Sábado, 29 de Julho de 2000
Na última crónica esqueci-me de vos
dizer que desde o sítio onde deixámos o bólide
até ao acampamento eram cerca de 60 metros a pé,
por entre rochas de granito, aquilo que por aqui se chamam de boulder,
e que para nós não passam de pedregulhos. E, que
algures no meio do caminho estava um jipe descapotável,
uma pick-up de caixa aberta alterada e com a suspensão levantada
e uma outra pick-up normal. Nada de mal, não fosse as posições
em que estavam e o modo como estavam estacionadas. Mas, mesmo isso
não é nada de especial comparado com o facto dos
respectivos donos decidirem mudar as viaturas de sítio às
tantas da noite, no escuro e com a quantidade de álcool
no sangue suficiente para curar qualquer ferida.
Pois bem, os pedregulhos era qualquer coisa de grande
e era difícil imaginar como é que aqueles jipes e
pick-ups tinham passado em algumas zonas. Mas, depressa percebi
que afinal era tudo uma questão de paciência e de
pouco amor aos carros. O jipe era do tipo dos pêssegos, a
pick-up alterada era do Cliff, que já estava a dormir à hora
da diversão em quatro-rodas, e, a outra pick-up era do Joe,
o maior bronco do grupo.
Mas, o Joe não mexeu muito na pick-up dele,
o nosso amigo dos pêssegos é que resolveu andar a
brincar em cima dos calhaus... Até que mandou uma de frente
e com força contra um pedregulho e resolveu parar com a
brincadeira. O jipe ficou ali mesmo no cimo de um pedregulho a
cerca de 3 metros acima da fogueira, mas afastado cerca de uns
5 metros.
Isto foi um bocado antes de nós termos ido
deitar, na noite anterior. Naquela manhã, acordei com os
pássaros e com alguém a conversar ao lado da tenda
sobre bagels. Estes tipos estão habituados a acordar cedo,
mas, podiam deixar os portugas dormir mais um bocado. Está-nos
no sangue.
A Cláudia queria continuar a dormir, eu levantei-me
fui ver o lago. Quando lá cheguei, já estava tudo
nas suas cadeiras magníficas, que aparentemente andam sempre
coladas ao cu e que vão com eles para todo o lado. Já na
noite anterior, os únicos que não tinham uma cadeira, éramos
nós os três. O Joe e a namorada, mostravam as fantásticas
cadeiras desdobráveis com extensões para pousar os
pés e um buraco no braço para poisar a lata de cerveja,
recentemente adquiridas.
O Joe, o bronco era um verdadeiro animal da bebida
e da comida. Não mexia uma palha, comia e bebia que nem
um urso. Era o maior ser de todos os do acampamento e a namorada,
parecia que tinha bebido bagaço, tal era o seu tom de voz.
Ela vangloriava-se de ter bebido doze cervejas na noite anterior...
Budweiser a cerveja que nos transforma em fontes ambulantes.
Já estavam todos acordados, incluindo a Mariana.
A água do lago estava um bocado fria, mas que esperar, devíamos
de estar acima dos 1500 metros. O lago, ou reservatório,
uma vez que era um lago artificial, estava rodeado de pedregulhos
por todo o lado. Entre as rochas, aqui e ali, apareciam uns pinheiros
e nas zonas menos rochosas haviam pequenos pinheirais. De repente,
uma cegonha cinzenta sobrevoou o pinheiral do nosso acampamento
e voou para longe.
Cumprimentei o pessoal e fui caminhar. Agarrei na
câmara fotográfica, deixei a Cláudia sossegada
na tenda e fui para a estrada de terra. O Jerry passou por mim,
ao vir do carro e eu entrei por um caminho do outro lado da estrada
em direcção a um morro de granito. A montanha era
toda em granito, não havia nenhuma terra naquele morro,
e as poucas árvores que se viam eram apenas pinheiros pequenos,
que a muito custo conseguiam crescer entre as rachas na rocha e
que na sua maioria iriam acabar como os troncos mortos que povoavam
o pico, quando chegasse àquele tamanho.
Naquele desterro de pedra a única vida selvagem
era um lagarto aqui e outro ali, e um abutre de cabeça vermelha
que voava em círculos uns bons metros acima da minha cabeça,
aparentemente à espera que eu lhe servisse de pequeno almoço.
Mas, o esperto do animal fugiu quando eu tirei a câmara para
fora e decidi tirar-lhe um retrato...
