Convém
explicar alguns factos, antes de entrarmos na próxima
crónica, apesar de saber que estão ansiosos em
retomar a história que tinha ficado por San Diego após
uma noite em Tijuana, no México.
Devido à inclusão
da letra do tema "Welcome to Tijuana" do Manu Chao
na última crónica, a sua popularidade aumentou
em flecha e até tivemos o privilégio da sua visita
para um concerto inserido nas festas da cidade de Lisboa. Não
tive o prazer de o ver, mas deixo-vos agora algumas declarações
acerca da dita letra, enviadas pelo meu amigo Tiago Sacchetti
que fez o estágio do Contacto no México em Chihuahua,
e que podem esclarecer os mais interessados.
"Um
coyote é um mexicano que passa emigrantes ilegais
pela fronteira a troco de dinheiro. Normalmente atravessam
a fronteira pelo deserto, daí não existir "aduana".
Não é raro abandonarem famílias inteiras
no meio do nada dizendo-lhes para caminharem para Norte!!!
"Tecate" [...] É o
nome de uma cidade fronteiriça não muito longe
de Tijuana.
A
verdadeira estrada PanAmericana (que a canção
refere) não passa por Tijuana mas sim por Ciudad Juarez-El
Paso. Era a estrada que eu fazia todos os dias para ir para
o trabalho. Provavelmente ultrapassei muitos camiões
carregadinhos de coca."
No entretanto esqueci-me de vos contar um pequeno pormenor da nossa
passagem pela cidade de Tijuana. Acontece que no menu do
Iguanas Ranas havia uma parte que dizia que se tratasse do
dia de aniversário do cliente este teria direito a
uma surpresa. Eu disse ao Ricky que era o nosso aniversário
de casamento e que queríamos uma surpresa. Como não
havia maneira de o provar, não haveria também
maneira de o negar... Mas, ele não acreditou e não
tivemos direito à surpresa. Mas, se bem me lembro
ele explicou-nos que a surpresa era uma tequilha daquelas
de assobios e abananços de cabeça... Algo que
não nos apetecia naquele momento.
Depois deste
intervalo de dois meses, convém que se siga com o espectáculo.
Quarta-feira,
9 de Agosto de 2000
Não
sei porquê mas estávamos com pontaria nos parques
de campismo. O que me acordou, não foi nenhum animal imaginário,
nem mexicanos barulhentos e nem os filhos dos vizinhos do lado
aos gritos. Foram os aviões em aproximação à pista
de aterragem do aeroporto de San Diego. Foi pontaria ter arranjado
um parque de campismo mesmo debaixo da rota de aproximação à pista,
numa cidade tão grande.
O parque
até que era sossegado, mas não admira, os inquilinos
já deveriam de saber da história dos aviões
e foram todos para outro, do outro lado da cidade. Os aviões
nem voavam muito baixo, mas já sabem o efeito que têm
as tequillas no dia seguinte e haviam aviões a passar
desde madrugada e eram tantos. De 5 em 5 minutos lá vinha
um... Vruuuuuuuuuuuuuuuuummmmmmmmmmmmmm!
Portanto
já sabem que se quiserem sossego vão para o parque
de campismo de Bonita em San Diego... Mas, lembrem-se de acordar
cedo, pois os aviões não permitem outra coisa.
Depois deste
acordar violento (mais um) haveria que arrumar as coisas e dar
uma volta pela cidade, já que noite anterior não
tínhamos visto nada.
Tomámos
o pequeno almoço numa confeitaria que fazia uns bolos
para fora. Sentámo-nos numa mesa a comer e apreciámos
o portfolio da senhora. Estão a imaginar bolos de casamento
com dois e três andares e com uns laços dourados?
Agora multipliquem isso pelo bom gosto dos americanos, somem-lhe
o maravilhoso gosto mexicano e elevem tudo ao mais decadente
gosto alemão e obtêm uma imagem (bem que vaga) do
que pode ser um mostruário de bolos de uma loja chamada
Hans & Harry's em Bonita Road. Para quem se pergunta como é que
me lembro do nome da confeitaria, só posso dizer que à saída
trouxe um íman de frigorífico e que este ainda
está colado na minha cozinha.
Mesmo em
frente ao conjunto de estabelecimentos onde estava a confeitaria,
do outro lado da Bonita Road, estava a Mission Cyclery. Uma loja
de bicicletas que aproveitava um velho edifício de uma
missão espanhola na região ou cujo dono aproveitou
o facto destes edifícios serem os ex-libris da região
e construiu um onde montou uma loja de bicicletas.
Mas, já se
fazia tarde e rumámos à zona das famosas praias
de San Diego.
