É verdade as crónicas não têm
saído. Não que eu me tenha esquecido de as escrever,
mas, a vida não tem permitido e quando permite a preguiça
tem-se sobreposto à vontade de me recordar de tanta coisa
e pô-la aqui à vossa disposição.
Neste último mês em contacto com aqueles
que à distância acompanharam as crónicas, tenho
sentido algumas reacções engraçadas. Desde
as pessoas que me perguntam como me sinto a falar com aqueles que
eu sei que sabem de toda a minha vida, àqueles que só liam
as crónicas quando me sentiam mais por baixo, como se assim
eu sentisse que estava mais acompanhado e até alguns que
como eu estiveram lá e me dizem agora, que não conseguem
ler as crónicas porque lhes traz demasiadas recordações.
Mas, pronto... Quem quiser lê, quem quiser
não lê e quem quiser lê só partes.
Mas, vamos à crónica...
Sexta-feira, 4 de Agosto de 2000
Fui de manhã para o escritório na
Vaynessa, como tinha sido normal durante toda a semana. Aliás
essa semana fiz quase 100kms de Vaynessa, coisa que já não
faziam há algum tempo e que só me fazia bem.
Há uns dias que estava um calor agradável
e que eu ia para o escritório de calções,
sandálias e t-shirt. Em Portugal, já me teriam chamado
a atenção para o facto de aqueles não serem
trajes para se estar no local de trabalho, mas, ali todos andávamos
como nos apetecia, desde que isso não chocasse com a liberdade
de ninguém. Já vos falei no início destas
crónicas como alguns andavam descalços, de t-shirts
rotas, de calções de ciclista ou mesmo de calças
com nódoas. Na altura os meus comentários foram,
obviamente, de surpresa e de alguma condenação, pois
vinha "minado" com as ideias conservadoras da nossa sociedade
empresarial, mas, alguns meses depois compreendia e gostava daquela
sensação de liberdade no local de trabalho.
Porém, não me livrei dos comentários
do Nitin, um dos indianos, que me perguntou se eu já estava
de férias, pois há uns dias que andava muito feliz
e vestido como se fosse para a praia... Mas, também levou
com a resposta mais apropriada - "Não estou, mas dentro
de uma hora estarei". Já me cheirava a férias...
Saí à hora do lanche, pois tinha que
ir levantar o carro alugado, ao centro de São Francisco às
6h30m e ainda tinha que ir a casa deixar a Vaynessa.
O plano era ir buscar o carro, voltar a Corte Madera,
carregar tudo, ir visitar a Catarina, a filha do Hugo e da Jacinta,
a Sunnyvale e ir dormir a casa do Mário e da Sá a
São José. Esta última paragem tinha como complemento
o empréstimo de uma câmara de vídeo, que nos
gravaria as férias todas para mais tarde recordar.
Claro que para ir para o centro da cidade, tinha
que apanhar o 20. Na paragem estava um casal que em vez do autocarro
precisavam de uma cama. Aparentemente o tempo também mexe
com as pessoas dali. No banco da paragem ao lado do deles estava
um velho sem-abrigo a dormitar. No entretanto chegou uma rapariga
que se não trabalhava nalguma loja de moda é porque
andou as compras. Trazia um grande saco de roupa e tinha ar de
balconista da Zara. Sentou-se no banco dos namorados.
A dada altura, sem eu perceber bem porque a rapariga
balconista da Zara levantou-se e fugiu do banco. O velho tinha-se
levantado e tinha tirado a sweatshirt. Depressa percebi a razão
da fuga da zarista. Começou-me a chegar ao nariz um cheiro
nauseabundo a suor. Mas o velho, felizmente voltou a vestir a sweat.
Mas, cada vez que ele andava numa direcção da paragem
a balconista assustada simplesmente fugia para a outra.
O autocarro chegou à paragem 15 minutos atrasado.
