Eu sei que não tenho escrito muitas vezes
(o que até é agradável para alguns) mas
algumas coisas de interessante até têm acontecido
desde lado das Crónicas. Para compensar o facto de que
nunca acabei de escrever as Crónicas da Califórnia,
talvez possa escrever algumas crónicas pós-Califórnia
com algumas das minhas aventuras e desventuras.
Hoje decidi escrever-vos acerca da minha última
aventura com a Cláudia, lá para os lados da linha
do equador, entre o Natal e a passagem de ano.
Ultimamente todo o dinheiro é pouco para
a vontade que há em viajar e conhecer sítios
e culturas novas. Espanha já é demasiado perto
e conhecida e o resto da Europa ocidental não difere
muito. Afinal de contas somos todos europeus. Quer queiramos
ou não existe uma identidade continental, que só é preceptível
quando saímos do velho continente e nos deparamos com
atitudes e maneiras de estar na vida únicas e diferentes.
Por isso decidimos rumar a África. Não
ao norte de África onde seria óbvio, pois é mesmo
aqui ao lado, mas à África equatorial. Mas não
pensem que saímos do óbvio, por causa disso.
Fomos para São Tomé e Príncipe, a antiga
colónia portuguesa mesmo em cima do equador e no meio
do golfo da Guiné.
Não sei se leram a Rotas e Destinos deste
mês, mas a jornalista consegue dar uma boa ideia do que
pode ser uma viagem às ilhas. Eu vou tentar cingir-me às
aventuras que tívemos por lá, embora seja difícil
contar tudo em apenas uma Crónica.
A sensação que se tem ao chegar é que
não o deviamos ter feito. Depois de seis horas de voo,
de uma pista minúscula que depois de atravessada a pé nos
leva ao aeroporto, depois de passar os normais controlos alfandegários
(em versão áfrica) e de sermos enfiados numa
carrinha até que não haja mais espaço
e de sermos levados numa viagem alucinante pelo centro da capital,
fica a sensação o-que-é-que-estou-aqui-a-fazer-?
Tudo é diferente! Tudo! Os cheiros, as
cores, os hábitos, a temperatura, a comida, a bebida,
as vistas... Tudo! E no início é chocante, porque
nós humanos somos adversos à mudança e
as mudanças, ali, no espaço de horas foram imensas.
Em São Tomé não há seguros.
E quando quisémos alugar um carro, também não
havia. Bem, não haviam nas normais agências de
aluguer, porque na recepção do nosso hotel havia.
Não é que fosse um aluguer normal, não!
Era um aluguer a um particular que alugava o carro para ter
mais uns trocos. E que trocos! O que pagámos pelo carro
em cinco dias equivale ao ordenado de um polícia de
dez meses.
Mas o jipe era porreiro. Era um Toyota com 256
mil quilómetros, mas com o óleo mudado sempre
que era preciso. A embraiagem estava a precisar de ser mudada
e a bateria ainda nos deixou mal um dia. Mas de resto papava
os buracos da estrada (e acreditem que não eram poucos)
como mais nenhum.
Um dos dias decidimos passar o dia na praia.
Fomos para a praia do Governador, que fica no norte da ilha
e que para lá chegar tem que se seguir uns caminhos
fora de estrada e por fim chega-se à praia deserta.
Tão deserta que por pouco tínhamos que voltar
a pé. A bateria resolveu simplesmente não funcionar
e o jipe não pegava. O que nos safou é que um
casal de franceses (aliás, ela era Jugoslava) que davam
aulas de Inglês no Gabão nos deram boleia. Acreditem!
Franceses a dar aulas de Inglês no Gabão numa
praia deserta em São Tomé, existem. E são
simpáticos!
Mas deixemos o carro! Bem, foi quase isso que
fizemos. Mas eu voltei mais tarde com o dono e o recepcionista
para empurra-lo ladeira acima e pegá-lo. Depois disso
nunca mais deu problemas.
São Tomé tem três ou quatro
estradas. Uma para o aeroporto, uma para sul, uma para norte
e outra para a montanha. Há quem considere a estrada
sul e a do norte a mesma, a cidade de São Tomé é que
fica a meio. A estrada para sul (vamos chamá-la assim)
tem cerca de 50kms (talvez 60) e acaba em Porto Alegre, passando
por São João dos Angulares e Ribeira Peixe, entre
outras povoações. Até São João
a estrada está num estado que não lembra uma
estrada em obras em Portugal. Depois de São João
e até Ribeira Peixe não há estrada. Não
há é como quem diz, mas o pavimento é quase
inixistente. A partir de Ribeira Peixe até Porto Alegre
a estrada está em óptimo estado e até tem
marcações na estrada, tornando-se eventulamente
na melhor estrada da ilha. A menos de uma derrocada que tapou
uma faixa e duas pontes que cairam, mas que já foram
substituídas por umas passagens sobre os rios uns metros
ao lado.
A explicação para que esteja em
tão bom estado é porque não há tráfego
quase nenhum nessa zona da estrada. Tráfego é algo
que dentro de São Tomé pode ser uma dor de cabeça.
As ruas têm todos os sentidos, mesmo aqueles que vocês
acham que é impossível ter, alguém já se
lembrou de provar o contrário. A praça de taxis
(ou autocarros) é algo irreal e indiscritível,
especialmente na vêspera de passagem de ano.