Ainda parámos
para beber um café num Jack in a box. Do outro lado da
estrada ficava uma loja de caridade da Good Will. E, ainda passámos
por lá... É impressionante o que se pode comprar
nestas lojas! Roupa de marca embora de beleza e qualidade duvidosa
existe para quem quiser mostrar etiquetas e fazer de palhaço.
Contornámos
a baía de San Diego em direcção à língua
de areia que a separa do mar. Fez-me lembrar a Costa Nova, pois
de um lado via-se uma estreita porção de água
e do outro imaginava-se o mar... Pois! Não se via... Achei
um bocado estranho, mas na verdade, e depois de ver no mapa,
reparei que ali proliferavam zonas militares. Depois lembrei-me
que San Diego é um dos principais portos da frota de guerra
americana.
Estávamos
a ficar fartos de civilização. Já andávamos
há uns dias à procura das famosas praias da Califórnia
e afinal, essas só existem nos filmes, pois as que são
acessíveis aos comuns dos mortais estão infestadas
de gente à boa moda do nosso Algarve... As outras ou pertencem
a uma instituição militar ou a algum milionário...
Quando não estão vedadas por excesso de poluição.
Mas o espírito
californiano do surf e daquela imagem do surfista de havaianas
e que vive para as ondas é cultivado. Eles existem! Aliás
há uns dias que na rádio que sintonizávamos
no nosso jipaço que só se ouvia musica com cerca
de 40 anos de idade cantadas por nomes tão actuais como
Elvis, Mamas and Papas, Beach Boys ou mesmo Billy Halley.
Já só queria
sair dali e entrar no Wild West. Os nossos planos desse dia era
dormir no deserto. No deserto de Joshua Tree! Sim! Esse! Aquele
a quem os U2 dedicaram um álbum.
Mas, ainda
havia que sair daquela cidade. Atravessámos a estranha
ponte que liga Coronado a San Diego, já com a certeza
de a deixar o mais rapidamente possível e partir em direcção
ao calor do deserto.
No ar ficava
o tema "Tijuana Lady" dos Gomez que me fazia lembrar
aquilo que de melhor eu vivi ali:
"Tijuana
lady where did you go
I been chasin' you around old Mehico
Gonna find my way back to San Diego"
Parámos
em La Mesa, mesmo à saída de San Diego, já na
auto-estrada Interstate 8 que nos levaria até uma terra
de seu nome Descanso, onde estaríamos a salvo, longe da
civilização e já muito perto do deserto.
Mas dizia eu que, parámos em La Mesa para comprarmos comida
e gelo uma vez que a partir dali não sabíamos bem
o que nos esperava. De certeza que as distâncias entre
povoados iriam aumentar e a possibilidade de encontrar mantimentos
seria menor.
Comprámos
coisas essenciais à sobrevivência no deserto como
camarões e uma posta de tubarão e ainda tivemos
tempo para procurar por uma caneca própria para aquelas
andanças e que nos permitisse fazer café. Embora
para a encontrar tivéssemos que dar duas voltas a La Mesa
e a dois armazéns tipo hipermercado.
Aproveitámos
para almoçar num tasco mexicano que só vendia frango,
mas que tinha uma algo fantástico que já vos falei
e que permitia aos clientes encherem os copos com coca-cola quantas
vezes desejassem. E, acreditem, que ali, já a 20 kms da
costa, em linha recta, e com a cidade de San Diego em permeio,
já se sentia o calor vindo do deserto e uma coca-cola
sabia pela vida. Bem, a verdade é que estava calor e que
achávamos que já eram os ventos do deserto, mas
ainda nos faltava uma hora até sabermos o que era o deserto.
Depressa
estávamos em Descanso e a partir daí entrámos
numa estrada secundária. Parecia que nos queriam tornar
a chegada ao deserto uma coisa penosa, como se deixar a civilização
fosse um pecado. Mas, a beleza do verde que rodeava a estrada
compensava qualquer dificuldade ou infinita sequência de
curvas. Passámos por pastos e os sinais indicando que
poderiam haver cavalos na estrada multiplicavam-se. Os famosos
Horse Xing que mais tarde se iriam traduzir em Deer Xing quando
daí a uns dias chegássemos às montanhas,
mas isso fica para outra crónica.
Atravessámos
o Cuyamaca Rancho State Park e um pouco antes de Julian tívemos
o primeiro contacto com o deserto. Numa saída de estrada,
de um miradouro podia ver-se o deserto que se estendia até perder
de vista. Dali não passava de um vale castanho, embrenhado
em névoa e que se estendia por algumas dezenas de quilómetros
até umas montanhas lá longe que tinham ar de serem
bastante áridas, também.