Saiu um grupo de mongolóides que até tinham um ar
bastante normal, apesar de falarem em voz alta e demorarem montes
de tempo a desimpedirem a porta. No autocarro vinha uma tipa que
aparentemente era deficiente. Atravessada no banco, de camisa de
alças, sem soutien e a brincar com a alça da carteira
como se fosse uma corda de saltar. Não parou de rodar a
corda um minuto. Saiu umas paragens à frente, assim de um
salto e já estava lá fora. É impressionante
como estas coisas são perfeitamente normais por ali. Em
Portugal, ou eu não reparo, ou as pessoas deste género
estão todas internadas ou longe da vista das pessoas, ou
não existem mesmo tantos casos de deficiências psíquicas
como nos Estados Unidos.
Cheguei 30 m atrasado. Estava um trânsito
desgraçado. Parecia que estava tudo a querer que eu não
fosse de férias.
Era a primeira vez que reservava um carro num rent-a-car,
e para primeira vez tinha-o logo feito via Internet. Nada me confirmava
a reserva a não ser uma impressão da página
de resultado final, que já tinha duas semanas de vida numa
mochila e que estava um bocado amarrotada.
Estava pessimista. Parecia que tudo estava a correr
mal. O trânsito, chegar meia hora atrasado e... Um sinal à porta
do escritório da Dollar a dizer que não haviam carros
para entrega, a não ser que se tivesse reserva.
Saquei o meu papel de impressora agrafado e amarrotado da mochila
e com a confiança de que tudo afinal ia correr bem, disse
alto o meu número de reserva à funcionária.
Ela era muito simpática e prestável, como a maioria
das balconistas americanas... São obrigadas!
Confirmou a minha reserva. Telefonou para a garagem
e disse-me que esperasse um bocado porque estavam a limpar e preparar
os carros. Mal eram entregues os carros na garagem, eram lavados,
limpos e estavam já na saída para o próximo
usar. A falta de carros para alugar ali era patente. Haviam pelo
menos mais três ou quatro escritórios, todos tinham
o mesmo letreiro e mesmo assim estavam cheios.
Encostei-me ao móvel, que estava no canto
do escritório, com os panfletos publicitários de
parques, viagens e tudo o que pode encher a vista de um turista
e apreciei os clientes que esperavam por carros como eu, ou que
procuravam não estragar as férias porque não
tinham feito uma reserva. Estava lá uma família de
brasileiros com um sotaque tão difícil de perceber
e com umas feições de índios tão carregados,
que comecei a pensar que poderiam ser de outro lado qualquer menos
do Brasil.
De repente, entra na Dollar rent-a-car a Mónica
e Rita. Impressionante. Não é que aquilo fosse muito
longe de casa delas, mas, encontrarmo-nos naquele sítio
era tudo menos o que esperava.
Elas queriam um carro, porque iam daí a umas
semanas para um festival de artes num deserto do Nevada, chamado
de Burning Man e que basicamente consistia numa comunidade que
durante uma semana construía um boneco e no fim pegava-lhe
fogo. Isto com exposições de arte e performances
pelo meio. Tudo no meio do deserto. Segundo elas uma verdadeira
experiência americana.
No entretanto, o meu carro estava pronto. Uma hora
e tal depois dos meus cálculos, o que me atrasava completamente
as contas. Era o carro 31 que estava na garagem. Deram-me a chave,
despedi-me da R&M e desci.
Ok! Carro 31. Percorri a garagem e não encontrava
o 31. Até que lá dei com o 31. Encontrei-o! Um jipe?
Não pode ser... Um tipo viu-me e perguntou-me qual era o
número. "31" e ele respondeu-me que era aquele
mesmo. Um Kia Sportage. Um Jipe da treta, mas pode-se abusar das
4wd. Se em Portugal aquilo é considerado um SUV, ali era
considerado um carro económico, o escalão mais baixo
dos alugueres de carro. Que importava... Ia ser o meu carro durante
duas semanas e só esperava que aguentasse aquilo a que nos
propúnhamos a fazer.
O carro brilhava. Era da mesma cor, um creme, talvez
um bocado mais claro, do que meu jipe Galloper que estava em Portugal
e de quem já sentia a falta.
Entrei na auto estrada e comecei a ficar nervoso.
O carro era bem mais alto que o bólide, a sensação
de velocidade era menor, mas guinava muito mais e reagia de uma
maneira muito mais nervosa. Quando entrei na Golden Gate Bridge
tive que reduzir pois comecei a sentir o vento a bater no carro
e parecia que me queria fugir. Não me apetecia nada começar
as férias a ter que trocar de carro. Sem falar nos problemas
que daí podiam advir.
