C128 SEGUNDA-FEIRA, 28 DE AGOSTO DE 2000
Eu E A Cláudia No Bliss - Fotografia de Mário Nunes

Sábado, 22 de Julho de 2000

Acordámos cedo, porque o combinado era sair do cais da Marina do Pelicano em Sausalito por volta das 10h da manhã. Fomos tomar o café, acompanhado com um bolo ao Tully's no centro comercial, ali do outro lado da rua. Preparámos umas sandes e pusémo-nos a caminho, depois de uma pequena arrumação à cozinha.

Chegámos mesmo a tempo e consegui por o bólide num sítio, que apesar de ser um bocado longe, não era de parqueamento limitado ou pago. Assim que entrámos no cais apareceu o Mário a correr... Num outro cais. Alguém lhes tinha dado indicações, mas, indicações erradas.

Lá entrámos para o Bliss, onde já nos esperava o capitão Ken, pronto para mais uma viagem pela baía. A última que eu fiz até agora. Engraçado como velejei mais de inverno e na primavera, que propriamente no verão. Não que esteja menos vento, pelo contrário, quem conhece São Francisco sabe bem que Agosto é o mês do vento, mas, porque há sempre outras coisas para fazer ou porque o Ken prefere ir fazer Windsurf ou porque fui de férias ou o Ken o fez.

Saímos e estava um bocado encoberto para os lados de São Francisco. Rumámos a São Francisco e virámos à Golden Gate. O mar estava lindo. As ondas entravam pela proa e enchiam o barco de água. Este adornava com o vento que enchiam as velas e nós voávamos. Estive um bom bocado ao leme e com o adornanço do barco tinha que estar com um pé em cima dos bancos laterais para conseguir estar na vertical.

O Mário e a Claúdia ajudavam nas manobras, a soltar e a puxar cabos. Nos intervalos andavam de máquina em punho. A Sá... Bem, a Sá não se mexia há quase uma hora e estava branca enfiada dentro do casaco com frio e enjoada. Aquela saida para o mar, ou quase mar, tinha sido a gota de água no enjoo. O Ken insistiu para que ela fosse para o leme, pois ao leme sempre se distraia e enjoava menos, mas, ela não se achou capaz de aguentar de pé, então rumámos para águas mais calmas.

Cada vez que manobravámos o veleiro, a Sá saia do banco de um dos lados para ir para o do outro lado do veleiro. Aprendeu depressa a licção de que se quisesse vomitar teria que se por do lado contrário ao vento. Felizmente não houve problemas desses.

Passámos a ponte e o sol abriu. As águas ficaram mais calmas e a Sá conseguiu abrir o capuz e apanhar um ar mais fresco na cara. No entretanto o Mário cada vez que ia dentro do veleiro vinha mais enjoado, mas, logo lhe passava com o ar fresco e a visão da cidade e arredores. A Cláudia, com o jet-lag e com o cansaço, foi dormir um bocado para o sofá interior do veleiro, uma vez que já não haviam grandes manobras a serem feitas ali. E, os restantes resolvemos almoçar.

As sandes sobraram. A Sá não comeu, a Cláudia só comeu um bocado... O Ken ajudou à festa e comeu connosco. Como tem sido habitual fomos dar a volta por detras de Alcatraz. Cada vez que ali passo fico a ver se realmente valeria a pena gastar o dinheiro para ir ver aquele monte de ruínas, amontoados de pedras e cagadas de gaivotas ou se toda a publicidade em volta do rochedo não é mais do que isso, e como quase tudo por aqui, é maior a história que pintam da coisa do que realmente o que há para ver.

Atracámos sem problemas, limpámos o sal e o pó do Bliss, fechámos as cobertas e fomonos embora. O Ken estava com pressa pois ainda estava com vontade de ir fazer windsurf. O Mário e a Sá foram à sua vida.

Eu e a Cláudia fomos até casa, mas não sem antes pararmos no outro centro comercial do outro lado da autoestrada para beber um café, pois o cansaço e o sol não são propriamente uma boa combinação. Ainda passámos pela Macy's, só para ver como era e para aproveitar um bocado o ar condicionado.

