SEXTA-FEIRA, 20 DE OUTUBRO DE 2000 C139
Cláudia em Point Reyes - Fotografia de Rui Gonçalves

Quinta-feira, 3 de Agosto de 2000

Véspera da partida de férias. A minha cabeça fundia em coisas para me lembrar de fazer antes da partida. Era tanta coisa de que me queria lembrar e que me esqueci de quase tudo. Até me esqueci de pedir ao Jesse pelo fogão a gás...

Para ajudar à entropia tinha que fazer a minha parte do trabalho geográfico. Havíamos decidido entre nós acabar a primeira parte do trabalho e distribuí-la pelo grupo para discussão, nesse dia. Mas, eu nem sequer tinha começado a escrever uma linha que fosse. Mal cheguei ao escritório, "fechei a loja" e dediquei-me à escrita sobre a cultura de Silicon Valley. Em duas horas tinha escrito o capítulo à pressa e enviei aos meus colegas para discussão, assim como recebi as partes deles, exceptuando a do Tiago que estava em formação. Não li nenhuma das partes, pois a cabeça já não estava para ali virada.

Depois do dia de trabalho, voltei para casa na Vaynessa e ainda tinha intenções de arrumar algumas coisas para não estar atrapalhado no dia seguinte. Mas, não arrumei nada, porque cheguei tarde demais e tive que sair a correr para comprar senhas e apanharmos o autocarro para São Francisco. Íamos ao concerto dos Dandy Warhols no The Great American Music Hall.

Também foi pressa a mais, porque chegámos cedo, mas mesmo assim já estava gente à porta. A sala estava esgotada como é costume. Mas, não admira, porque a sala é minúscula, e, as pessoas vão cedo para apanhar os lugares melhores nos camarins ou varandins do primeiro andar.

Comprámos uns burritos e umas cervejas e fomos comer para casa da RM&P. Os pais da Mónica estavam por lá e tinham feito jantar para elas. Estivemos na conversa um bocado até que decidimos descer para o concerto. A mãe da Mónica estava deveras preocupada com os homossexuais portadores do vírus da SIDA e que se viam na rua com o seu ar decadente, doentes e brancos como a cal. Bem, esse é realmente o ar dos tipos todos, por lá, mas, é porque eles são mesmo assim e não porque estejam a morrer de SIDA. Eles são brancos e não fazem praia, rapam o cabelo e parecem carecas, o que lhes dá ar de doentes, mas, daí a estarem todos com SIDA. Segundo as estatísticas são apenas (isto do apenas depende do ponto de vista) 4% os que têm HIV.

Entrámos na sala e à entrada ofereciam tampões para os ouvidos, como já é normal. A Cláudia começou a gozar com o tipo a perguntar porque é que usavam aquilo. Porque se calhar até põem o som mais alto, só porque metade do público está de tampões nos ouvidos. O tipo aconselhou a levar os tampões porque supostamente os Dandy Warhols eram barulhentos... Defina barulho!

Demos uma volta pela sala enquanto a banda que fazia a primeira parte começava a sua actuação. Eu já descrevi a sala, aquando do concerto dos Eels, mas, na altura não tinha subido ao primeiro andar. Este, é apenas um corredor de cada lado da sala, com cadeiras e mesas, onde o pessoal come e bebe enquanto vê o concerto.

Aliás, a vista para o palco era das melhores. Dali conseguíamos ver a banda perfeitamente. É, que como o palco está muito próximo do público, tem de ser muito baixo e depois, da plateia, só se vê a banda da cintura para cima, por causa das cabeças dos espectadores à nossa frente.

A banda era formada por quatro tipos. O vocalista e guitarrista era parecido com o Garfunkel, loiro e careca, mas, com um colar havaiano. O teclista era um tipo relativamente normal se comparado com os outros. O baterista não existia. Com um penteado algures entre os Jesus and Mary Chain e os Boney M, com suíças até ao pescoço. O outro, que tocava um instrumento que produz uns sons esquisitos, que os Blur usam no M.O.R., estava de chinelos e usava uma cabeleira loira à surfista. A música roçava a dos Dandy Warhols... Pensei eu, antes destes últimos começarem a tocar. Porque depois vi que não tinha nada a ver! Aliás porque conhecia muito pouco dos Dandy Warhols.

