QUINTA-FEIRA, 31 DE AGOSTO DE 2000 C129
Cláudia em Alamo Square - Fotografia de Rui Gonçalves

Domingo, 23 de Julho de 2000

Dormimos no quartinho pequeno de casa da Mariana, a Cláudia na cama individual e eu no chão no meu saco-cama e em cima de outro. Dormi que nem uma pedra. Já não me lembrava de dormir assim há algum tempo. Não sei se foi por causa do facto de estar cansado, se foi porque aquele quartinho é acolhedor, escuro e pouco barulhento por ser interior. Realmente por aqui é difícil ter essas qualidades todas no mesmo quarto, porque como não há persianas, há sempre a luz da manhã para incomodar e como as casas são de madeira muito fininha, há sempre barulho pela manhã... Principalmente dos vizinhos. Nunca se queixem do barulho dos vizinhos, aí não se houve metade do que se houve aqui... E, como eu gostava de não saber quando é que o vizinho de cima toma banho.

Mas, a verdade é que nos levantámos nas calmas. Sentámo-nos na sala na conversa até que o Chris telefonou a convidar a Mariana para ir tomar um Brunch. O Chris é o vizinho do primeiro piso do prédio da Mariana. É um tipo porreiro, embora um bocado alucinado e completamente obcecado por carburadores. A primeira vez que ouvi falar no Chris, foi na altura em que a Mariana andava de muletas, porque tinha tirado os parafusos da perna, e, precisou que eu a fosse buscar ao ICEP, no bólide. Isto porque ela precisava de levar para casa uma encomenda para o Chris... Um carburador para uma moto. Ele tinha ido de férias e encomendou a coisa directamente para o ICEP, para ter a certeza que chegava a boas mãos.

O Chris já se estava a passar e voltou a telefonar, porque no entretanto ainda não nos tínhamos decidido a mexer. Lá tivemos que acelerar e apanhar o Chris no caminho para o Metro, o café/bar e hotel, mesmo ao lado da casa da Mariana, onde íamos tomar o brunch. Não sei se já perceberam mas, um brunch é um pequeno-almoço-almoçarado, como diria a minha mãezinha. Breakfeast + Lunch = Brunch. Nada que a gente aí não faça... Aliás é norma num dia a seguir a uma noitada, mas a verdade é que lhe chamamos almoço e esquecemos o pequeno-almoço. Mas, como por aqui o almoço é uma refeição leve, nada comparável às magníficas almoçaradas à portuguesa e o pequeno-almoço pode ser bem mais pesado que o nosso, pelo que a mistura dá uma coisa próxima de um almoço modesto português.

A coisa consistiu nuns ovos mexidos com uns vegetais, algo que chamaram de omelete com batatas fritas e uma cola. O Chris comeu salmão...

Mas, o mais curioso é que os donos e empregados do café/bar/hotel são franceses e a atmosfera é muito europeia. Sentámo-nos nas traseiras do edifício ao sol e até parecia que nem estávamos em São Francisco, pois estava calor, ali abrigados do vento. Senti-me completamente em casa... Aliás ficava ali mais tempo, não fosse o stress do Chris em querer atacar algum carburador.

Os empregados falavam francês entre eles como se ninguém os entendesse. Uma coisa que me tem deixado feliz ultimamente é que me sinto um poliglota. Consigo perceber perfeitamente português do brasil, francês, inglês (americano e do Reino Unido), espanhol (mexicano, castelhano e variantes) e raramente alguém entende o que eu digo quando falo português. É possível manter conversas paralelas sem que ninguém nos entenda. Mesmo os brasileiros... Claro que isso também tem o seu lado mau... A má educação da fuga fácil para o português em situações ambíguas.

Mas, voltemos ao Chris. O tipo é completamente eléctrico, mas o que mais me surpreendeu foi quando ele começou a cantar "Não há estrelas no céu". Pelos vistos ele esteve em Portugal e aprendeu a letra por aí... A Mariana diz que foi uma das primeiras coisas que ele lhe falou e que ela ficou pasmada pois encontraram-se a despejar o lixo num beco ao lado da casa e o tipo canta-lhe aquilo. Há coisas... Ele tinha pinta para ser membro de uma banda rock.

A Mariana foi tomar banho, o Chris foi agarrar alguma lata de WD-40 e abraçar um carburador e nós fomos beber café ao Abir, o café acolhedor ali a três blocos... Ou quatro.

Bebemos o expresso magnifico e estivemos a ver as revistas. A maioria das revistas que ali se vendem, no quiosque do café, estão ligadas a artes. A maioria dos clientes são artistas ou pretendentes a serem artistas, como quase 50% da população branca norte-americana, pelo menos na Califórnia. Aqui quase todas as pessoas tem criatividade, nem que seja para pintar as calças ou cabelo, mas a verdade é que não têm vergonha de mostrar o que fazem, bem ou mal. Nós seremos sempre um povo com medo de encarar as multidões e dar a cara por qualquer rabisco que façamos. A verdade é que daqui sai muita coisa com criatividade e há muitas ideias fantásticas no ar, mas há muitas mais que nós não vemos, porque não conseguem ser boas ou não têm oportunidade de se mostrar. Isto também se aplica ao mundo dos negócios...

Depois de tomarmos o café no Abir, fomos a Alamo Square, o jardim mais visto e mais fotografado de São Francisco. Vocês já sabem qual é... Mas estava a ficar fresco e além disso queríamos voltar porque a Mariana ainda queria ir comprar um colchão. Passamos pela loja de utensílios de cozinha, mesmo ao lado do Metro e que parece uma verdadeira oficina de ferro-velho. Está tudo geometricamente empilhado, mas que é melhor não tocar em nada sem cuidado porque senão cai alguma coisa e os preços são assustadores. Há de tudo em todas as formas para a cozinha. Precisam de alguma coisa?

