Há seis semanas atrás a vida era assim...
Sexta-feira, 28 de Julho de 2000
Já alguns dias tinha escrito um mail ao Ken
a perguntar-lhe se podia tirar uns dias de férias. Mandei-lhe
um mail, uma vez que ele estava para New Orleans e eu precisava
da resposta rápido, porque precisava de arranjar as coisas
e alugar um carro. Ele normalmente lê o mail quando está para
fora. De manhã quando cheguei ao escritório tinha
a resposta dele a desejar-me umas boas férias. Tinha quinze
dias para curtir...
Pouco depois percebi porque é que tinha recebido
a resposta do Ken nessa amanhã. O pessoal que tinha ido
para a Siggraph estava de volta. O Ben chegou rouco e a dizer que
New Orleans foi só copos. E, que conheceu uma dinamarquesa
meia japonesa muito interessante... Nunca mais o ouvi falar na
tipa.
Mas a novidade maior e não muito agradável
era a que o VisConcept não correu durante todo o salão.
Aparentemente a Silicon Graphics enviou para o salão a última
versão dos seus equipamentos e o VisConcept nunca tinha
sido testado em tal máquina e como seria de esperar não
funcionou. Azar!
Sai cedo, pois tinha combinado com a Mariana irmos
acampar no fim-de-semana com uns amigos dela para um lago algures
entre Yosemite e Lake Tahoe, chamado Utica Reservoir. E, eu ainda
queria lavar o bólide, uma vez que as irmãs dela
vinham na semana seguinte e o tipo estava uma verdadeira vergonha.
Além disso, ainda tinha que preparar o saco e ir buscar
a Mariana a São Francisco, antes das 5h da tarde.
Assim fui almoçar a casa. Enquanto a Cláudia
arrumava as coisas dele e tomava um banho, eu lavei o bólide
no parque de estacionamento do condomínio onde vivo. Estava
um calor bom para estar ali a lavar o bólide e este até ficou
que nem um brinco.
Fomos almoçar ao MacDonalds, para adiantar
serviço e abalamos para São Francisco. Tudo muito
bem, apesar de já estar um bocado atrasado em relação
ao combinado com a Mariana e o trânsito à entrada
da Golden Gate não ajudar muito. Até que ao atravessar
a Golden Gate Bridge me lembrei que afinal estava tudo mal. Tínhamo-nos
esquecido da tenda. Já estávamos uma hora atrasados.
A Mariana já se estava a passar. Assim que
parámos o carro aparece ela a perguntar o que é que
se passava. Estava ali à nossa espera há um bom bocado,
coisa que ela nem costuma fazer, porque consegue chegar sempre
atrasada. Mas, fomos buscar as coisas dela e colocámos tudo
no bólide, enquanto aparecia o Chris e o Mike. O primeiro
não ia acampar porque estava à espera de uns amigos
franceses e o segundo porque tinha que trabalhar. O Chris já vocês
conhecem, mas, o Mike é outra figura extravagante, mas muito
simpático. Tem o cabelo oxigenado e está sempre com
um sorriso na cara. Aparentemente trabalha num café... E é difícil
descrevê-lo porque é daqueles cromos raros que só mesmo
vendo, mas eu diria que a imagem dele traz-me à memória
Londres e a ideia dos noctívagos ingleses mais do que propriamente
um americano de São Francisco. Mas, por outro lado, isso
também é normal nesta cidade em que estas culturas
todas se misturam.
Nós como estávamos com pressa para
ir buscar a tenda e fazer umas compras, nem falámos muito
com eles e arrancámos para Corte Madera. O trânsito
para Norte já estava todo compacto a partir de Mill Valley
e eu como santo da casa fui pelos atalhos para minha casa.
Antes de ir buscar a tenda decidimos ir às
fazer as compras ao Safeway. Enchemos uma geleira de um metro por
meio por meio metro com comida e bebida para o fim de semana. Cubrímos
de gelo e arrancámos que já eram 7h da tarde e ainda
nos esperavam pelo menos 4h de viagem.
