C146 SEXTA-FEIRA, 11 DE JANEIRO DE 2002
Emboscada - Fotografia de Rui Gonçalves

Faz hoje dois anos que parti para uma aventura que não sabia como iria correr ou acabar, mas que, agora, no final é sempre boa. Ainda me lembro como se fosse hoje da calma como cheguei a uma terra desconhecida... Aterra das oportunidades! E ainda me lembro de como me custou deixar esta terra... Assim como me custou deixar a outra... Mas isso só irão saber daqui a umas crónicas.

No entretanto e para comemorar o aniversário resolvi retomar a escrita das crónicas, para ver se acabo de vez com esta fase da minha vida e enterro alguns esqueletos.

Nestes cinco meses que passaram sem Crónicas, o que para alguns se tornou algo de quase intolerável, passaram-se algumas coisas dignas de uma nota aqui. Repararam que para além do sucesso do Manu Chao, depois de ter sido falado aqui nas Crónicas, agora uma empresa multinacional de comunicações resolveu adoptar como tema de um comercial uma música dos Dandy Warhols, só porque estes foram inseridos na banda sonora das Crónicas. E além disso vêem a Portugal para reproduzir ao vivo e no nosso território, o concerto que em breve aparecerá nas Crónicas, também.

Além disso há um tema de uns tais O.P.M. que se chama "Heaven is a Halfpipe", que infelizmente não coube na banda sonora e nunca aqui foi referido, mas que foi um dos temas mais divertidos e que se ouvia insistidamente na rádio durante as férias e que ultimamente anda a passar em todas as rádios portuguesas. Como podem ver, as Crónicas da Califórnia tornaram-se uma referência dos tempos modernos.

Mas, ainda se lembram onde estávamos? Eu e a Cláudia andávamos há uns dias de férias pelo sul da Califórnia e estávamos em Joshua Tree National Park. Mas se não se lembram podem sempre voltar a recordar em http://www.ruigo.net/sf/, mas agora voltemos ao que interessa...

Quinta-feira, 10 de Agosto de 2000

Felizmente este parque era bem mais silencioso que os últimos. Não haviam aviões, nem mexicanos e nem animais imaginários que bicavam a minha cabeça, pelo que fomos acordando com os raios de sol da manhã. Não havia uma sombra e cerca das 09h30m já se tornava impraticável o ar e o calor dentro da tenda.

Resolvemos acordar, sair e desmontar o acampamento. Tínhamos consultado, na noite anterior, os panfletos que tinha trazido "emprestado" do centro de recepção e resolvemos fazer uma pequena caminhada pela fresca da manhã. Eram só 3,7 milhas (5950m) para cada lado, desde o oásis de Cottonwood Spring, onde era o centro de recepção e o parque de campismo, até ao oásis de Lost Palms. O panfleto dizia que era uma das mais memoráveis caminhadas do Parque Natural... Mas em breve iria tornar-se numa das mais memoráveis caminhadas da minha vida.

Quando saímos do parque de campismo já não estavam lá os nossos amigos checos da noite anterior. Eu suponho que eles dormiram no carro e foram-se embora com os primeiros raios de sol, antes que viesse o ranger, para não terem que pagar a estadia.

Parámos o jipaço no oásis de Cottonwood Spring. Este oásis foi muito importante para os mineiros que por ali andaram no fim do século XIX. As árvores que por ali existem ainda são desse tempo e foram plantadas pelos mineiros para que pudessem usufruir de umas sombras. Àquela hora da manhã não parecia muito necessário, mas quando voltássemos da nossa pequena caminhada, ia-nos saber pela vida... Literalmente!

Entrámos pelo caminho, que como era de esperar estava bem assinalado. Levámos connosco cerca de meio galão de água (quase dois litros), o suficiente para uma caminhada de cerca de duas horas à temperatura das 10h da manhã e para duas pessoas. Estes cálculos foram feitos com base no relevo do lugar que era quase inexistente e no facto de se conseguir andar bem à média de 5 km/h.

Porém só chegaríamos cerca de 6 horas mais tarde. O caminho era relativamente fácil. Começava a subir por entre pedras e cactos, mas sem muita inclinação. Andámos a bom ritmo...

A todas as esquinas esperava ver uma cascavel, um escorpião, um coiote ou mesmo uma cabra... Mas o mais que consegui ver foram cactos e ratos-cangurus, umas criaturas fantásticas que andam como os cangurus e devem reproduzir-se como ratos, porque estavam em quase todo o parque. Mas fora de brincadeiras, eram mesmo bonitos porque se parecem com hamsters mas andam aos saltos como os cangurus e muito rápido o que torna difícil vê-los com clareza.