No intervalo aproveitei para ir à casa de banho, que ficava no primeiro andar ou no mezanino, como quiserem. E aí, vi uma das formas de publicidade mais estranha que já tinha visto. A rede no mictório mudava de cor com o calor da urina e aparecia escrito "Live 105", o nome da rádio que patrocinava o concerto e que já tinha oferecido os lindos tampões para os ouvidos, logo à entrada. Fiquei deveras impressionado, parecia que queriam dizer que a radio era urino-orientada. Uma publicidade muito boa, mesmo!

Os Dandy Warhols entraram em palco por detrás de uma cortina de fumo. O vocalista, que é mesmo grande estava com uma linda t-shirt preta, toda rota. O guitarrista também envergava uma t-shirt preta com umas grandes letras brancas que dizia PUNK e que brilhava no escuro. Se calhar era ele mesmo, o Punk. O trompetista/guitarrista e tocador de batuques e a tipa estavam ambos de chapéu à cowboy. Ela como verdadeira americana usava uma t-shirt apertada que abanava verticalmente quando dançava ou tocava maracas, para delicia dos mais famintos espectadores. Embora, precisasse de perder alguns quilos.

Por detrás deles estava um écran onde eram projectadas imagens sem nexo nem sequência aparente, mas, fiquei surpreendido quando aqueles meninos americanos projectaram mamilos. Sim! Imagens de nudez num sítio público? Afinal a América está a mudar.

Mas, está mesmo, porque a meio do concerto umas tipas perguntaram-nos se nos importávamos que elas fumasse ali dentro. Bem, a sala estava cheia de gente e eu é que me ia importar? Se havia quem se importasse eram os donos do bar, uma vez que é proibido. Mas, elas eram de New Jersey e lá pode-se fumar. Estavam-se a marimbar para as leis da Califórnia, estavam era preocupadas se nós, vizinhos directos delas nos importávamos. Lá fumaram...

Que falar da música dos Dandy Warhols? Confesso que apenas conhecia um tema dos tipos e que fui ali para tentar conhecer algo mais, além de que queria mostrar à Cláudia, a sala e um bocado do mundo da música ao vivo de São Francisco e porque achava a banda divertida. O único tema que conhecia era o "Not If you Were The Last Junkie On Earth (Heroin Is So Passé)" cujo título diz tudo acerca do gozo que eles querem transmitir. Mas, eles nem sequer tocaram esse tema.

O concerto centrou-se à volta do último álbum, que me pareceu algo monótono, apesar de ter alguns temas bastante mexidos e melodiosos. O que importa é que nos divertimos e dançamos quase o concerto todo.

A meio do concerto a banda saiu do palco, ficando apenas o vocalista acompanhado por uma guitarra acústica e cantou uma versão de um tema da Katrin Hersh, que em tempos pertenceu às Throwing Muses. O tema a princípio era imperceptível tal era a distorção do som, mas o refrão era inconfundível. Essa parte, que no original é cantado pelo Michael Stipe dos REM, repete-se até ao final dizendo "I think last night you were driving cyrcles around me", como se de um círculo infinito se tratasse. Chama-se "Your Ghost" se quiserem procurar e é um tema muito bonito e foi muito bonito vê-lo ali a ser tocado.

A dada altura um tipo que estava atrás de mim, ao ver-me a cantar, perguntou-me se era um tema do último álbum. Lá lhe expliquei a origem do tema e as razões que me lavaram a estar ali, uma vez que só conhecia um tema da banda. Ele compreendeu porque também ele só estava ali porque não tinha nada mais que fazer e não lhe apeteceu estar em casa. E, como o ambiente do bar é porreiro e o bilhete barato ($10).

Logo de seguida, e para provar que aquilo não eram só baladas e música pop, atacaram, já com a banda toda em palco, com uma musica muito parecida ou uma versão muito alterada do Drug Train dos The Cramps. Não deu para perceber bem por causa da distorção que pautou durante todo o concerto. Não sei se de propósito ou devido a alguma deficiência técnica, mas, o som esteve um bocado fanhoso.

