SÁBADO, 7 DE JULHO DE 2001 C145
Flash Flood Area - Fotografia de Rui Gonçalves

Convém explicar alguns factos, antes de entrarmos na próxima crónica, apesar de saber que estão ansiosos em retomar a história que tinha ficado por San Diego após uma noite em Tijuana, no México.

Devido à inclusão da letra do tema "Welcome to Tijuana" do Manu Chao na última crónica, a sua popularidade aumentou em flecha e até tivemos o privilégio da sua visita para um concerto inserido nas festas da cidade de Lisboa. Não tive o prazer de o ver, mas deixo-vos agora algumas declarações acerca da dita letra, enviadas pelo meu amigo Tiago Sacchetti que fez o estágio do Contacto no México em Chihuahua, e que podem esclarecer os mais interessados.

"Um coyote é um mexicano que passa emigrantes ilegais pela fronteira a troco de dinheiro. Normalmente atravessam a fronteira pelo deserto, daí não existir "aduana". Não é raro abandonarem famílias inteiras no meio do nada dizendo-lhes para caminharem para Norte!!!

"Tecate" [...] É o nome de uma cidade fronteiriça não muito longe de Tijuana.

A verdadeira estrada PanAmericana (que a canção refere) não passa por Tijuana mas sim por Ciudad Juarez-El Paso. Era a estrada que eu fazia todos os dias para ir para o trabalho. Provavelmente ultrapassei muitos camiões carregadinhos de coca."

No entretanto esqueci-me de vos contar um pequeno pormenor da nossa passagem pela cidade de Tijuana. Acontece que no menu do Iguanas Ranas havia uma parte que dizia que se tratasse do dia de aniversário do cliente este teria direito a uma surpresa. Eu disse ao Ricky que era o nosso aniversário de casamento e que queríamos uma surpresa. Como não havia maneira de o provar, não haveria também maneira de o negar... Mas, ele não acreditou e não tivemos direito à surpresa. Mas, se bem me lembro ele explicou-nos que a surpresa era uma tequilha daquelas de assobios e abananços de cabeça... Algo que não nos apetecia naquele momento.

Depois deste intervalo de dois meses, convém que se siga com o espectáculo.

Quarta-feira, 9 de Agosto de 2000

Não sei porquê mas estávamos com pontaria nos parques de campismo. O que me acordou, não foi nenhum animal imaginário, nem mexicanos barulhentos e nem os filhos dos vizinhos do lado aos gritos. Foram os aviões em aproximação à pista de aterragem do aeroporto de San Diego. Foi pontaria ter arranjado um parque de campismo mesmo debaixo da rota de aproximação à pista, numa cidade tão grande.

O parque até que era sossegado, mas não admira, os inquilinos já deveriam de saber da história dos aviões e foram todos para outro, do outro lado da cidade. Os aviões nem voavam muito baixo, mas já sabem o efeito que têm as tequillas no dia seguinte e haviam aviões a passar desde madrugada e eram tantos. De 5 em 5 minutos lá vinha um... Vruuuuuuuuuuuuuuuuummmmmmmmmmmmmm!

Portanto já sabem que se quiserem sossego vão para o parque de campismo de Bonita em San Diego... Mas, lembrem-se de acordar cedo, pois os aviões não permitem outra coisa.

Depois deste acordar violento (mais um) haveria que arrumar as coisas e dar uma volta pela cidade, já que noite anterior não tínhamos visto nada.

Tomámos o pequeno almoço numa confeitaria que fazia uns bolos para fora. Sentámo-nos numa mesa a comer e apreciámos o portfolio da senhora. Estão a imaginar bolos de casamento com dois e três andares e com uns laços dourados? Agora multipliquem isso pelo bom gosto dos americanos, somem-lhe o maravilhoso gosto mexicano e elevem tudo ao mais decadente gosto alemão e obtêm uma imagem (bem que vaga) do que pode ser um mostruário de bolos de uma loja chamada Hans & Harry's em Bonita Road. Para quem se pergunta como é que me lembro do nome da confeitaria, só posso dizer que à saída trouxe um íman de frigorífico e que este ainda está colado na minha cozinha.

Mesmo em frente ao conjunto de estabelecimentos onde estava a confeitaria, do outro lado da Bonita Road, estava a Mission Cyclery. Uma loja de bicicletas que aproveitava um velho edifício de uma missão espanhola na região ou cujo dono aproveitou o facto destes edifícios serem os ex-libris da região e construiu um onde montou uma loja de bicicletas.

