C134 SEXTA-FEIRA, 8 DE SETEMBRO DE 2000
A Volta da Fogueira - Fotografia de Rui Gonçalves

Há seis semanas atrás a vida era assim...

Sexta-feira, 28 de Julho de 2000

Já alguns dias tinha escrito um mail ao Ken a perguntar-lhe se podia tirar uns dias de férias. Mandei-lhe um mail, uma vez que ele estava para New Orleans e eu precisava da resposta rápido, porque precisava de arranjar as coisas e alugar um carro. Ele normalmente lê o mail quando está para fora. De manhã quando cheguei ao escritório tinha a resposta dele a desejar-me umas boas férias. Tinha quinze dias para curtir...

Pouco depois percebi porque é que tinha recebido a resposta do Ken nessa amanhã. O pessoal que tinha ido para a Siggraph estava de volta. O Ben chegou rouco e a dizer que New Orleans foi só copos. E, que conheceu uma dinamarquesa meia japonesa muito interessante... Nunca mais o ouvi falar na tipa.

Mas a novidade maior e não muito agradável era a que o VisConcept não correu durante todo o salão. Aparentemente a Silicon Graphics enviou para o salão a última versão dos seus equipamentos e o VisConcept nunca tinha sido testado em tal máquina e como seria de esperar não funcionou. Azar!

Sai cedo, pois tinha combinado com a Mariana irmos acampar no fim-de-semana com uns amigos dela para um lago algures entre Yosemite e Lake Tahoe, chamado Utica Reservoir. E, eu ainda queria lavar o bólide, uma vez que as irmãs dela vinham na semana seguinte e o tipo estava uma verdadeira vergonha. Além disso, ainda tinha que preparar o saco e ir buscar a Mariana a São Francisco, antes das 5h da tarde.

Assim fui almoçar a casa. Enquanto a Cláudia arrumava as coisas dele e tomava um banho, eu lavei o bólide no parque de estacionamento do condomínio onde vivo. Estava um calor bom para estar ali a lavar o bólide e este até ficou que nem um brinco.

Fomos almoçar ao MacDonalds, para adiantar serviço e abalamos para São Francisco. Tudo muito bem, apesar de já estar um bocado atrasado em relação ao combinado com a Mariana e o trânsito à entrada da Golden Gate não ajudar muito. Até que ao atravessar a Golden Gate Bridge me lembrei que afinal estava tudo mal. Tínhamo-nos esquecido da tenda. Já estávamos uma hora atrasados.

A Mariana já se estava a passar. Assim que parámos o carro aparece ela a perguntar o que é que se passava. Estava ali à nossa espera há um bom bocado, coisa que ela nem costuma fazer, porque consegue chegar sempre atrasada. Mas, fomos buscar as coisas dela e colocámos tudo no bólide, enquanto aparecia o Chris e o Mike. O primeiro não ia acampar porque estava à espera de uns amigos franceses e o segundo porque tinha que trabalhar. O Chris já vocês conhecem, mas, o Mike é outra figura extravagante, mas muito simpático. Tem o cabelo oxigenado e está sempre com um sorriso na cara. Aparentemente trabalha num café... E é difícil descrevê-lo porque é daqueles cromos raros que só mesmo vendo, mas eu diria que a imagem dele traz-me à memória Londres e a ideia dos noctívagos ingleses mais do que propriamente um americano de São Francisco. Mas, por outro lado, isso também é normal nesta cidade em que estas culturas todas se misturam.

Nós como estávamos com pressa para ir buscar a tenda e fazer umas compras, nem falámos muito com eles e arrancámos para Corte Madera. O trânsito para Norte já estava todo compacto a partir de Mill Valley e eu como santo da casa fui pelos atalhos para minha casa.

Antes de ir buscar a tenda decidimos ir às fazer as compras ao Safeway. Enchemos uma geleira de um metro por meio por meio metro com comida e bebida para o fim de semana. Cubrímos de gelo e arrancámos que já eram 7h da tarde e ainda nos esperavam pelo menos 4h de viagem.