O miradouro
em que estávamos tinha sido construído graças
a um casal que era proprietário daquelas terras e que
adorava aquela vista e que por essa razão resolveu doar
uma pequena porção da sua propriedade para que
todos pudessem desfrutar da mesma beleza que eles. Estava lá uma
cruz onde se poderiam ler os nomes dessas pessoas que permitiram
que nós estivéssemos a contemplar aquela vista
e já não me lembro bem, mas acho que as suas cinzas
tinham sido largadas ali também. Isto mostra quão
diferentes são os americanos, neste caso, dos portugueses.
Em Portugal, uma pessoa que tenha uma propriedade com uma vista
tão bonita como aquela, no mínimo constrói
um muro em volta da propriedade para que mais ninguém,
para além daqueles que procura impressionar, possam desfrutar
da sua beleza. E, depois de morto terá que ser enterrado
num cemitério onde todos possam ver a opulência
da sua campa e invejá-lo... Ou então, nem sabem
da riqueza que têm e por isso não acham que devam
partilhar nada com ninguém! Mas, isso não interessa
agora!
A partir
de Julian a estrada começa a descer e o verde começa
a desaparecer para dar lugar ao castanho. O calor começa
a aumentar e o ar condicionado começa a fazer o seu precioso
trabalho.
Entrámos
no deserto. No deserto de Anza-Borrego. No Anza-Borrego Desert
State Park.
A estrada
estendia-se por quilómetros. Quilómetros infindáveis
de recta. De um lado território árido até às
montanhas castanhas avermelhadas e do outro território árido
até às montanhas castanhas amareladas. Em frente,
uma linha amarela num fundo preto que de vez em quando se escondia
por detrás das lombas, mas que se estendia até...
Até não se ver mais. E, de vez em quando o sinal
que nos avisava que estávamos numa zona de cheias. Sim!
Cheias rápidas... Uma vez que as montanhas eram áridas
e não absorviam a água, se chovesse esta inundava
instantaneamente o vale.
A dada altura,
segundo o mapa, estaríamos próximos de uma povoação
de seu nome Poços de Ocotillo, que mais tarde iríamos
saber que se tratava de uma espécie de cacto próprio
daquele sistema desértico. Mas, da dita povoação
não se conseguia ver nada. Até que do lado direito
apareceram duas roulotes. Aquelas duas casas sobre rodas com
ar condicionado, ali no meio de uns cactos e sem vida aparente
eram a tal povoação? Pois eram! Uma cena típica
de um filme...
Saímos
do parque e chegámos à estrada 86 que provinha
do México e que fazia a ligação à auto-estrada
Interstate 10 para Los Angeles. Se não visse os camiões
a cruzarem a estrada lá longe e os sinais a avisar a aproximação
da mesma, não a teria visto, embora a estrada em que vinha
acabasse ali. A diferença de cor entre o pavimento e as
bermas era quase imperceptível. Embora esse estivesse
em boas condições atendendo ao tipo de tráfego
que ali passava e atendendo à exposição
contínua a temperaturas superiores a 35º C. Mas,
a areia ocupava o pavimento e mesmo as marcações
só se viam por pura imaginação.
De repente,
do lado direito da estrada a uma centena de metros da estrada
conseguia-se ver uma enorme extensão de água. Era
o Salton Sea...
O lago estende-se
ao longo da estrada por cerca de 40 kms. Não se vêm
almas até chegarmos a uma povoação. Mesmo
aí torna-se difícil ver humanos, pois atravessámos
a povoação até junto do lago e poucas ou
nenhumas pessoas andavam nas ruas... Se se podiam chamar ruas
aqueles caminhos de terra batida que separavam as habitações.
Tudo aquilo tinha um ar de pobreza que até dava dó.
Assim que
chegámos junto ao lago a roupa como que se colou ao corpo.
A quantidade de humidade no ar subiu drasticamente e cheirava
a maresia. Do sítio onde parámos o jipaço
não se conseguia ver a água pelo que tivemos que
subir uma pequena ladeira e... Deparámos com um espectáculo
que é difícil de explicar pois se por um lado era
surpreendentemente belo por outro era dantesco.
Salton Sea,
como se pode ver pelo nome é um mar salgado. Está a
uma altitude de cerca de 50 metros inferior ao nível médio
do mar e fica no meio de uma região árida de quase
deserto. Fica entre duas cadeias de montanhas, a oeste as montanhas
de Santa Rosa e a leste as montanhas Chocolate. Um pouco a norte
fica Palm Springs e a sul um outro deserto com um nome sugestivo
de Algodones Dunes já muito próximo do México.
