Domingo, 23 de Julho de 2000
Dormimos no quartinho pequeno de casa da Mariana,
a Cláudia na cama individual e eu no chão no meu saco-cama e em
cima de outro. Dormi que nem uma pedra. Já não me lembrava de dormir
assim há algum tempo. Não sei se foi por causa do facto de estar
cansado, se foi porque aquele quartinho é acolhedor, escuro e pouco
barulhento por ser interior. Realmente por aqui é difícil ter essas
qualidades todas no mesmo quarto, porque como não há persianas,
há sempre a luz da manhã para incomodar e como as casas são de
madeira muito fininha, há sempre barulho pela manhã... Principalmente
dos vizinhos. Nunca se queixem do barulho dos vizinhos, aí não
se houve metade do que se houve aqui... E, como eu gostava de não
saber quando é que o vizinho de cima toma banho.
Mas, a verdade é que nos levantámos nas calmas.
Sentámo-nos na sala na conversa até que o Chris telefonou a convidar
a Mariana para ir tomar um Brunch. O Chris é o vizinho do primeiro
piso do prédio da Mariana. É um tipo porreiro, embora um bocado
alucinado e completamente obcecado por carburadores. A primeira
vez que ouvi falar no Chris, foi na altura em que a Mariana andava
de muletas, porque tinha tirado os parafusos da perna, e, precisou
que eu a fosse buscar ao ICEP, no bólide. Isto porque ela precisava
de levar para casa uma encomenda para o Chris... Um carburador
para uma moto. Ele tinha ido de férias e encomendou a coisa directamente
para o ICEP, para ter a certeza que chegava a boas mãos.
O Chris já se estava a passar e voltou a telefonar,
porque no entretanto ainda não nos tínhamos decidido a mexer. Lá tivemos
que acelerar e apanhar o Chris no caminho para o Metro, o café/bar
e hotel, mesmo ao lado da casa da Mariana, onde íamos tomar o brunch.
Não sei se já perceberam mas, um brunch é um pequeno-almoço-almoçarado,
como diria a minha mãezinha. Breakfeast + Lunch = Brunch. Nada
que a gente aí não faça... Aliás é norma num dia a seguir a uma
noitada, mas a verdade é que lhe chamamos almoço e esquecemos o
pequeno-almoço. Mas, como por aqui o almoço é uma refeição leve,
nada comparável às magníficas almoçaradas à portuguesa e o pequeno-almoço
pode ser bem mais pesado que o nosso, pelo que a mistura dá uma
coisa próxima de um almoço modesto português.
A coisa consistiu nuns ovos mexidos com uns vegetais,
algo que chamaram de omelete com batatas fritas e uma cola. O Chris
comeu salmão...
Mas, o mais curioso é que os donos e empregados
do café/bar/hotel são franceses e a atmosfera é muito europeia.
Sentámo-nos nas traseiras do edifício ao sol e até parecia que
nem estávamos em São Francisco, pois estava calor, ali abrigados
do vento. Senti-me completamente em casa... Aliás ficava ali mais
tempo, não fosse o stress do Chris em querer atacar algum carburador.
Os empregados falavam francês entre eles como se
ninguém os entendesse. Uma coisa que me tem deixado feliz ultimamente é que
me sinto um poliglota. Consigo perceber perfeitamente português
do brasil, francês, inglês (americano e do Reino Unido), espanhol
(mexicano, castelhano e variantes) e raramente alguém entende o
que eu digo quando falo português. É possível manter conversas
paralelas sem que ninguém nos entenda. Mesmo os brasileiros...
Claro que isso também tem o seu lado mau... A má educação da fuga
fácil para o português em situações ambíguas.
Mas, voltemos ao Chris. O tipo é completamente eléctrico,
mas o que mais me surpreendeu foi quando ele começou a cantar "Não
há estrelas no céu". Pelos vistos ele esteve em Portugal e aprendeu
a letra por aí... A Mariana diz que foi uma das primeiras coisas
que ele lhe falou e que ela ficou pasmada pois encontraram-se a
despejar o lixo num beco ao lado da casa e o tipo canta-lhe aquilo.
Há coisas... Ele tinha pinta para ser membro de uma banda rock.
A Mariana foi tomar banho, o Chris foi agarrar alguma
lata de WD-40 e abraçar um carburador e nós fomos beber café ao
Abir, o café acolhedor ali a três blocos... Ou quatro.
Bebemos o expresso magnifico e estivemos a ver as
revistas. A maioria das revistas que ali se vendem, no quiosque
do café, estão ligadas a artes. A maioria dos clientes são artistas
ou pretendentes a serem artistas, como quase 50% da população branca
norte-americana, pelo menos na Califórnia. Aqui quase todas as
pessoas tem criatividade, nem que seja para pintar as calças ou
cabelo, mas a verdade é que não têm vergonha de mostrar o que fazem,
bem ou mal. Nós seremos sempre um povo com medo de encarar as multidões
e dar a cara por qualquer rabisco que façamos. A verdade é que
daqui sai muita coisa com criatividade e há muitas ideias fantásticas
no ar, mas há muitas mais que nós não vemos, porque não conseguem
ser boas ou não têm oportunidade de se mostrar. Isto também se
aplica ao mundo dos negócios...
Depois de tomarmos o café no Abir, fomos a Alamo
Square, o jardim mais visto e mais fotografado de São Francisco.
Vocês já sabem qual é... Mas estava a ficar fresco e além disso
queríamos voltar porque a Mariana ainda queria ir comprar um colchão.
Passamos pela loja de utensílios de cozinha, mesmo ao lado do Metro
e que parece uma verdadeira oficina de ferro-velho. Está tudo geometricamente
empilhado, mas que é melhor não tocar em nada sem cuidado porque
senão cai alguma coisa e os preços são assustadores. Há de tudo
em todas as formas para a cozinha. Precisam de alguma coisa?