Acho que não gosta de publicidade. Aqui onde
eu moro, os abutres de cabeça vermelha também são
comuns, mas devem ter mais que comer.
Viam-se montanhas de granito a perder de vista e
o reservatório no meio, com uma série de ilhas de
granito, pelo meio. Para Sul conseguia-se ver umas montanhas mais
altas e com canyons que já deviam pertencer ao parque natural
de Yosemite. Para norte via-se um vale empedrado com um pequeno
rio que serpenteava pelo meio dos pedregulhos.
Andei por ali até que me deu a fome e o calor
começou a apertar. Desci de novo para o acampamento, que
ainda não expliquei, mas que não era em nenhum parque
de campismo. Eu não sei se perceberam, mas a zona era de
campismo selvagem e à vontade. Haviam vários grupos
de pessoas acampados nas nossas redondezas, mas, não se
ouviam nenhum barulho e ninguém incomodava ninguém...
Bem, eu posso dizer isto das pessoas que estavam mais ou menos
perto de nós, mas, duvido que eles dissessem o mesmo do
nosso grupo.
A Cláudia continuava pedrada e eu fui dar
um mergulho. Fiz umas sandes para mim e para a Cláudia e
decidi ir ler porque estava muito calor, para se estar ao sol.
Adormeci. Estava um excelente dia e estar ali à sombra com
uma brisazinha a percorrer o corpo, como se de uma festa se tratasse,
só podia resultar numa sesta. Aliás, o facto de não
tomar a dose diária de café também ajudou.
Acordei com a Mariana a perguntar se queríamos
ir passear. Claro. Nem sei que horas eram, mas já estava
a ficar mais fresco e era sempre bom ir ver as redondezas e esticar
as pernas. Já chegava de preguiça.
Seguimos a estrada de terra na direcção
contrária à que eu tinha tomado de manhã.
A dada altura à nossa direita, no lago, aparecem uma série
de nenúfares, que dava ao lugar um ar idílico.
Mais à frente, no meio do nada, umas casas
de banho. Estes americanos não param de me surpreender e
estas coisas aparecem assim no meio do nada como se de cogumelos
se tratassem. O Joe aproveitou e foi fazer as suas necessidades,
enquanto o Jerry resolvia dar-lhe cabo da paciência e lhe
atirava pedras para a porta. O Joe, aproveitou para mostrar o que
a bronquice lhe tinha feito e abriu a porta para o mundo ver bem
o que ele estava a fazer...
A namorada dele e o Jerry ficaram e nós continuámos.
Eu, a Cláudia, a Mariana, o Charlie, o Dillan, a Moira,
a amiga e o Cliff.
O Cliff é um porreiro. Dormia num bivac do
exército mesmo ao lado da minha tenda e tossia a noite toda,
mas era o único que conseguia mandar umas piadas inteligentes.
Foi caminhar connosco apenas com uns chinelos calçados e
a dada altura tirou-os porque eram pouco seguros. Passou a andar
descalço.
Contou-me que em tempos também tinha tido
uma série de material de fotografia, mas que durante umas
férias, lhe assaltaram a carrinha Volkswagen e lhe levaram
o material e que para repor a coisa era preciso muito dinheiro
e vontade, coisas que ele não tinha ou não queria
gastar naquilo. Ainda falámos do deslocamento das placas
tectónicas e das Ponderosa pine tree que eram os pinheiros
ali da zona. Rapaz bem mais inteligente do que tinha demonstrado
na noite anterior com os copos.
A Moira, suponho que era o nome dela, porque nunca
percebi quem era quem, naquele grupo de duas amigas, foi uma das
que chegou primeiro ao acampamento. A outra, que não me
lembro o nome, tinha dois cães chatos como o raio. Um deles
era uma cadela chamada Whiskie. Nome muito bom para uma cadela.
Coitada. Aliás, ela desistiu do passeio porque os cães
podiam se magoar e voltou para trás. Dormia e vivia para
os cães...
Mas a Moira era um miúda muito esquisita.
Muito tímida, e acho que não falei uma vez com ela.
Era um bocado forte e tinha, decididamente, vergonha do seu corpo,
porque nunca se pôs em fato de banho.
Saímos do caminho para irmos parar novamente
a ele, ou não, porque me pareceu que era outro. Voltámos
a sair desse caminho e descemos para o rio, onde encontrámos
um escorrega. Bem, uma rocha escorregadia com água, com
cerca de três metros de comprimento e que serviu de escorrega.
Pelo menos para mim e para o Charlie, porque os outros não
se aventuraram. Parecia coisa de um aquaparque, mas ali no meio
da natureza.