A estrada nunca mais acabava. Primeiro uma auto-estrada de quatro ou cinco faixas, depois uma recta enorme sem trânsito e que passava por uma praça de touros que ostentava a bandeira portuguesa e onde decorria uma tourada, depois outra recta enorme com pequenas subidas e descidas seguida de uma estrada de montanha com marcações de neve e por fim uma estrada de terra batida poeirenta e muito larga.

Pelo meio ficaram Oakland, Pleasentville, Stockton, Angel's Camp e outras terras cujo os nomes se perderam no meio de tantos pormenores. É impressionante apercebermo-nos que no interior da Califórnia existe um vale enorme onde a agricultura é abundante. E, é fantástico ver que mal saímos da Bay Area tudo é dourado. Os montes estão cobertos de erva seca que lhes dá uma cor dourada, fazendo lembrar o Alentejo e Espanha.

Ainda parámos numa terrinha para meter gasolina, já quase ao chegar à zona onde tínhamos que entrar no caminho de terra. Parecia que estava num filme. Para um carro a fumegar e saem de lá quatro rapazes, nenhum com mais de 18 anos e com ar de quem pertencia a alguma boys band ou um gang de rua. Estavam ali porque não havia mesmo mais nada para fazer do que... Fazer nada! A vida nas terras do interior é assim mesmo... Não se faz nada, porque não há nada para fazer e então juntam-se e vão beber umas cervejitas...

Pareciam aquelas cenas dos filmes em que um grupo de amigos sai de casa para ir ver os aviões passar ou apenas até à bomba de gasolina por ser o único sítio aberto às 10h da noite. E, nós bebemos um café, comprámos umas tiras de queijo e linguiça e fomos à nossa vida, que nos esperava uma noite bem mais interessante que a daqueles coitados.

Quatro horas depois de partirmos demos com o sítio, marcado com pratos de papel escritos com os nomes das pioneiras. Sim! Duas raparigas tinham vindo nessa manhã para marcarem o sítio. E, para que déssemos com a coisa foram pregando pratos de papel com os nomes delas inscritos, em postes ao longo do caminho. Até que chegámos a um arbusto com uma série de pratos pendurados junto a uma série de carros e que correspondia ao local do acampamento.

Agarrámos nas coisas e entrámos pelo acampamento... Já estava tudo com uma bebedeira à volta da fogueira. Houve mesmo alguém que nos disse que estávamos enganados, tal era o estado da visão apurada por litros de budweiser.

Nós montámos as tendas e juntámo-nos a eles. Nem sequer tínhamos jantado. Comemos umas sandes e fomos para junto da fogueira... Não que estivesse frio, mas a imagem do fogo é sempre reconfortante e nada como nos juntarmos aos presentes.

O Jerry fazia anos... Depois vim a descobrir que fazia anos na segunda, mas, pronto, já estava a comemorar. Era uma personagem curiosa, sempre de chapéu de cowboy na cabeça, os calções caídos no cu e abaixo do joelho e com uma budweiser na mão... Mesmo quando estava a tocar guitarra e a cantar. Tinha pertencido a uma banda ou ainda pertencia, não fazia nada e tinha-se despedido para jogar golf. Uma boa opção de vida. A Liz, a namorada dele, era tão branca que punha o abominável homem das neves a um canto. Suponho que devia ter andado a caiar alguma casa ou a tomar banho em lexívia. E, para além de ser tão branca e loira, tinha um par de mamas tão grande que nadar deixava de ser um problema para ela. Ele dizia que ela não queria casar com ele porque ele ainda não era maduro suficiente para encarar o acto do casamento. Ela tinha toda a razão...

Mas, para além do Jerry, que fazia anos, haviam alguns personagens que deviam estar próximos de entrarem em órbita alcoólica. O Paul uma personagem curiosa, estava sentado num tronco ao nosso lado e caía consecutivamente para trás, pedia desculpa pelo estado etílico e voltava a sentar-se, mais um bocado até à próxima queda.