Um bom bocado depois de termos saído, quando o calor do deserto já se fazia sentir e quando achávamos que deveríamos estar a chegar ao tal oásis, deparámos com uma placa que tinha um número 2. Pois, só tínhamos andado 2 milhas e ainda faltavam quase duas para chegar ao nosso destino.

O caminho tornou-se cada vez mais difícil de percorrer. O calor apertava e tínhamos que poupar água para a volta. Passámos um desfiladeiro em que o caminho se tornava em areia, a todo o momento podíamos ser apanhados por uma emboscada dos índios. A atenção tinha que ser redobrada, mas as forças esvaziavam-se ao sol. Uma pequena subida e ali estava o oásis... Uma série de palmeiras monte acima e um vale profundo. Ouviam-se umas aves e tínhamos esperança que houvesse água... Não para beber, mas para nos molharmos pois estávamos no limite das nossas forças.

Descemos ao vale, mas água nada! Se tivesse lido com atenção o panfleto já sabia que as palmeiras são mantidas por um curso de água subterrânea. Pelo menos tinha uma sombra e sítios para nos sentarmos a descansar.

A Cláudia adormeceu tal era o estado de cansaço. Eu tentei manter a cabeça fresca e não pensar que nos faltava voltar. Esperámos um bom bocado ali à sombra... Talvez uma hora ou mesmo duas, pois não tínhamos noção do tempo... Mas pareceu-me que foi pouco mais que uma meia hora.

Resolvemos voltar, pois estávamos a adiar o inevitável, já tinha passado a hora de maior calor e estávamos com fome. Acima de tudo estávamos no limite das nossas forças... Especialmente a Cláudia que começou a sentir-se mal! Todas as sombras eram boas para parar. Acho que parámos cerca de uma dezena de vezes em sítios em que sombra era meramente uma miragem. A Cláudia deitou-se na areia do caminho à sombra de uma pedra que apenas protegia metade do corpo dos raios do sol. Eu tentei tudo para a persuadir a continuar, embora eu mesmo duvidasse que poderia continuar. Não podia estar ali parado ao sol e não havia uma sombra para mim.

Disse-lhe que me ia embora na tentativa de a demover, mas acho que não me ouviu. Prossegui uma dezena de metros e deitei-me debaixo de um arbusto quase à sombra, à espera que ela tomasse a iniciativa de prosseguir. Acho que passei pelas brasas e quando voltei a mim só pensei em ir buscá-la.

Falei com ela! Negou-se a prosseguir... Pediu-me que fosse buscar ajuda.

Num acto quase de desespero expliquei-lhe que se naquele momento fosse buscar ajuda, as férias muito possivelmente acabariam por ali. Isto porque a ajuda nos Estados Unidos em casos destes é um helicóptero com direito a equipa de salvamento e hospital, coisas que naquela terra custam muito dinheiro. Só assim a consegui convencer a continuar.

A cerca de uma milha do oásis onde tínhamos deixado o jipaço, já conseguíamos ver as árvores e os carros. Foi como se tivéssemos rejuvenescido! Acho que fiz o último quilometro em piloto automático só a olhar para o jipaço e a imaginar os sumos e as cervejas que lá tinha dentro. De vez em quando olhava para trás para confirmar que a Cláudia me seguia. Ela vinha como eu... Olhava o horizonte como se mais nada interessasse.

Passou por nós, já na descida final, um homem com um garrafão de água na mão. Perguntou-nos se valia a pena ir até ao outro oásis... Adivinhem o que lhe dissemos. A seguir passou um casal de italianos apaixonados. Não foram muito longe... Percebo agora porque ninguém se cruzou connosco durante a nossa pequena caminhada. Foram mais inteligentes que nós! Mas ainda chegámos com água no cantil... Depois de quase 12 quilometros debaixo de um sol de deserto.

A Cláudia ficou no oásis, deitada à sombra, enquanto eu me arrastei até ao jipaço para ir buscar água, sumos e comida. Mas esta última não entrava... Ficámos ali a retemperar forças cerca de uma hora... Até que decidimos ir passar o corpo por água nas casas de banho do parque de campismo. Deviam de estar cerca de 30 e muitos graus centígrados, mas eu tremia de frio quando saí debaixo da água na casa de banho. Nunca tinha sentido tal coisa...

Demorámos, mas conseguimos em parte retemperar as nossas forças. Nesse dia bebemos cerca de um galão (3,8 l) de água cada um e só comemos fruta a tarde toda, pois nem sequer conseguiamos pensar em outro tipo de alimento, nem sequer imaginar comida quente.Decidimos ficar por ali e gozar o que nos restava de Joshua Tree em vez de partirmos para o Grand Canyon ou coisa parecida. Fomos ao centro de recepção e comprei o cartão do National Park Service que permite entrar em todos os parques naturais dos Estados Unidos sem pagar, ao portador e aos acompanhantes.