Bem, mas estava a ficar frio para estar na brincadeira ali no rio
e o sol estava já escondido por detrás da montanha,
pelo que o melhor era ir embora.
Seguimos o rio, mas do lado errado da margem, pelo
que tivemos que estar a arranjar o sítio para o atravessar
sem nos molharmos. Além disso, ouvimos disparos e estavam
ali uns tipos a exercitar o tiro, pelo que não convinha
nos aproximar muito por causa dos ricochetes. Mas, tivemos mesmo
que passar por eles porque o rio começou a aumentar de largura à medida
que nos aproximava-mos de uma barragem.
Era uma família. O pai devia de estar a ensinar
o filho a atirar e este devia de estar a tentar impressionar a
namorada. É triste ver como estas pessoas que não
têm nada para fazer passam o tempo... Além disso é assustador
acreditar que toda a gente pode fazer aquilo e ter uma arma, neste
país. Depois acontecem aquelas coisas que vemos na televisão,
que um miúdo entra pela escola a dentro e descarrega um
carregador nos colegas e professores.
Mas lá conseguimos atravessar o rio e subir
uma montanha de granito, para do outro lado encontrarmos algumas
lagoas de água da chuva acumulada e com nenúfares.
Uma coisa espectacular, como se estivesse escondida ali dos olhares
dos preguiçosos e só nos fosse deixado ver como compensação
pelo esforço de ter escalado todo aquele caminho.
Voltámos ao acampamento. A vontade de me
atirar à água era grande, mas a temperatura dela
não ajudava, ainda para mais quando já não
se via o sol, que se punha por detrás das montanhas. Molhei
os pés e apreciei o pôr-do-sol.
A dada altura as nuvens começaram a ficar
vermelhas, laranjas e roxas. Parecia que o céu estava em
chamas. Só espero que a máquina tenha conseguido
captar aquele momento, pois foi um dos pôr-do-sol mais bonitos
que já vi. Chamei a Cláudia para que pudesse ver
também, aquele belo momento, e que o visse comigo. E, de
repente do lado do acampamento, por detrás das árvores,
oiço alguém a chamar o resto do grupo para apreciar
o pôr-do-sol. Foram uns dez minutos de silêncio a olhar
para as nuvens e para o céu flamejante.
Mas, o que é bom acaba depressa e estava
na hora de jantar. Preparámos o nosso jantar à luz
das lanternas, que estavam a ficar sem pilhas. Isto porque o frontal
da Cláudia tinha ficado sem pilhas e, acreditem ou não,
aquelas pilhas de 9v não se vendem nesta terra de Deus.
Lá conseguimos preparar tudo e atirámos
com a comida para a grelha da fogueira. Um salmão maravilhoso
embrulhado em papel de alumínio, assim como umas batatas
com manteiga e muito alho. Isto de entrada, porque depois veio
um entrecosto maravilha, tudo regado com a última descoberta
em termos de cerveja, Tekate, uma cerveja mexicana muito parecida
com a nossa Super Bock. Isto porque a garrafinha de vinho tinto
já tinha voado enquanto se esperava pelo cozinhado.
O salmão estava tão bom que ficámos
arrependidos de não ter lá posto a outra posta que
estava na geleira. Além disso, cheirava tão bem que
o pessoal quis experimentar. Especialmente o bronco do Joe que
apenas tinha trazido salsichas para comer...
O único problema, foi o do costume... O sal.
Nesta terra o sal não existe. Ou aliás, existe um
produto que eles lhe dão esse nome, mas, que não
passa de um pó qualquer branco que não tem efeito
nenhum na comida.
E, a pilha dos soldados mortos começou a
aumentar. Ali à volta da fogueira na conversa. O Jerry e
a Liz mostraram-se bem mais interessantes que o que tinham demonstrado
até aí. Estivemos, eu e a Cláudia, na conversa
um monte de tempo, com eles... E, no fim da noite o Jerry ainda
dedicou e cantou uma música à Mariana.
A dada altura, já a coisa estava a acalmar
quando começou a rolar uma garrafa de vodka SKYY e uma de
sumo de amora. Parecia um cachimbo da paz. Um golo de uma e um
golo da outra e passava-se ao vizinho do lado. Ali à volta
da fogueira...
Fui dormir à 1h da manhã, quando o
grupo decidiu massacrar o Cliff, que novamente se tinha ido deitar
mais cedo, no seu bivac, ao lado da minha tenda.
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