C140 TERÇA-FEIRA, 11 DE NOVEMBRO DE 2000
Cláudia no Bosque - Fotografia de Rui Gonçalves

É verdade as crónicas não têm saído. Não que eu me tenha esquecido de as escrever, mas, a vida não tem permitido e quando permite a preguiça tem-se sobreposto à vontade de me recordar de tanta coisa e pô-la aqui à vossa disposição.

Neste último mês em contacto com aqueles que à distância acompanharam as crónicas, tenho sentido algumas reacções engraçadas. Desde as pessoas que me perguntam como me sinto a falar com aqueles que eu sei que sabem de toda a minha vida, àqueles que só liam as crónicas quando me sentiam mais por baixo, como se assim eu sentisse que estava mais acompanhado e até alguns que como eu estiveram lá e me dizem agora, que não conseguem ler as crónicas porque lhes traz demasiadas recordações.

Mas, pronto... Quem quiser lê, quem quiser não lê e quem quiser lê só partes.

Mas, vamos à crónica...

Sexta-feira, 4 de Agosto de 2000

Fui de manhã para o escritório na Vaynessa, como tinha sido normal durante toda a semana. Aliás essa semana fiz quase 100kms de Vaynessa, coisa que já não faziam há algum tempo e que só me fazia bem.

Há uns dias que estava um calor agradável e que eu ia para o escritório de calções, sandálias e t-shirt. Em Portugal, já me teriam chamado a atenção para o facto de aqueles não serem trajes para se estar no local de trabalho, mas, ali todos andávamos como nos apetecia, desde que isso não chocasse com a liberdade de ninguém. Já vos falei no início destas crónicas como alguns andavam descalços, de t-shirts rotas, de calções de ciclista ou mesmo de calças com nódoas. Na altura os meus comentários foram, obviamente, de surpresa e de alguma condenação, pois vinha "minado" com as ideias conservadoras da nossa sociedade empresarial, mas, alguns meses depois compreendia e gostava daquela sensação de liberdade no local de trabalho.

Porém, não me livrei dos comentários do Nitin, um dos indianos, que me perguntou se eu já estava de férias, pois há uns dias que andava muito feliz e vestido como se fosse para a praia... Mas, também levou com a resposta mais apropriada - "Não estou, mas dentro de uma hora estarei". Já me cheirava a férias...

Saí à hora do lanche, pois tinha que ir levantar o carro alugado, ao centro de São Francisco às 6h30m e ainda tinha que ir a casa deixar a Vaynessa.

O plano era ir buscar o carro, voltar a Corte Madera, carregar tudo, ir visitar a Catarina, a filha do Hugo e da Jacinta, a Sunnyvale e ir dormir a casa do Mário e da Sá a São José. Esta última paragem tinha como complemento o empréstimo de uma câmara de vídeo, que nos gravaria as férias todas para mais tarde recordar.

Claro que para ir para o centro da cidade, tinha que apanhar o 20. Na paragem estava um casal que em vez do autocarro precisavam de uma cama. Aparentemente o tempo também mexe com as pessoas dali. No banco da paragem ao lado do deles estava um velho sem-abrigo a dormitar. No entretanto chegou uma rapariga que se não trabalhava nalguma loja de moda é porque andou as compras. Trazia um grande saco de roupa e tinha ar de balconista da Zara. Sentou-se no banco dos namorados.

A dada altura, sem eu perceber bem porque a rapariga balconista da Zara levantou-se e fugiu do banco. O velho tinha-se levantado e tinha tirado a sweatshirt. Depressa percebi a razão da fuga da zarista. Começou-me a chegar ao nariz um cheiro nauseabundo a suor. Mas o velho, felizmente voltou a vestir a sweat. Mas, cada vez que ele andava numa direcção da paragem a balconista assustada simplesmente fugia para a outra.