Ao lado dessa loja existe uma de móveis completamente kitch. Tudo o que imaginarem dos anos 60 e colorido, eles têm. Aliás vi lá uma coisa que o meu amigo Pedro Soares havia de gostar, um aparelho de cartuchos em forma de meia lua. Mas, antes de entrar, decidimos ver se a Mariana já tinha tomado banho e se queria nos acompanhar. Lá voltamos à loja com a Mariana.

Depois de assustados com os preços da loja e uma vez que já se estava a fazer tarde, pois por aqui as lojas fecham cedo ao domingo, fomos apanhar o bólide ao parque de estacionamento do DMV, a direcção geral de viação cá do sítio.

Quem é que estava no dito parque de estacionamento? O Chris, acompanhado pelo Charlie, a tentarem pôr a andar um Jaguar com motor de Chevrolet.

Eu já conhecia o Charlie de um jantar qualquer que fui com a Mariana, uma altura que a Heidi, uma amiga comum, estava cá. O Charlie é um tipo muito porreiro e sempre bem disposto. É difícil defini-lo, mas é parecido com o Al Pacino, mas mais baixo e mais magro... Talvez não seja parecido, mas o modo de ser e a maneira de andar faz-me lembrar o meu velho amigo Al Pacino. É um verdadeiro americano no que toca a cumprimentar, dá sempre um abraço, daqueles abraços "falsos" à americana em que parece que as pessoas nem se tocam. Sim! Aquilo que se vê nos filmes existe!

Mas, voltando ao duo de mecânicos. Pelos vistos o Chris comprou um Jaguar e um motor de um Chevrolet e quer montar um Jagrolet. O único problema é que o motor não colabora e o carro não pega... Não pega... Não anda. E lá andavam os dois a tentar ligar o carro com a bateria do camião do Chris, uma verdadeira relíquia, mais velha de que a minha pessoa e tão bem conservada como o Fernando Pessa. Por fora está velha, gasta e toda lixada, mas pelo menos faz melhor que o Jagrolet... Anda! A relíquia é de 1960...

Nós passámos as experiências mecânicas do Chris e fomos ver um supermercado de colchões na Van Ness. Parei o carro na Polk e andámos ali a ver móveis... Os móveis por aqui são muito caros. Se nos queixamos aí que estas coisas são caras, aqui algo que saia do que é normal ou padrão é logo a inchar à grande. Eu e a Cláudia bem andámos a ver coisas, mas a mesmo em ideias não havia muita coisa.

Andámos de loja em loja, até que entrámos numa em Van Ness onde a Mariana tinha comprado a réplica de um Picasso, muito giro, que tem na sala. Mas, custava bem mais do que lhe custou. O empregado lá arranjou uma desculpa de que a loja andou mal e que houve uma altura que os empregados vendiam as coisas ao preço que queriam para se fazerem pagar. Lá lhe comprámos um relógio, para a nossa casinha em Esgueira, para ele ficar contente... Mas a 50% de desconto.

Mas os supermercados de colchões ali eram um nojo e fomos a Haight com Fillmore. Não estão a ver uma loja de colchões que o empregado usa suíças até ao queixo, calções de ¾ e ouve Ramones? Pois bem era assim... A loja era um verdadeiro supermercado de colchões, mas gerido por uns punks asseados, mas verdadeiramente à São Francisco. A contra cultura própria da cidade, aquilo que eu mais gosto aqui. Como o underground está presente em quase tudo, até numa loja de colchões.

A escolha não foi muito difícil, pois já estava a ficar tarde e a loja fechava em breve. Lá fomos buscar o carro, ainda com uma passagem pelo Rite Aid para comprar alguma coisa para o lanche e uns aditivos vitaminaicos para a Mariana que andava em dieta. Parei o carro em frente à loja punk de colchões e depois de uma luta acesa com os bancos traseiros do bólide, que não queriam ajudar e rebater, lá conseguimos carregar o colchão e ir para casa da Mariana.


Alugámos um filme do clube de vídeo - o Thin Red Line - e estivemos a vê-lo. Bem, eu e a Cláudia, porque a Mariana já o tinha visto e perdeu o fim por causa de uma chamada de telefone demorada.

O filme é muito longo e... Muito bonito! Realmente saiu na mesma altura do "Resgate do Soldado Ryan" e também foca a mesma altura da história, mas é completamente diferente. O filme do Steven Spielberg apesar de realista e bastante sangrento, não chega ao calcanhar deste em termos de história. É verdade que vai ser difícil esquecer a dureza das imagens do desembarque na praia, mas depois o filme dispersa e perde-se numa história sem grandes argumentos. No "Thin Red Line" é mesmo isso... A linha invisível que nos separa da loucura e de fugirmos em momentos de guerra. Não que eu perceba alguma coisa disso, porque aliás nem fiz a tropa, mas imagino-me numa cena daquelas e receber ordens de um oficial na retaguarda, para atacar um morro onde sei que a morte espreita a qualquer passo mal dado. Eu matava o oficial... Ou melhor ainda, que não haja sequer oportunidade para eu testar tal coisa. Que não haja nenhuma guerra!!!

O filme é muito longo e quando acabou já eram 10h30m, mas tínhamos que jantar. Fizemos o jantar a correr e estivemos a comer e na conversa à mesa até quase até à meia noite e meia.

Cheguei a casa, em Corte Madera, à 1h da manhã e a Cláudia estava a dormir desde a ponte Golden Gate.



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