A estrada nunca mais acabava. Primeiro uma auto-estrada
de quatro ou cinco faixas, depois uma recta enorme sem trânsito
e que passava por uma praça de touros que ostentava a bandeira
portuguesa e onde decorria uma tourada, depois outra recta enorme
com pequenas subidas e descidas seguida de uma estrada de montanha
com marcações de neve e por fim uma estrada de terra
batida poeirenta e muito larga.
Pelo meio ficaram Oakland, Pleasentville, Stockton,
Angel's Camp e outras terras cujo os nomes se perderam no meio
de tantos pormenores. É impressionante apercebermo-nos que
no interior da Califórnia existe um vale enorme onde a agricultura é abundante.
E, é fantástico ver que mal saímos da Bay
Area tudo é dourado. Os montes estão cobertos de
erva seca que lhes dá uma cor dourada, fazendo lembrar o
Alentejo e Espanha.
Ainda parámos numa terrinha para meter gasolina,
já quase ao chegar à zona onde tínhamos que
entrar no caminho de terra. Parecia que estava num filme. Para
um carro a fumegar e saem de lá quatro rapazes, nenhum com
mais de 18 anos e com ar de quem pertencia a alguma boys band ou
um gang de rua. Estavam ali porque não havia mesmo mais
nada para fazer do que... Fazer nada! A vida nas terras do interior é assim
mesmo... Não se faz nada, porque não há nada
para fazer e então juntam-se e vão beber umas cervejitas...
Pareciam aquelas cenas dos filmes em que um grupo
de amigos sai de casa para ir ver os aviões passar ou apenas
até à bomba de gasolina por ser o único sítio
aberto às 10h da noite. E, nós bebemos um café,
comprámos umas tiras de queijo e linguiça e fomos à nossa
vida, que nos esperava uma noite bem mais interessante que a daqueles
coitados.
Quatro horas depois de partirmos demos com o sítio,
marcado com pratos de papel escritos com os nomes das pioneiras.
Sim! Duas raparigas tinham vindo nessa manhã para marcarem
o sítio. E, para que déssemos com a coisa foram pregando
pratos de papel com os nomes delas inscritos, em postes ao longo
do caminho. Até que chegámos a um arbusto com uma
série de pratos pendurados junto a uma série de carros
e que correspondia ao local do acampamento.
Agarrámos nas coisas e entrámos pelo
acampamento... Já estava tudo com uma bebedeira à volta
da fogueira. Houve mesmo alguém que nos disse que estávamos
enganados, tal era o estado da visão apurada por litros
de budweiser.
Nós montámos as tendas e juntámo-nos
a eles. Nem sequer tínhamos jantado. Comemos umas sandes
e fomos para junto da fogueira... Não que estivesse frio,
mas a imagem do fogo é sempre reconfortante e nada como
nos juntarmos aos presentes.
O Jerry fazia anos... Depois vim a descobrir que
fazia anos na segunda, mas, pronto, já estava a comemorar.
Era uma personagem curiosa, sempre de chapéu de cowboy na
cabeça, os calções caídos no cu e abaixo
do joelho e com uma budweiser na mão... Mesmo quando estava
a tocar guitarra e a cantar. Tinha pertencido a uma banda ou ainda
pertencia, não fazia nada e tinha-se despedido para jogar
golf. Uma boa opção de vida. A Liz, a namorada dele,
era tão branca que punha o abominável homem das neves
a um canto. Suponho que devia ter andado a caiar alguma casa ou
a tomar banho em lexívia. E, para além de ser tão
branca e loira, tinha um par de mamas tão grande que nadar
deixava de ser um problema para ela. Ele dizia que ela não
queria casar com ele porque ele ainda não era maduro suficiente
para encarar o acto do casamento. Ela tinha toda a razão...
Mas, para além do Jerry, que fazia anos,
haviam alguns personagens que deviam estar próximos de entrarem
em órbita alcoólica. O Paul uma personagem curiosa,
estava sentado num tronco ao nosso lado e caía consecutivamente
para trás, pedia desculpa pelo estado etílico e voltava
a sentar-se, mais um bocado até à próxima
queda.