Quando chegámos a casa arrumámos as coisas e fomos para São Francisco. Ainda haviam muitas aventuras para decorrer nesse dia. Um barbecue em casa do Tom, que podia transformar-se em festa e um concerto em Fillmore dos Einstürzende Neubauten.

Tinha combinado com a Mariana, ir apanhá-la em casa. Aliás, o combinado era ir com ela comprar um colchão, pois as irmãs estavam para chegar, como já vos disse, e ela queria arranjar mais sítio para a pernoita. Mas, não consegui estar a tempo em casa dela para isso. Ficou para o dia seguinte. Estivémos um bocado na conversa e fomos para o Barbecue do Tom.

Eu tinha andado a recolher um monte de música no meu portátil para o barbecue do Tom. Ele tinha-me pedido para arranjar música e depois ligávamos o portátil à aparelhagem. Mas, o cabo que eu tinha para o efeito não funcionava. Não percebi porquê, mas a verdade é que o cabo devia de estar estragado. O que vale é que o Tom é um homem de recursos e conseguiu desencantar um cabo semelhante e a música estava a rolar. MP3 forever! E, sempre o problema de cabos...

Salvo mesmo a tempo de comer uma salsicha e beber uma cerveja, antes de sair para o The Fillmore. Estava um pôr-do-sol extraordinário. Principalmente visto da varanda de casa do Tom que fica mesmo ali perto do mar, em Ocean Beach. Mas, estava a ficar um frio.

Mais uma vez o velho problema do estacionamento. Lá consegui estacionar mesmo por detrás da igreja de Gospels Coreana, num sítio que surpreendentemente tinha montes de lugares vagos. Era um bocado escuro e mal cheiroso. Numa esquina. Fiquei duplamente preocupado, pois podia ser rebocado ou assaltado, pois tinha as coisas todas para dormir na mala do carro. Mas, quem é que suspeitava de um Golf Vermelho com um farol partido.

Entrámos antes do concerto começar. A sala estava composta de seres muitos estranhos desde mongos a grunhos havia de tudo. Um deles de crista e suiças azuis passeava-se com uma namorada vestida e pintada de geisha. Pareciam que iam ambos morrer ali de fome. Pareciam que tinham chegado do Biafra.

Depois passeavam-se pela sala um monte de punks e darks que ainda sonhavam com os Einstürzende Neubauten do início dos anos 80. Mas a música dele evoluiu... Alguns fans é que não.

A dada altura as luzes apagaram-se e entrou um vulto, aparentemente despenteado, para o centro do palco. Um foco de luz iluminou-o. Era o Blixa Bargeld. O público entrou em delírio. Ele não se mexeu. Com o tempo o público foi-se calando e o Blixa agarrou num maço de cigarros, tirou um, colocou-o na boca e acendeu-o. Inalou uma grande passa e deitou fora o fumo com os lábios encostados ao microfone. Criou-se uma cortina de fumo em frente à cara dele.

Parecia que o Blixa estava disposto a provocar. Como sabem é proibido fumar em espaços fechados na Califórnia, mas, isso pouco interessava a quem estava em palco. Aliás, mesmo fora dele, porque viam-se muitos isqueiros a acender no escuro da sala e na sua maioria não eram para acender, propriamente, cigarros.

Mas, se a intenção do Blixa era provocar, não percebi, porque não era só isso que ele queria fazer com o cigarro, porque voltou a inalar e a largar o fumo em grandes bufaradas contra o microfone, de uma maneira ritmada, mas lenta, criando um som que serviu de introdução ao primeiro tema da noite. "Silence is Sexy" foi o primeiro tema e posso-vos dizer que não podia ter sido mais bem escolhido.

"Silence is Sexy, just your silence is not sexy at all" entre inalações e bufaradas de fumo de cigarro que marcavam o ritmo lento da música, marcaram o início de um grandioso concerto. Talvez o melhor que eu vi por aqui e um dos melhores da minha vida. Pelo menos um dos maiores porque só terminou 2h40m depois com uma versão super longa de 20 minutos do Tabula Rasa, suponho eu.