O autocarro chegou à paragem 15 minutos atrasado. Saiu um grupo de mongolóides que até tinham um ar bastante normal, apesar de falarem em voz alta e demorarem montes de tempo a desimpedirem a porta. No autocarro vinha uma tipa que aparentemente era deficiente. Atravessada no banco, de camisa de alças, sem soutien e a brincar com a alça da carteira como se fosse uma corda de saltar. Não parou de rodar a corda um minuto. Saiu umas paragens à frente, assim de um salto e já estava lá fora. É impressionante como estas coisas são perfeitamente normais por ali. Em Portugal, ou eu não reparo, ou as pessoas deste género estão todas internadas ou longe da vista das pessoas, ou não existem mesmo tantos casos de deficiências psíquicas como nos Estados Unidos.

Cheguei 30 m atrasado. Estava um trânsito desgraçado. Parecia que estava tudo a querer que eu não fosse de férias.

Era a primeira vez que reservava um carro num rent-a-car, e para primeira vez tinha-o logo feito via Internet. Nada me confirmava a reserva a não ser uma impressão da página de resultado final, que já tinha duas semanas de vida numa mochila e que estava um bocado amarrotada.

Estava pessimista. Parecia que tudo estava a correr mal. O trânsito, chegar meia hora atrasado e... Um sinal à porta do escritório da Dollar a dizer que não haviam carros para entrega, a não ser que se tivesse reserva.
Saquei o meu papel de impressora agrafado e amarrotado da mochila e com a confiança de que tudo afinal ia correr bem, disse alto o meu número de reserva à funcionária. Ela era muito simpática e prestável, como a maioria das balconistas americanas... São obrigadas!

Confirmou a minha reserva. Telefonou para a garagem e disse-me que esperasse um bocado porque estavam a limpar e preparar os carros. Mal eram entregues os carros na garagem, eram lavados, limpos e estavam já na saída para o próximo usar. A falta de carros para alugar ali era patente. Haviam pelo menos mais três ou quatro escritórios, todos tinham o mesmo letreiro e mesmo assim estavam cheios.

Encostei-me ao móvel, que estava no canto do escritório, com os panfletos publicitários de parques, viagens e tudo o que pode encher a vista de um turista e apreciei os clientes que esperavam por carros como eu, ou que procuravam não estragar as férias porque não tinham feito uma reserva. Estava lá uma família de brasileiros com um sotaque tão difícil de perceber e com umas feições de índios tão carregados, que comecei a pensar que poderiam ser de outro lado qualquer menos do Brasil.

De repente, entra na Dollar rent-a-car a Mónica e Rita. Impressionante. Não é que aquilo fosse muito longe de casa delas, mas, encontrarmo-nos naquele sítio era tudo menos o que esperava.

Elas queriam um carro, porque iam daí a umas semanas para um festival de artes num deserto do Nevada, chamado de Burning Man e que basicamente consistia numa comunidade que durante uma semana construía um boneco e no fim pegava-lhe fogo. Isto com exposições de arte e performances pelo meio. Tudo no meio do deserto. Segundo elas uma verdadeira experiência americana.

No entretanto, o meu carro estava pronto. Uma hora e tal depois dos meus cálculos, o que me atrasava completamente as contas. Era o carro 31 que estava na garagem. Deram-me a chave, despedi-me da R&M e desci.

Ok! Carro 31. Percorri a garagem e não encontrava o 31. Até que lá dei com o 31. Encontrei-o! Um jipe? Não pode ser... Um tipo viu-me e perguntou-me qual era o número. "31" e ele respondeu-me que era aquele mesmo. Um Kia Sportage. Um Jipe da treta, mas pode-se abusar das 4wd. Se em Portugal aquilo é considerado um SUV, ali era considerado um carro económico, o escalão mais baixo dos alugueres de carro. Que importava... Ia ser o meu carro durante duas semanas e só esperava que aguentasse aquilo a que nos propúnhamos a fazer.

O carro brilhava. Era da mesma cor, um creme, talvez um bocado mais claro, do que meu jipe Galloper que estava em Portugal e de quem já sentia a falta.