Ao lado dele estava um tipo, cujo o nome já não me lembro, mas que era saídinho de um filme cómico, em que ele fazia o papel da personagem distraída e aluada. O tipo estava com uma bebedeira descomunal e por detrás dos seus óculos nem se conseguiam ver os olhos, mas, passava o tempo a dizer que Portugal era um sítio muito bonito e que lá tinha estado há uma série de anos. Pelos vistos, passou umas férias de seis semanas em Portugal, depois de deixar um emprego numa plantação de pêssegos em França, com o Cliff, outra personagem, que no entretanto já se tinha ido deitar, tal era o seu estado alcoólico. Mas, que ainda esteve a cantar comigo o tema "Peaches" dos Presidents of The United States of America, para gozar com o amigo.

Eles tinha estado em Viana do Castelo, Ponte de Lima, Porto, Lisboa e Lagos. Estivemos a falar das falésias e das praias de lagos que apenas têm acesso pelo mar. O Paul entre duas quedas para detrás do tronco, disse que conhecia umas praias assim no México, mas que nunca tinha estado em Portugal. Tem tudo a ver.

Esse tal dos pêssegos que tinha estado em Portugal com o Cliff, pelos vistos, namorava com a Vanessa, que roubou o nome à minha companheira de tantas aventuras e que era a cara chapada da prima Daisy dos Três Duques. Até a maneira de falar, só que tinha mais espinhas na cara do que as que a Daisy alguma vez mostrou na série. Ah! E, tinha um cão cinzento rafeiro com uma orelha partida que se parecia mais com uma hiena e que tinha medo da água, chamado DOJ. Além disso, nunca, mas nunca, tirou os calções de futebolista que envergava por cima do fato de banho. Nem para mergulhar no lago.

É surpreendente como as mulheres nesta terra têm vergonha de mostrar o corpo. O simples facto de terem celulite nas pernas, ou pensarem que a têm, faz com que a tapem com uns calções ridículos. Mas, as mamas, sim, essas estão sempre à vista, desde que não se veja nada proibido por lei. Mesmo na praia é difícil ver mulheres em bikini sem estarem com o rabo tapado, ou com um pano, ou com uns calções, ou mesmo de calças.

No entretanto chegou o Charlie e o Dillan. O Charlie já o conhecem, pois estava na semana anterior a ajudar o Chris a arranjar o Jaguar com motor de Chevrolet. Mas, o Dillan é mais uma personagem fantástica do mundo irreal de São Francisco. Não estou a dizer mal, pelo contrário, acho que o fantástico desta cultura é que cada um pode ser uma ave rara e ninguém tem nada a ver com isso. Ao contrário de Portugal em que todos nos vestimos da mesma maneira e somos todos iguais, e, se alguém sai do círculo é logo rotulado de anormal ou extravagante.

Mas, o Dillan pelos vistos trabalha numa empresa discográfica e tem todos os vícios do mundo da música. Não tem mais que um metro e sessenta e usa duas grandes argolas, uma em cada orelha. Estava com um casaco de trabalho de uma fábrica qualquer americana, comprado em segunda mão e anda como um verdadeiro artista. Mas, é um tipo espectacular e cozinha muito bem.

A pilha de latas e garrafas de cerveja, ao lado da fogueira, mostrava até que ponto a coisa tinha estado a rolar. Digamos que a coisa dava para encher um saco do lixo e se calhar ainda sobrava. E, estava a aumentar... Aquilo que o Paul chamava the Dead Soldiers, os soldados mortos da guerra alcoólica.

No entretanto, haviam mais personagens no filme, para além de nós os três e os que já descrevi, mas, não deu para me aperceber bem, porque estava absorvido pela conversa interessante com o pessegueiro e o Paul. Mas, depressa nos cansamos do discurso repetitivo dos dois e fomos dormir.



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