Ao lado dele estava um tipo, cujo o nome já não
me lembro, mas que era saídinho de um filme cómico,
em que ele fazia o papel da personagem distraída e aluada.
O tipo estava com uma bebedeira descomunal e por detrás
dos seus óculos nem se conseguiam ver os olhos, mas, passava
o tempo a dizer que Portugal era um sítio muito bonito e
que lá tinha estado há uma série de anos.
Pelos vistos, passou umas férias de seis semanas em Portugal,
depois de deixar um emprego numa plantação de pêssegos
em França, com o Cliff, outra personagem, que no entretanto
já se tinha ido deitar, tal era o seu estado alcoólico.
Mas, que ainda esteve a cantar comigo o tema "Peaches" dos
Presidents of The United States of America, para gozar com o amigo.
Eles tinha estado em Viana do Castelo, Ponte de
Lima, Porto, Lisboa e Lagos. Estivemos a falar das falésias
e das praias de lagos que apenas têm acesso pelo mar. O Paul
entre duas quedas para detrás do tronco, disse que conhecia
umas praias assim no México, mas que nunca tinha estado
em Portugal. Tem tudo a ver.
Esse tal dos pêssegos que tinha estado em
Portugal com o Cliff, pelos vistos, namorava com a Vanessa, que
roubou o nome à minha companheira de tantas aventuras e
que era a cara chapada da prima Daisy dos Três Duques. Até a
maneira de falar, só que tinha mais espinhas na cara do
que as que a Daisy alguma vez mostrou na série. Ah! E, tinha
um cão cinzento rafeiro com uma orelha partida que se parecia
mais com uma hiena e que tinha medo da água, chamado DOJ.
Além disso, nunca, mas nunca, tirou os calções
de futebolista que envergava por cima do fato de banho. Nem para
mergulhar no lago.
É surpreendente como as mulheres nesta terra
têm vergonha de mostrar o corpo. O simples facto de terem
celulite nas pernas, ou pensarem que a têm, faz com que a
tapem com uns calções ridículos. Mas, as mamas,
sim, essas estão sempre à vista, desde que não
se veja nada proibido por lei. Mesmo na praia é difícil
ver mulheres em bikini sem estarem com o rabo tapado, ou com um
pano, ou com uns calções, ou mesmo de calças.
No entretanto chegou o Charlie e o Dillan. O Charlie
já o conhecem, pois estava na semana anterior a ajudar o
Chris a arranjar o Jaguar com motor de Chevrolet. Mas, o Dillan é mais
uma personagem fantástica do mundo irreal de São
Francisco. Não estou a dizer mal, pelo contrário,
acho que o fantástico desta cultura é que cada um
pode ser uma ave rara e ninguém tem nada a ver com isso.
Ao contrário de Portugal em que todos nos vestimos da mesma
maneira e somos todos iguais, e, se alguém sai do círculo é logo
rotulado de anormal ou extravagante.
Mas, o Dillan pelos vistos trabalha numa empresa
discográfica e tem todos os vícios do mundo da música.
Não tem mais que um metro e sessenta e usa duas grandes
argolas, uma em cada orelha. Estava com um casaco de trabalho de
uma fábrica qualquer americana, comprado em segunda mão
e anda como um verdadeiro artista. Mas, é um tipo espectacular
e cozinha muito bem.
A pilha de latas e garrafas de cerveja, ao lado
da fogueira, mostrava até que ponto a coisa tinha estado
a rolar. Digamos que a coisa dava para encher um saco do lixo e
se calhar ainda sobrava. E, estava a aumentar... Aquilo que o Paul
chamava the Dead Soldiers, os soldados mortos da guerra alcoólica.
No entretanto, haviam mais personagens no filme,
para além de nós os três e os que já descrevi,
mas, não deu para me aperceber bem, porque estava absorvido
pela conversa interessante com o pessegueiro e o Paul. Mas, depressa
nos cansamos do discurso repetitivo dos dois e fomos dormir.
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