Ao lado dessa loja existe uma de móveis completamente
kitch. Tudo o que imaginarem dos anos 60 e colorido, eles têm.
Aliás vi lá uma coisa que o meu amigo Pedro Soares havia de gostar,
um aparelho de cartuchos em forma de meia lua. Mas, antes de entrar,
decidimos ver se a Mariana já tinha tomado banho e se queria nos
acompanhar. Lá voltamos à loja com a Mariana.
Depois de assustados com os preços da loja e uma
vez que já se estava a fazer tarde, pois por aqui as lojas fecham
cedo ao domingo, fomos apanhar o bólide ao parque de estacionamento
do DMV, a direcção geral de viação cá do sítio.
Quem é que estava no dito parque de estacionamento?
O Chris, acompanhado pelo Charlie, a tentarem pôr a andar um Jaguar
com motor de Chevrolet.
Eu já conhecia o Charlie de um jantar qualquer que
fui com a Mariana, uma altura que a Heidi, uma amiga comum, estava
cá. O Charlie é um tipo muito porreiro e sempre bem disposto. É difícil
defini-lo, mas é parecido com o Al Pacino, mas mais baixo e mais
magro... Talvez não seja parecido, mas o modo de ser e a maneira
de andar faz-me lembrar o meu velho amigo Al Pacino. É um verdadeiro
americano no que toca a cumprimentar, dá sempre um abraço, daqueles
abraços "falsos" à americana em que parece que as pessoas nem se
tocam. Sim! Aquilo que se vê nos filmes existe!
Mas, voltando ao duo de mecânicos. Pelos vistos
o Chris comprou um Jaguar e um motor de um Chevrolet e quer montar
um Jagrolet. O único problema é que o motor não colabora e o carro
não pega... Não pega... Não anda. E lá andavam os dois a tentar
ligar o carro com a bateria do camião do Chris, uma verdadeira
relíquia, mais velha de que a minha pessoa e tão bem conservada
como o Fernando Pessa. Por fora está velha, gasta e toda lixada,
mas pelo menos faz melhor que o Jagrolet... Anda! A relíquia é de
1960...
Nós passámos as experiências mecânicas do Chris
e fomos ver um supermercado de colchões na Van Ness. Parei o carro
na Polk e andámos ali a ver móveis... Os móveis por aqui são muito
caros. Se nos queixamos aí que estas coisas são caras, aqui algo
que saia do que é normal ou padrão é logo a inchar à grande. Eu
e a Cláudia bem andámos a ver coisas, mas a mesmo em ideias não
havia muita coisa.
Andámos de loja em loja, até que entrámos numa em
Van Ness onde a Mariana tinha comprado a réplica de um Picasso,
muito giro, que tem na sala. Mas, custava bem mais do que lhe custou.
O empregado lá arranjou uma desculpa de que a loja andou mal e
que houve uma altura que os empregados vendiam as coisas ao preço
que queriam para se fazerem pagar. Lá lhe comprámos um relógio,
para a nossa casinha em Esgueira, para ele ficar contente... Mas
a 50% de desconto.
Mas os supermercados de colchões ali eram um nojo
e fomos a Haight com Fillmore. Não estão a ver uma loja de colchões
que o empregado usa suíças até ao queixo, calções de ¾ e ouve Ramones?
Pois bem era assim... A loja era um verdadeiro supermercado de
colchões, mas gerido por uns punks asseados, mas verdadeiramente à São
Francisco. A contra cultura própria da cidade, aquilo que eu mais
gosto aqui. Como o underground está presente em quase tudo, até numa
loja de colchões.
A escolha não foi muito difícil, pois já estava
a ficar tarde e a loja fechava em breve. Lá fomos buscar o carro,
ainda com uma passagem pelo Rite Aid para comprar alguma coisa
para o lanche e uns aditivos vitaminaicos para a Mariana que andava
em dieta. Parei o carro em frente à loja punk de colchões e depois
de uma luta acesa com os bancos traseiros do bólide, que não queriam
ajudar e rebater, lá conseguimos carregar o colchão e ir para casa
da Mariana.
Alugámos um filme do clube de vídeo - o Thin Red Line - e estivemos
a vê-lo. Bem, eu e a Cláudia, porque a Mariana já o tinha visto
e perdeu o fim por causa de uma chamada de telefone demorada.
O filme é muito longo e... Muito bonito! Realmente
saiu na mesma altura do "Resgate do Soldado Ryan" e também foca
a mesma altura da história, mas é completamente diferente. O filme
do Steven Spielberg apesar de realista e bastante sangrento, não
chega ao calcanhar deste em termos de história. É verdade que vai
ser difícil esquecer a dureza das imagens do desembarque na praia,
mas depois o filme dispersa e perde-se numa história sem grandes
argumentos. No "Thin Red Line" é mesmo isso... A linha invisível
que nos separa da loucura e de fugirmos em momentos de guerra.
Não que eu perceba alguma coisa disso, porque aliás nem fiz a tropa,
mas imagino-me numa cena daquelas e receber ordens de um oficial
na retaguarda, para atacar um morro onde sei que a morte espreita
a qualquer passo mal dado. Eu matava o oficial... Ou melhor ainda,
que não haja sequer oportunidade para eu testar tal coisa. Que
não haja nenhuma guerra!!!
O filme é muito longo e quando acabou já eram 10h30m,
mas tínhamos que jantar. Fizemos o jantar a correr e estivemos
a comer e na conversa à mesa até quase até à meia noite e meia.
Cheguei a casa, em Corte Madera, à 1h da manhã e
a Cláudia estava a dormir desde a ponte Golden Gate. |