Contámos a história da caminhada à recepcionista que ficou escandalizada com a nossa falta de consciência, mas que foi muito simpática e perguntou se não precisaríamos de ajuda médica... Eh! Calma! Estivemos mal, mas somos portugueses, gente de raça e fibra... Bem! Mas o deserto arrasa com qualquer um... Especialmente um deserto a mais de 1000 m de altitude.

A verdade é que estávamos há um dia em Joshua Tree e ainda não tinha visto nenhuma. Já tinha visto uma série de cactos com nomes sonantes como Ocotillo, Yucca e Cholla, já tinha visto Palmeiras da Califórnia, mas uma Joshua Tree é que só na capa do disco homónimo dos U2.

Metemo-nos no jipaço, ligámos o ar condicionado e fomos pelo parque a fora. Parámos no Cholla Cactus Garden, que é uma aglomeração de cactos desse nome que está vedada ao público para que não seja destruido e que portanto só se pode apreciar a partir de um miradouro a cerca de uma dezena de metros, ao sol e ao calor... De volta para o ar condicionado.

Passámos no Hidden Valley, que de escondido já só tem o nome, porque é onde está um dos parques de campismo e que estava um bocado cheio. O vale chama-se assim porque está rodeado de rochedos (boulders) por todo o lado o que o torna num sítio agradável para se resguardar do calor do dia, o frio da noite e de eventuais inimigos.

Um bocadinho de todo o terreno perto da Barker Dam, que era mais um represasita sem água que propriamente uma barragem (Dam). Pelos vistos servia para os animais beberem, mas não sei como, se a água tinha evaporado. Estes americanos são demais, marcam no mapa estas coisas como se fossem algo de extraordinário e depois quando se chega lá depara-se com cada coisa que para nós é do mais normal. Ali no meio do deserto alguém há cerca de cem anos resolveu parar um riacho para poder armazenar as suas águas para quando fossem precisas. Depois fizeram um parque natural e resolveram classificar o sítio como se tivesse algum interesse. Imaginem que na Serra da Estrela marcavam como sítios de interesse todos os tanques e poços das casas...

Finalmente as primeiras Joshua Trees. Parei para preparar a câmara para uma foto com a Cláudia e a maior Joshua Tree das redondezas. Consegui colocar o micro tripé numa rocha e foquei. Estava tudo preparado. Chamei a Cláudia... Mas ela estava a dormir! Sim! Estava dentro do jipaço ao sol, cansada e o suor escorria-lhe pela cara abaixo...

Tirámos a foto e prosseguimos. Uma centena de metros à frente estava um coiote. Em todo o lado se lê que não se deve alimentar os animais selvagens e ali naquele momento percebi porquê. Depois de alimentados pelo homem os animais perdem alguns dos seus instintos selvagens... O coiote veio ter connosco para que lhe déssemos comida, num gesto típico de quem estava habituado a que assim se passasse. Aquele coiote, que deveria ser ainda jovem, estava destinado a não mais procurar comida. Mas o mais curioso é que quando lhe apontei a câmara, ele fugiu, só voltando quando a escondi. Deveria ter medo em consequência de algum mau trato... Já não me lembro se lhe demos alguma coisa de comer, mas acho que não. De qualquer maneira é irrelevante.

Seguimos e fomos fazer um percurso de 4x4 assinalado no mapa. Afinal de contas tínhamos um jipaço e tínhamos que o usar. Fomos fazer o Geology Tour Road. Segundo o guia eram 18 milhas com algumas das melhores rochas do parque, mas eu sou sincero, não tinha interesse absolutamente nenhum. Aliás nem o fizemos todo porque estava em mau estado e não tinha nenhuma beleza de extraordinário. A não ser as Joshua Trees. São árvores enigmáticas, são tão esquisitas e invulgarmente diferentes que se tornam lindas. São um misto entre árvore com ramos, mas como se de um cacto se tratasse. É difícil de definir e muito difícil de captar em fotografia a ideia de um campo de Joshua Trees. Só visto... Acho que essa é a maior beleza do parque.

Ainda resolvemos metermo-nos em aventuras e fomos fazer uma pequena caminhada de uma milha fechada, pelo Hidden Valley, que afinal era bem mais bonito que imaginava, pois o que tinha visto era apenas o parque de campismo. O Hidden Valley é mesmo um vale encantado cheio de pequenas Joshua Trees, que ao fim do dia com o sol já quase a pôr torna-se especialmente belo. Ah! Ainda podem-se ver uns petroglífos numa das grandes rochas do vale, mas que alguém se lembrou de pintar por cima a branco...