Entrei na auto estrada e comecei a ficar nervoso. O carro era bem mais alto que o bólide, a sensação de velocidade era menor, mas guinava muito mais e reagia de uma maneira muito mais nervosa. Quando entrei na Golden Gate Bridge tive que reduzir pois comecei a sentir o vento a bater no carro e parecia que me queria fugir. Não me apetecia nada começar as férias a ter que trocar de carro. Sem falar nos problemas que daí podiam advir.
Quando cheguei a Corte Madera, a Cláudia já estava preocupada. Quase duas horas depois do previsto estava finalmente pronto para carregar o carro.

Ela ficou como eu ao ver o carro 31. Um jipe. Bem, um carro com tracção às quatro e a preço de mini. Só tinha um problema... Para já! Buzinava cada vez que se trancavam as portas. Mas, buzinava alto...

Telefonei ao Hugo, para o avisar de que já não íamos visita-los, depois de todos aqueles atrasos. Fiquei com pena! Queria mesmo ir visitar a Catarina... Mas, pronto!

Conseguimos meter a tralha toda no jipe. Malas, mochilas, sacos-cama, tenda, sacos, saquinhos e sacolas, uma geleira relativamente grande, mas vazia, que o Singh nos emprestou sem saber e tudo coberto por um saco-cama de forro polar, pois a mala era descoberta.

E rumamos a sul. Com destino a São José, a casa do Mário e da Sá.

Mas, estava a ficar tarde para jantar naquela terra de Deus, onde as coisas fecham à hora que nós portugueses estamos habitados a começar a procurar sítio para o fazer. Só nos restavam os MacDonalds e derivados, ou, os tailandeses do costume.

Como íamos passar em Van Ness, porque nem pensamos em apanhar a 280, decidimos passar por perto da casa da RM&P e ver se arranjávamos estacionamento.

E, arranjámos! Nas esquinas mais esquisitas da zona. Na zona dos transexuais, junto a um bar onde eles/elas param, junto às esquinas onde eles/elas engatam. A zona é das piores e mais mal frequentadas da cidade, principalmente àquela hora.

Juro que fiquei com receio de estacionar o carro ali. Mas, arriscamos! Foi assim que nos roubaram uma vez em Sevilha, mas ali correu tudo bem e ninguém ligou muito a um mini-jipe parado ali na esquina e com a mala com um forro-polar azul escuro por cima.

Fomos ao tailandês mais perto da casa da RM&P. Comemos à pressa com receio de deixar o carro por muito tempo.

E, partimos para casa do Mário. Era quase meia noite quando lá chegámos, depois de nos termos perdido dentro de São José. Eu julgava que aquilo era pequenino, mas, a cidade é grande e cheia de auto-estradas.

Segui as instruções do Mário, mas... Virei na saída errada e fui parar ao outro lado da cidade. Volta para trás, entrar de novo na 101 e apanhar a saída correcta. Sai nesta, vira naquela e passa a outra e já estávamos à porta da casa do Mário e da Sá.

O condomínio parecia um complexo prisional. Portão automático que só abria para se sair, mas, esperando um minuto logo saia alguém e eu entrei com o mini-jipe-kia. Depois, era procurar o edifício onde era o apartamento deles... Não era aquele, era o do fundo... Mas que fundo? Aquilo era um não acabar de estacionamentos e prédios. Parecia que aquele portão dava entrada para uma cidade e não para um condomínio.

Por fim lá demos com o edifício. Mas, a saga não tinha acabado... Campainha? E, a porta deles? Parecia que só havia meia dúzia de apartamentos naquela entrada... Fomos a outra e finalmente encontramos... O apartamento do Mário e da Sá no rés-do-chão do edifício do fundo!

A casa deles, apesar destas complicações todas, até que era porreira. A cozinha estava ligada à sala e tinha uns móveis castanhos escuros. A sala como era normal nas casas de todos os estagiários, estava quase vazia. Tinha um sofá cama que serviu muito bem, para quem estava estoirado de tanta correria e da hora tardia. A casa de banho era pequenina, mas servia bem para o que foi feita e o quarto deles tinha à porta um bilhetinho de boas vindas à Sá...

Eu estava mais morto que vivo, assim como a Cláudia... Mas, ainda estivemos um bocadinho na conversa...



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