Mas, já se fazia tarde e rumámos à zona das famosas praias de San Diego.

Ainda parámos para beber um café num Jack in a box. Do outro lado da estrada ficava uma loja de caridade da Good Will. E, ainda passámos por lá... É impressionante o que se pode comprar nestas lojas! Roupa de marca embora de beleza e qualidade duvidosa existe para quem quiser mostrar etiquetas e fazer de palhaço.

Contornámos a baía de San Diego em direcção à língua de areia que a separa do mar. Fez-me lembrar a Costa Nova, pois de um lado via-se uma estreita porção de água e do outro imaginava-se o mar... Pois! Não se via... Achei um bocado estranho, mas na verdade, e depois de ver no mapa, reparei que ali proliferavam zonas militares. Depois lembrei-me que San Diego é um dos principais portos da frota de guerra americana.

Estávamos a ficar fartos de civilização. Já andávamos há uns dias à procura das famosas praias da Califórnia e afinal, essas só existem nos filmes, pois as que são acessíveis aos comuns dos mortais estão infestadas de gente à boa moda do nosso Algarve... As outras ou pertencem a uma instituição militar ou a algum milionário... Quando não estão vedadas por excesso de poluição.

Mas o espírito californiano do surf e daquela imagem do surfista de havaianas e que vive para as ondas é cultivado. Eles existem! Aliás há uns dias que na rádio que sintonizávamos no nosso jipaço que só se ouvia musica com cerca de 40 anos de idade cantadas por nomes tão actuais como Elvis, Mamas and Papas, Beach Boys ou mesmo Billy Halley.

Já só queria sair dali e entrar no Wild West. Os nossos planos desse dia era dormir no deserto. No deserto de Joshua Tree! Sim! Esse! Aquele a quem os U2 dedicaram um álbum.

Mas, ainda havia que sair daquela cidade. Atravessámos a estranha ponte que liga Coronado a San Diego, já com a certeza de a deixar o mais rapidamente possível e partir em direcção ao calor do deserto.

No ar ficava o tema "Tijuana Lady" dos Gomez que me fazia lembrar aquilo que de melhor eu vivi ali:

"Tijuana lady where did you go
I been chasin' you around old Mehico
Gonna find my way back to San Diego"

Parámos em La Mesa, mesmo à saída de San Diego, já na auto-estrada Interstate 8 que nos levaria até uma terra de seu nome Descanso, onde estaríamos a salvo, longe da civilização e já muito perto do deserto. Mas dizia eu que, parámos em La Mesa para comprarmos comida e gelo uma vez que a partir dali não sabíamos bem o que nos esperava. De certeza que as distâncias entre povoados iriam aumentar e a possibilidade de encontrar mantimentos seria menor.

Comprámos coisas essenciais à sobrevivência no deserto como camarões e uma posta de tubarão e ainda tivemos tempo para procurar por uma caneca própria para aquelas andanças e que nos permitisse fazer café. Embora para a encontrar tivéssemos que dar duas voltas a La Mesa e a dois armazéns tipo hipermercado.

Aproveitámos para almoçar num tasco mexicano que só vendia frango, mas que tinha uma algo fantástico que já vos falei e que permitia aos clientes encherem os copos com coca-cola quantas vezes desejassem. E, acreditem, que ali, já a 20 kms da costa, em linha recta, e com a cidade de San Diego em permeio, já se sentia o calor vindo do deserto e uma coca-cola sabia pela vida. Bem, a verdade é que estava calor e que achávamos que já eram os ventos do deserto, mas ainda nos faltava uma hora até sabermos o que era o deserto.

Depressa estávamos em Descanso e a partir daí entrámos numa estrada secundária. Parecia que nos queriam tornar a chegada ao deserto uma coisa penosa, como se deixar a civilização fosse um pecado. Mas, a beleza do verde que rodeava a estrada compensava qualquer dificuldade ou infinita sequência de curvas. Passámos por pastos e os sinais indicando que poderiam haver cavalos na estrada multiplicavam-se. Os famosos Horse Xing que mais tarde se iriam traduzir em Deer Xing quando daí a uns dias chegássemos às montanhas, mas isso fica para outra crónica.

Atravessámos o Cuyamaca Rancho State Park e um pouco antes de Julian tívemos o primeiro contacto com o deserto. Numa saída de estrada, de um miradouro podia ver-se o deserto que se estendia até perder de vista. Dali não passava de um vale castanho, embrenhado em névoa e que se estendia por algumas dezenas de quilómetros até umas montanhas lá longe que tinham ar de serem bastante áridas, também.