Ali naquele
mar salgado no verão as temperaturas chegam aos 40º C
e com a evaporação, a densidade de sal na água
não permite que a vida dos peixes seja muito agradável.
Pois foi isso que testemunhamos junto às margens. Algumas
dezenas de peixes boiavam empurrados pelas ondas em direcção às
margens. Mas, se aquilo chocou ao primeiro olhar, logo desviámos
o olhar para o voo dos pelicanos ou para o andar bizarro dos
pernalonga. Os primeiros voavam em círculos como se estivessem
a treinar para alguma corrida em recinto fechado e os segundos
com as suas longas pernas vermelhas distinguiam-se no meio da
aridez da zona.
Mas intrigou-nos
como e de quê é que viveria a população
que aparentemente povoaria Desert Shores, que era o nome daquela
povoação. Para saber isso e para beber uma cerveja
estupidamente gelada parámos na mercearia local. A Cláudia
perguntou aos locais e logo soubemos que iríamos entrar
num Oásis e que aí era onde estavam todos os que
não vimos a trabalhar, nesse momento, na plantação
de bananas.
Aliás
se tivéssemos olhado para o mapa tínhamos visto
que a próxima povoação se chamava Oasis
e tínhamos poupado a vergonha de fazer perguntas inúteis.
A maioria
dos habitantes da região eram mexicanos que deveriam ser
explorados até ao tutano, mas quem mais se lembraria de
viver naquelas condições naquele sítio?
Deixámos
o Oasis para trás, ao pôr-do-sol e entrámos
na Interstate 10 junto a Indio, uma pequena cidade a cerca de
15 kms de Palm Springs, a estância de férias dos
artistas de cinema. Mas, nós íamos no sentido contrário
em direcção a Joshua Tree.
À entrada
da auto-estrada um sinal avisava para a necessidade de desligar
o ar condicionado porque íamos começar a subir
e a subida tinha alguma inclinação, que combinada
com o calor próprio do deserto e o uso do ar condicionado
poderia criar alguns problemas aos condutores. Assim o fizemos
e seguimos o comboio de camiões com as janelas abertas.
Os olhos secavam com o vento quente que entrava pelas janelas,
o que obrigava a piscar os olhos vezes sem conta.
Ainda bem
que o jipaço tinha ar condicionado, pois ainda nos esperavam
dias de calor.
Chegámos
a Joshua Tree National Park já de noite. A recepção
já estava fechada, pelo que resolvemos o nosso problema
de acampamento como já sabíamos. Entrámos
e montámos a tenda, deixando à entrada o depósito
normal para a estadia dentro do habitual envelope.
Na recepção
de Cottonwood Spring, uma ave de rapina olhava-nos de cima de
um poste. Estávamos mesmo longe da civilização
e até se confiava por demais na honestidade da humanidade.
Haviam uns panfletos sobre o parque numas caixas onde supostamente
se deveria depositar o dinheiro do seu valor, caso os desejássemos
levar. Devem pensar que somos otários. Levei os panfletos
para ler... Eu depois devolvia-os.
Preocupava-me
o facto de ter que pagar a taxa de entrada no parque natural
e tinha receio de ter problemas com o Ranger no dia seguinte
por causa disso. Mas, eu queria comprar o cartão dos parques
por $80 em vez de pagar $20 por cada parque, por pessoa.
Desisti de
procurar a solução e dediquei-me a fazer um fogo
para assar o tubarão.
No entretanto
bebemos umas Tecate e os camarões fritos.
Por ali apenas
se viam duas raparigas que estavam num alvéolo distante
do parque de campismo. Trocámos uns "Boa Noite" e
elas meteram-se pelos arbustos à procura de algum animal
nocturno. A dada altura já só se viam mas luzes
que se passeavam pelo horizonte.
Estava fresco,
para quem já tinha apanhado um caloraço nesse dia.
Mas não admira, se já tínhamos estado abaixo
do nível do mar, nesse momento estávamos a cerca
de 1000m de altitude. Comemos o tubarão debaixo de um
céu estrelado, de uma lua que estava quase cheia e com
as luzes apagadas. Finalmente estávamos no wild west,
longe da civilização e do barulho.
Só fomos
interrompidos por um casal de checos que nos veio perguntar onde
se pagava o parque de campismo. Como nós, também
não acreditavam que as pessoas fossem honestas ao ponto
de deixar a taxa num envelope... Não sei se pagaram porque
me disseram que iam sair de madrugada e que se calhar não
valeria a pena.
Eram os únicos seres visíveis, para além das
lanternas das raparigas que no entretanto tinham voltado à sua
tenda. E, nós continuámos juntos a desfrutar a brisa
fresca com a ajuda de mais uma Tecate.
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