Quando cheguei a Corte Madera, a Cláudia já estava
preocupada. Quase duas horas depois do previsto estava finalmente
pronto para carregar o carro.
Ela ficou como eu ao ver o carro 31. Um jipe. Bem,
um carro com tracção às quatro e a preço
de mini. Só tinha um problema... Para já! Buzinava
cada vez que se trancavam as portas. Mas, buzinava alto...
Telefonei ao Hugo, para o avisar de que já não íamos
visita-los, depois de todos aqueles atrasos. Fiquei com pena! Queria
mesmo ir visitar a Catarina... Mas, pronto!
Conseguimos meter a tralha toda no jipe. Malas,
mochilas, sacos-cama, tenda, sacos, saquinhos e sacolas, uma geleira
relativamente grande, mas vazia, que o Singh nos emprestou sem
saber e tudo coberto por um saco-cama de forro polar, pois a mala
era descoberta.
E rumamos a sul. Com destino a São José,
a casa do Mário e da Sá.
Mas, estava a ficar tarde para jantar naquela terra
de Deus, onde as coisas fecham à hora que nós portugueses
estamos habitados a começar a procurar sítio para
o fazer. Só nos restavam os MacDonalds e derivados, ou,
os tailandeses do costume.
Como íamos passar em Van Ness, porque nem
pensamos em apanhar a 280, decidimos passar por perto da casa da
RM&P e ver se arranjávamos estacionamento.
E, arranjámos! Nas esquinas mais esquisitas
da zona. Na zona dos transexuais, junto a um bar onde eles/elas
param, junto às esquinas onde eles/elas engatam. A zona é das
piores e mais mal frequentadas da cidade, principalmente àquela
hora.
Juro que fiquei com receio de estacionar o carro
ali. Mas, arriscamos! Foi assim que nos roubaram uma vez em Sevilha,
mas ali correu tudo bem e ninguém ligou muito a um mini-jipe
parado ali na esquina e com a mala com um forro-polar azul escuro
por cima.
Fomos ao tailandês mais perto da casa da RM&P.
Comemos à pressa com receio de deixar o carro por muito
tempo.
E, partimos para casa do Mário. Era quase
meia noite quando lá chegámos, depois de nos termos
perdido dentro de São José. Eu julgava que aquilo
era pequenino, mas, a cidade é grande e cheia de auto-estradas.
Segui as instruções do Mário,
mas... Virei na saída errada e fui parar ao outro lado da
cidade. Volta para trás, entrar de novo na 101 e apanhar
a saída correcta. Sai nesta, vira naquela e passa a outra
e já estávamos à porta da casa do Mário
e da Sá.
O condomínio parecia um complexo prisional.
Portão automático que só abria para se sair,
mas, esperando um minuto logo saia alguém e eu entrei com
o mini-jipe-kia. Depois, era procurar o edifício onde era
o apartamento deles... Não era aquele, era o do fundo...
Mas que fundo? Aquilo era um não acabar de estacionamentos
e prédios. Parecia que aquele portão dava entrada
para uma cidade e não para um condomínio.
Por fim lá demos com o edifício. Mas,
a saga não tinha acabado... Campainha? E, a porta deles?
Parecia que só havia meia dúzia de apartamentos naquela
entrada... Fomos a outra e finalmente encontramos... O apartamento
do Mário e da Sá no rés-do-chão do
edifício do fundo!
A casa deles, apesar destas complicações
todas, até que era porreira. A cozinha estava ligada à sala
e tinha uns móveis castanhos escuros. A sala como era normal
nas casas de todos os estagiários, estava quase vazia. Tinha
um sofá cama que serviu muito bem, para quem estava estoirado
de tanta correria e da hora tardia. A casa de banho era pequenina,
mas servia bem para o que foi feita e o quarto deles tinha à porta
um bilhetinho de boas vindas à Sá...
Eu estava mais morto que vivo, assim como a Cláudia...
Mas, ainda estivemos um bocadinho na conversa...
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