Mas deixemos isso para mais tarde. Estava a
falar-vos da estrada sul da ilha. Quando a fizemos a primeira
vez foi um choque. Tínhamos acabado de chegar e fomos
levados pelo recepcionista do hotel até fora da cidade
em voo razante até à cidade de Santana. Nunca
pensei que sobrevivesse a uma viagem a 100-110 km/h numa estrada
daquelas e com o trânsito que tem. E cheguei a ver alguns
São Tomenses a desviarem-se no último momento
da morte certa contra a grelha do jipe acabado de alugar. O
que vale é que Santana até é perto e àquela
velocidade ficou ainda mais perto.
É difícil descrever o modo como
as pessoas vivem. Eu sabia que São Tomé é pobre,
mas é difícil imaginar que seja tanto. As casas
estão assentes em estacas e por baixo das casas povoam
os porcos e cabras que se encarregam de acabar com o verde
e de fazer as suas necessidades onde as crianças brincam.
Aliás, os humanos fazem as necessidades onde lhes é mais
conveniente e onde a vontade aperta. É muito normal
que seja ali mesmo na praia, na rua ou numa esquina.
Mas são felizes! Muito! Se choca parar
numa aldeia, porque a visão e o cheiro são logo
agredidados pelo modo como se vive, depressa nos esquecemos
porque somos rodeados de crianças que alegremente nos
pedem rebuçados (Doci! Doci!) e canetas (Stilo!). Quando
digo crianças refiro-me a dezenas delas, como poderão
ver nas fotos.
Mas não são só as crianças
que são felizes. O povo é feliz! A natureza foi
generosa com eles e pode-se recolher do mato quase toda a comida,
que é feita à base de fruta, ervas e o peixe
que é pescado ali mesmo naquelas águas quentes
de 28º. A população, salvo os que trabalham,
vive do que recolhe e tem muito tempo para ser feliz, dançar
e cantar.
Ao longo da estrada as praias desertas seguem-se
umas atrás das outras. Umas mais acessíveis outras
menos, mas todas povoadas de coqueiros. Umas com areia mais
branca que outras, mas todas com água quente. É difícil
não estar horas dentro de água e não ficar
com a pele dos dedos enrugada. Também é difícil
não ter a companhia de alguns miúdos que acham
piada ao facto dos brancos gostarem de estar ao sol. Conhecemos
muitos, o Amilcar, o Wanderlei, o Du, o Alexandre, o Chalana
e tantos outros que com um sorriso na cara contagiavam qualquer
um.
Eu sou sincero e até ao fim sentia-me
constrangido quando parava o jipe numa aldeia e era rodeado
por miúdos. Não sei mas acho que me sentia um
priviligiado por ter coisas que eles não tinham, mas
na verdade os previligiados eram eles. Depende do ponto de
vista. No ponto de vista dos locais, nós somos priviligiados
porque temos dinheiro e vivemos num país "rico". É tão
subjectivo...
Para terem noção do privilégio
que é ter mais algumas coisas materiais, era normal
pedirem-nos 1 conto para comprar vinho para a passagem de ano.
1 conto são 1000 dobras que equivale a uma nona parte
de um euro, sendo portanto 22,275 escudos.
Mas também há os espertos. Ou
amigos, como passarei a explicar.
Com o calor normal e a humidade do ar tornava-se
difícil não andar sempre molhado, quer porque
se suava, quer porque se tomava banho no mar e não se
conseguia secar. Pois numa dessas ocasiões em que decidi
andar de tronco nú a conduzir e sendo domingo, ao passar
pelo centro da segunda cidade - Neves - fui mandado
parar por um polícia. Gerou-se uma confusão,
porque apreendeu-me os documentos e eu neguei-me a prosseguir
sem eles. Mas ele insistia para eu seguir e que fosse falar
com ele ao posto da polícia de São Tomé.
Lá me deu uma guia escrita à mão (e que
infelizmente não a tenho) que dizia que os documentos
tinham sido apreendidos porque circulava conduzindo em tronco
nú.
Só visto! Na verdade, o polícia
(não vou dizer o nome para não criar problemas)
já estava à nossa espera no hotel quando chegámos
a São Tomé. Segundo ele os locais começaram
a protestar quando eu passei em tronco nú e ele não
teve hipotese se não mandar-me parar quando eu voltei
para trás. Mas ele não queria criar problemas
e não me queria multar, mas não podia ser desauturizado
em frente daquela gente toda que num domingo à tarde
estava na rua de Neves.
Deu-me os documentos e eu dei-lhe 40 contos
(40.000 dobras) para beber uns copos na passagem de ano. Não
chegava a 5 euros! Mas era cerca de um quinto do ordenado mensal
dele, que segundo ele eram "10 notas de 20 contos mais
uma", ou seja, 220 contos, 220000 dobras, cerca de 25
euros. Até combinámos ir almoçar juntos,
mas depois não foi possível e ele não
apareceu. Apareceu na noite anterior à nossa vinda para
pedir desculpa e despedir-se.
E há imensas histórias que se
podem contar porque as diferenças culturais são
imensas. Mas há coisas inesquecíveis como a passagem
de ano, na Roça de São João, rodeado de
tochas e velas (não tem electricidade) a comer calulu,
cachupa e porco no espeto a ouvir os tambores e os cantares
dos locais, a conversar com franceses, um sueco, uma noroeguesa,
uma jugoslava, um casal de belgas, umas portuguesas e uma série
de São Tomenses.
Vai ser muito difícil esquecer um fim
de tarde na praia, a chover ao pôr-do-sol e a boiar dentro
de uma água quente e calma.
Vai ser ainda mais difícil esquecer os
sorrisos das crianças e das mulheres a lavar a roupa
no rio.
Talvez volte em breve!
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