O miradouro em que estávamos tinha sido construído graças a um casal que era proprietário daquelas terras e que adorava aquela vista e que por essa razão resolveu doar uma pequena porção da sua propriedade para que todos pudessem desfrutar da mesma beleza que eles. Estava lá uma cruz onde se poderiam ler os nomes dessas pessoas que permitiram que nós estivéssemos a contemplar aquela vista e já não me lembro bem, mas acho que as suas cinzas tinham sido largadas ali também. Isto mostra quão diferentes são os americanos, neste caso, dos portugueses. Em Portugal, uma pessoa que tenha uma propriedade com uma vista tão bonita como aquela, no mínimo constrói um muro em volta da propriedade para que mais ninguém, para além daqueles que procura impressionar, possam desfrutar da sua beleza. E, depois de morto terá que ser enterrado num cemitério onde todos possam ver a opulência da sua campa e invejá-lo... Ou então, nem sabem da riqueza que têm e por isso não acham que devam partilhar nada com ninguém! Mas, isso não interessa agora!

A partir de Julian a estrada começa a descer e o verde começa a desaparecer para dar lugar ao castanho. O calor começa a aumentar e o ar condicionado começa a fazer o seu precioso trabalho.

Entrámos no deserto. No deserto de Anza-Borrego. No Anza-Borrego Desert State Park.

A estrada estendia-se por quilómetros. Quilómetros infindáveis de recta. De um lado território árido até às montanhas castanhas avermelhadas e do outro território árido até às montanhas castanhas amareladas. Em frente, uma linha amarela num fundo preto que de vez em quando se escondia por detrás das lombas, mas que se estendia até... Até não se ver mais. E, de vez em quando o sinal que nos avisava que estávamos numa zona de cheias. Sim! Cheias rápidas... Uma vez que as montanhas eram áridas e não absorviam a água, se chovesse esta inundava instantaneamente o vale.

A dada altura, segundo o mapa, estaríamos próximos de uma povoação de seu nome Poços de Ocotillo, que mais tarde iríamos saber que se tratava de uma espécie de cacto próprio daquele sistema desértico. Mas, da dita povoação não se conseguia ver nada. Até que do lado direito apareceram duas roulotes. Aquelas duas casas sobre rodas com ar condicionado, ali no meio de uns cactos e sem vida aparente eram a tal povoação? Pois eram! Uma cena típica de um filme...

Saímos do parque e chegámos à estrada 86 que provinha do México e que fazia a ligação à auto-estrada Interstate 10 para Los Angeles. Se não visse os camiões a cruzarem a estrada lá longe e os sinais a avisar a aproximação da mesma, não a teria visto, embora a estrada em que vinha acabasse ali. A diferença de cor entre o pavimento e as bermas era quase imperceptível. Embora esse estivesse em boas condições atendendo ao tipo de tráfego que ali passava e atendendo à exposição contínua a temperaturas superiores a 35º C. Mas, a areia ocupava o pavimento e mesmo as marcações só se viam por pura imaginação.

De repente, do lado direito da estrada a uma centena de metros da estrada conseguia-se ver uma enorme extensão de água. Era o Salton Sea...

O lago estende-se ao longo da estrada por cerca de 40 kms. Não se vêm almas até chegarmos a uma povoação. Mesmo aí torna-se difícil ver humanos, pois atravessámos a povoação até junto do lago e poucas ou nenhumas pessoas andavam nas ruas... Se se podiam chamar ruas aqueles caminhos de terra batida que separavam as habitações. Tudo aquilo tinha um ar de pobreza que até dava dó.

Assim que chegámos junto ao lago a roupa como que se colou ao corpo. A quantidade de humidade no ar subiu drasticamente e cheirava a maresia. Do sítio onde parámos o jipaço não se conseguia ver a água pelo que tivemos que subir uma pequena ladeira e... Deparámos com um espectáculo que é difícil de explicar pois se por um lado era surpreendentemente belo por outro era dantesco.

Salton Sea, como se pode ver pelo nome é um mar salgado. Está a uma altitude de cerca de 50 metros inferior ao nível médio do mar e fica no meio de uma região árida de quase deserto. Fica entre duas cadeias de montanhas, a oeste as montanhas de Santa Rosa e a leste as montanhas Chocolate. Um pouco a norte fica Palm Springs e a sul um outro deserto com um nome sugestivo de Algodones Dunes já muito próximo do México.