À saída do bar, e como de costume, deram-nos uns panfletos promocionais de uma série de bares, concertos e bandas. E, para novidade deram-nos um par de cassete de uma banda chamada Palo Alto e que seria a nossa banda sonora das férias.

Palo Alto? Já imaginaram isto? É como os Santa Maria que se chamam assim porque são de Santa Maria da Feira. Eu vou fazer uma banda chamada Esgueira.

Dali ainda fomos a casa da RM&P, porque ainda vimos as luzes acesas. Estivemos um bocado na conversa à espera que passasse o tempo que faltava para o autocarro da uma da manhã, para Corte Madera. Os pais da Mónica já se tinham deitado e a Patrícia também.

Quando chegámos à paragem estava lá apenas um tipo com ar de transloucado e com um boné de baseball na cabeça. Eu reparei logo na maneira como ele nos fixava e parecia que nos entendia, ou tentava entender. A dada altura perguntou-nos se éramos brasileiros ou portugueses.

Fiquei pasmado! É raro alguém perceber alguma coisa do que dizemos. Mas, na verdade ele não percebeu nada do que dizíamos, mas sabia o som da nossa língua. Pelos vistos tinha negociado em vinhos e conhecia algumas coisas do nosso país. Mas, continuava com aquele ar de transloucado.

Chegou o autocarro e a conversa ficou por ali. Ele sentou-se no banco ao lado do nosso, mas, eu e a Cláudia começámos a conversar um com o outro e não lhe ligámos.

Mas, não foi por muito tempo, porque no entretanto tinha-se gerado uma cena de discussão, na frente do autocarro e que era o centro das atenções do pessoal todo lá dentro. Um puto completamente bêbado tinha entrado no autocarro e não colocou na ranhura do dinheiro a quantia certa do bilhete. Faltavam apenas 10 cêntimos, mas, o motorista não podia aceitar a situação e o puto não queria pôr lá um quarter (25 cêntimos), que era o único trocado que tinha, porque perdia 15 cêntimos.

Nos autocarros, deposita-se o dinheiro para pagar os bilhetes numas máquinas e os motoristas nunca mexem em dinheiro, nem em bilhetes, porque estes também entram para a máquina. Eles apenas confirmam, ou não, o bilhete e as quantias certas. Mas, no fim as contas têm que bater certo ou apanham na cabeça. Porém, eu vi algumas vezes, alguns amigos dos motoristas que não pagavam.

Mas, o mal ali era que o puto tinha posto parte do dinheiro e ele não podia confirmar a quantia porque era inferior ao bilhete. Mais valia que o puto não tivesse metido nada na máquina. E, o pior é que tinha insultado o condutor e este tinha ficado fulo. Eu até suponho que o condutor nem tinha percebido, porque o inglês dele roçava o chinês.

O puto lá cedeu e antes que houvesse mais problemas colocou os 15 cêntimos a mais e foi-se sentar, depois de um tipo que estava atrás de mim ter mandado uns berros a dizer que aquilo estava a atrasar o autocarro e que ele queria ir para casa. A verdade, é que isto fez com que o condutor telefonasse para a polícia, a avisar da ocorrência para prevenir que o tipo fizesse queixa. Quem se lixou foi o puto que ao ver que ele chamou a polícia, saiu do autocarro e ficou no centro da cidade, bêbado e sem dinheiro. Um menor...

Pois bem, são estas coisas que fazem da América um país de contrastes. Então pelos menores faz-se qualquer coisa e depois estes andam bêbados, numa terra em que não podem beber (tem que se ter 21 para comprar álcool) e são deixados no meio da rua às tantas da noite. Qual é lógica disto?

A verdade é que a Cláudia já estava quase a dormir e acordou. E, o nosso translouco que sabia o que era português, voltou à conversa. Pelos vistos vinha do Foley's, o bar irlandês onde íamos nos tempos da pousada. E, vinha de um concerto de música celta. Avisou-me que o David J ia lá tocar em breve e combinámos marcar um encontro num pub em Sausalito, para beber um copo.

Ele saiu em Marin City e nós seguimos para casa, em Corte Madera.



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