pompidou que fechava meia-hora depois.

O que vale é que a comida estava uma maravilha. Como é de tradição, metade da ementa é composta por pato e eu como apreciador da ave não consegui resistir. É impressionante como o Steve e a Susana não conseguem perceber francês suficiente para saber o que pedir a partir de um ementa francesa. O que vale, e como já vos disse, é que em Paris o inglês já é falado pelos franceses.

Quando chegámos ao hotel, este estava cheio de Gendarmes. Carrinhas e autocarros deles. Como é que eles souberam que a nossa missão ali não podia ser comprometida por uma guerra qualquer no médio oriente, é que nunca vou saber. Parece-me que o meu chefe é amigo do Chirac... Pelo sotaque que têm ambos quando falam inglês!

Mas para além de uma larga centena de Gendarmes estavam no hotel hospedados quase meio milhar de japoneses. Todos com máquinas fotográficas e soquetes brancos. Alguns com cabelo da cor natural e muitas a andar em ponta dos pés... E a arrastá-los!

Trabalhar com japoneses é uma coisa fantástica. É muito difícil não sucumbir à gargalhada ao vê-los correr e mais difícil é não lhes bater ao vê-los a andar a arrastar os pés. Para além disso é muito difícil falar com alguém que para além da língua materna que nós não percebemos uma palavra, não percebem quase nada de nenhuma das que a gente fala. Pelo menos aprendi a dizer "sim" que se diz "Hai", mas que não imagino como se escreve. Para além disso aprendi a dizer Kon’nichi’wa (Olá) e wakarimashita (Compreendi).

Acho que gostava de aprender japonês! Nem que fosse para me sentir mais compreendido!

Apesar de tudo o Kasuke-san era um tipo porreiro. Na quarta [19 de Março de 2003] fomos jantar a Montparnasse com o Fabrice e o Hubert, e ao fim do segundo copo de tinto, o Kasuke-san já estava em grandes conversas com o Steve entre dois cigarros ao balcão. Eu acho que ele tinha dificuldade em entender o Hubert a falar inglês com o seu acentuado sotaque francês, além de que este pouco esforço fazia para se fazer entender.

Ainda passámos pela Torre Eiffel onde o Japonês tirou umas fotos, mas a minha vontade era de ir para a cama, depois de quase 12 horas de brain storm com japoneses, franceses e ingleses.

Acho que foi um alívio apanhar o táxi para o aeroporto na quinta [20 de Março de 2003], apesar de o condutor ser árabe. Não que eu tenha alguma coisa contra os árabes, mas ele topou que éramos portugueses, e depois dos apoios ou falta deles do nosso querido primeiro-ministro, uma pessoa já não sabe. Ele deu conta que éramos portugueses porque estava a ouvir uma rádio portuguesa...

Quanto ao apoio do nosso primeiro ministro, a verdade é que Portugal apoia a chamada Aliança Anglo-Americana e por mais que discordemos com isso é assim que somos vistos lá fora. Aliás, alguém pensa nos americanos e ingleses que não apoiam as decisões dos seus governos? Não! Os americanos e os ingleses querem a guerra. Todos! Pois é assim que pensam os franceses dos portugueses. Não pensem que não deixei de ouvir bocas pelo apoio dado pelo nosso governo a um esforço de guerra que não é nosso. O Aznar ainda compreendo que tem a ETA e quer ajuda na luta contra o terrorismo, mas nós portugueses quereremos o quê? A sede da NATO? Ou mandar trolhas para a reconstrução do Iraque? Se calhar mandamos os ucranianos que trabalham cá...

Mudando de assunto! A verdade é que no dia seguinte [sexta-feira, 21 de Março de 2003], depois de ter chegado na noite anterior por volta das 23:00, ainda tive que chegar às 9:00 e preparar uma apresentação para o Ian e David, os meus chefes quase-supremos de Inglaterra que visitavam a NEC em Aveiro. Acho que foi um dos momentos mais decepcionantes da minha passagem de já quase ano e meio, pela aquela empresa. Acontece que eu e a Susana preparámos um apanhado do que ficou decidido, em três dias de intenso trabalho, quase sem tempo para mais nada, com ingleses, franceses e japoneses para tentar solucionar um problema e depois da apresentação as dúvidas que se levantam prendem-se com o facto de não ser ou ser necessário fazer aquilo. Não podiam ter decidido isso antes de irmos? E ainda a preocupação era se o arquitecto (de software) inglês tinham concordado, porque eles não gostam do francês. Mas afinal de contas qual é o nosso objectivo não é colocar produtos no mercado? Interessa se é saído da cabeça de um francês, inglês, japonês, português ou ucraniano? Deu-me vontade de sair da sala e ir para casa...

Se acham que as coisas são mal organizadas em Portugal, experimentem trabalhar no estrangeiro...



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