Já com o sol abaixo do horizonte, ainda conseguímos chegar a Keys View, o local que no guia do parque dizia ser um ponto cénico notável de onde se podia apreciar todo o vale, as montanhas e o deserto. Era um ponto a cerca de 1500 metros de altitude de onde se podia ver Palm Springs, o oásis mais conhecido de todos os Estados Unidos.

Realmente era um ponto notável com uma vista extraordinária que ficava ainda mais notável pelo facto de estarmos a ver o céu já com os tons de pós-pôr-do-sol. Não fosse o nevoeiro e poluição que se abatia sobre o vale de Palm Springs... Mas pronto!

Quando lá chegámos deparámos com um cavaleiro da idade média com uma espada enorme que descia as escadas de acesso ao miradouro... Atrás dele vinha uma equipa de filmagem. Provavelmente estavam a gravar um filme qualquer sobre a idade média... Em Joshua Tree? Na idade média o que havia em Joshua Tree eram indios e pouco mais... Mas a vista dali devia de ser muito semelhante a... Provavelmente o filme era sobre as cruzadas e se calhar ali parecia-se com algum lugar do norte de África, pelo menos para aqueles americanos. Ficámos a ver a luz do céu a passar de laranja a rosa e a acabar em tons de azul muito escuro, enquanto as luzes de Palm Spring ganhavam importância na paisagem.

Estava na hora de começar a pensar em arranjar um sítio para dormir e comer. A povoação mais próxima e que não nos afastava do caminho previsto para o dia seguinte era Twenty Nine Palms, um outro oásis na parte norte do parque.

A Cláudia voltou a adormecer. E eu que vinha de janela aberta comecei a sentir um calor cada vez maior enquanto descíamos de Joshua Tree para 29 Palms. Descemos quase mil metros em linha recta e quando chegámos ao dito oásis a temperatura estava bem mais acima da que tínhamos deixado lá em cima.

Há uns tempos ouvi uma música do Robert Plant que se chamava "29 Palms" e que dizia:

"29 Palms
I feel the heat of your desert heart
Leading me back down that road
Leads back to you"

Não podia estar mais certo! Se nós tívemos calor em Joshua Tree, 29 Palms era um forno às 9h da noite.

Tínhamos decidido ter uma noite mais descansada e entrei no primeiro Motel da estrada. The Sunset Motel... O nome era fantástico! Devia de ser o momento mais desejado naquelas paragens. E além disso dizia que ofereciam cubos de gelo....

Entrei! Como de costume fui atendido por uma indiana. Tenho a impressão que 90% dos Moteis são geridos por senhoras vindas da India.

"$49 um quarto"... O preço normal! Disse-lhe que tinha que consultar a minha esposa que estava lá fora no carro. Nem foi preciso, porque ainda não tinha saído da recepção e o preço já estava em $39. Insisti em falar com a Cláudia, mas a recepcionista deve ter gostado tanto de nós que insistia em baixar o preço... Digamos que depois de lhe dizer que andávamos em parques de campismo, consegui baixar o preço para $29, quase metade do inicial.

Tiramos o essencial do jipaço para o quarto e depois de vestir o fato de banho... Imaginem que o Motel tinha piscina e que esta estava aberta até às 10h da noite. Mergulhámos! A água estava aquecida, depois de alguns dias ao sol do deserto. O ar estava insuportávelmente quente. Mas eu tremia de frio na água e fora dela... A caminhada tinha batido bem! Acho que ficámos na piscina até que o corpo se habituou de novo à temperatura dele. Uma meia hora ou coisa parecida!

Tomámos banho e fomos jantar! Finalmente relaxados e calmos, depois da aventura da manhã que se estendeu a parte da tarde e que nos abalou por pelo menos mais um dia ou dois.

Fomos ao único restaurante aberto em 29 Palms. Pelo menos o único que podia orgulhar-se de poder usar esse título, porque de resto ainda havia o KFC e MacDonalds, pelo que percebemos pela pequena volta que démos pela cidade (ou vila).

De seu nome How How era por sinal o restaurante mais perto do motel e era chinês, o que servia perfeitamente, desde que houvesse bebidas frescas. Bebemos mais liquidos do que comemos sólidos. Para além da água gelada (gratuita) ainda bebemos duas coca-colas cada um.

A única mesa ocupada para além da nossa estava rodeada de Marines, um deles por sinal de origem asiática. Isto porque em 29 palms existe um Marine Corps Air Ground Combat Center, que suponho que é a única razão pela qual a cidade é tão grande ou existe ali no meio do deserto, porque em termos turisticos não tem nada. E em termos de recursos... Bem! Só se fosse na extracção da areia...

Na próxima crónica conto mais acerca desta base dos Marines e do nosso maravilhoso quarto de motel. Mas por agora... Fomos dormir!



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