Ali naquele mar salgado no verão as temperaturas chegam aos 40º C e com a evaporação, a densidade de sal na água não permite que a vida dos peixes seja muito agradável. Pois foi isso que testemunhamos junto às margens. Algumas dezenas de peixes boiavam empurrados pelas ondas em direcção às margens. Mas, se aquilo chocou ao primeiro olhar, logo desviámos o olhar para o voo dos pelicanos ou para o andar bizarro dos pernalonga. Os primeiros voavam em círculos como se estivessem a treinar para alguma corrida em recinto fechado e os segundos com as suas longas pernas vermelhas distinguiam-se no meio da aridez da zona.

Mas intrigou-nos como e de quê é que viveria a população que aparentemente povoaria Desert Shores, que era o nome daquela povoação. Para saber isso e para beber uma cerveja estupidamente gelada parámos na mercearia local. A Cláudia perguntou aos locais e logo soubemos que iríamos entrar num Oásis e que aí era onde estavam todos os que não vimos a trabalhar, nesse momento, na plantação de bananas.

Aliás se tivéssemos olhado para o mapa tínhamos visto que a próxima povoação se chamava Oasis e tínhamos poupado a vergonha de fazer perguntas inúteis.

A maioria dos habitantes da região eram mexicanos que deveriam ser explorados até ao tutano, mas quem mais se lembraria de viver naquelas condições naquele sítio?

Deixámos o Oasis para trás, ao pôr-do-sol e entrámos na Interstate 10 junto a Indio, uma pequena cidade a cerca de 15 kms de Palm Springs, a estância de férias dos artistas de cinema. Mas, nós íamos no sentido contrário em direcção a Joshua Tree.

À entrada da auto-estrada um sinal avisava para a necessidade de desligar o ar condicionado porque íamos começar a subir e a subida tinha alguma inclinação, que combinada com o calor próprio do deserto e o uso do ar condicionado poderia criar alguns problemas aos condutores. Assim o fizemos e seguimos o comboio de camiões com as janelas abertas. Os olhos secavam com o vento quente que entrava pelas janelas, o que obrigava a piscar os olhos vezes sem conta.

Ainda bem que o jipaço tinha ar condicionado, pois ainda nos esperavam dias de calor.

Chegámos a Joshua Tree National Park já de noite. A recepção já estava fechada, pelo que resolvemos o nosso problema de acampamento como já sabíamos. Entrámos e montámos a tenda, deixando à entrada o depósito normal para a estadia dentro do habitual envelope.

Na recepção de Cottonwood Spring, uma ave de rapina olhava-nos de cima de um poste. Estávamos mesmo longe da civilização e até se confiava por demais na honestidade da humanidade. Haviam uns panfletos sobre o parque numas caixas onde supostamente se deveria depositar o dinheiro do seu valor, caso os desejássemos levar. Devem pensar que somos otários. Levei os panfletos para ler... Eu depois devolvia-os.

Preocupava-me o facto de ter que pagar a taxa de entrada no parque natural e tinha receio de ter problemas com o Ranger no dia seguinte por causa disso. Mas, eu queria comprar o cartão dos parques por $80 em vez de pagar $20 por cada parque, por pessoa.

Desisti de procurar a solução e dediquei-me a fazer um fogo para assar o tubarão.

No entretanto bebemos umas Tecate e os camarões fritos.

Por ali apenas se viam duas raparigas que estavam num alvéolo distante do parque de campismo. Trocámos uns "Boa Noite" e elas meteram-se pelos arbustos à procura de algum animal nocturno. A dada altura já só se viam mas luzes que se passeavam pelo horizonte.

Estava fresco, para quem já tinha apanhado um caloraço nesse dia. Mas não admira, se já tínhamos estado abaixo do nível do mar, nesse momento estávamos a cerca de 1000m de altitude. Comemos o tubarão debaixo de um céu estrelado, de uma lua que estava quase cheia e com as luzes apagadas. Finalmente estávamos no wild west, longe da civilização e do barulho.

Só fomos interrompidos por um casal de checos que nos veio perguntar onde se pagava o parque de campismo. Como nós, também não acreditavam que as pessoas fossem honestas ao ponto de deixar a taxa num envelope... Não sei se pagaram porque me disseram que iam sair de madrugada e que se calhar não valeria a pena.


Eram os únicos seres visíveis, para além das lanternas das raparigas que no entretanto tinham voltado à sua tenda. E, nós continuámos juntos a desfrutar a brisa fresca com a ajuda de mais uma Tecate.



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