Começou em silêncio e acabou em verdadeira apocalipse sonora. Tudo aquilo que os punks esperavam, tiveram que esperar quase três horas para ouvir. Mas, pelo meio pode se ver em palco um desfilar de "instrumentos" bizarros e engenhosos, alguns deles demasiados pesados e elaborados para o tempo que tocaram, mas, a necessidade de criar sons novos e dar um aspecto visual aos sons que se ouvem num disco, fez com que alguma máquinas dantescas estivessem em palco. Um "xilofone", parecido com aqueles que têm as caixas música, feito com pequenas placas de metal colocadas de forma radial num cilindro com cerca de um metro e que rodava, era tocado com baguetas de bateria, provocando um som continuo de um motor acompanhado por um ritmo de metal que é quase impossível descrever pela sua especificidade. A máquina era muito perigosa. Imaginem uma série de pontas metálicas a rodarem e um tipo a bater-lhes com as baguetas... Imagino se lhe apanhava uma mão.

Outra máquina era um tipo relógio de pé, cujos ponteiros ao rodarem batiam em caixas metálicas com diferentes sons, nos quartos de hora a um ritmo fixo, fazendo com que se tivesse uma base ritmada contínua para uma das músicas. Além disso tinha umas pequenas cornetas de som que aumentavam o som.

Mas para além das máquinas dantescas foram tocados em palco coisas como um tubo de vinilo com cordas em arco, latas de metal de diferentes tamanho, chapas metálicas, tubos metálicos de canalização e tubos de caleiras plásticos. Mas, também houve espaço para alguns instrumentos tradicionais, e ouviu-se um baixo, uma guitarra e um sintetizador... Mas, não necessariamente tocados de uma forma tradicional.

O Blixa ainda se fez acompanhar de megafone, mas o melhor "instrumento" que o vi usar foi um compressor de ar. Sim! Um normal compressor usado para encher pneus. Imaginem alguém vestido de fato sem camisa, de tronco nú sob o colete e com um tubo vermelho em espiral a fazer sons e ritmos com o ar que de lá saíia. Usando a boca, os dedos e o microfone como paredes para criar sons ritmados apartir do ar comprimido. Espectacular!

Mas, para quem era tão dark e alternativo há cerca de 15 anos atrás, o Blixa anda muito bem disposto e até diz umas piadas. Como guitarrista dos Bad Seeds do Nick Cave só o vi ter alguma intervenção em alguns temas, como uma vez no Porto em que ele cantou a parte da Kilye Minogue do "Where the Wild Roses Grow" e que só se ria entre as intervenções. Mas, na maioria das vezes tem uma presença apagada e discreta. Pois ali ele foi tudo menos discreto e apagado e passou a noite toda a mandar piadas. Aliás a banda foi apresentada como sendo um grupo de médicos especialistas em Nevoeiroterapia com barulho, a uma alusão ao bom tempo que faz em São Francisco e ao rótulo que a banda tem.

A dada altura tocaram um tema todos sentados no chão o que dava a entender que era o fim, mas que ainda deu para mais quase 40 minutos, 20 dos quais em verdadeira Barulhoterapia industrial. Porém, em quase todo o concerto a música foi bastante calma e com ritmos certos e até dançáveis, dando sinais que os Einstürzende Neubauten andam a ouvir música de dança... Mas de qualidade. Só houve um momento em que quase conseguiram expulsar toda a gente da sala ou arrebentar com os tímpanos do pessoal, quando mantiveram um feedback altissimo durante quase um minuto. O público já não sabia bem o que fazer, mesmo com os ouvidos tapados e quando se mexia a cabeça parecia que o feedback mudava de tom e parecia que os tímpanos iam estoirar. Até que veio o silêncio sexy.

Saímos de lá todos rotos. Dançar, saltar e assimilar aquele concerto, depois de uma manhã de vela com o mar lindo, mas bravo que esteve e ainda andar a correr de um barbecue para um concerto... Mata qualquer um!

Voltámos para casa do Tom, onde pensávamos ir comer mais qualquer coisa e beber uns copos com o pessoal. Mas, quando lá chegámos já lá não estava ninguém. Entrámos à espera de encontrar o pessoal na borga, ou pelo menos na conversa, porque não se ouvia barulho de fora. Mas nada, nem bilhete nem nada e tudo aberto... O Tom confia mesmo na vizinhança.

Arrumei o PC, ligámos a TV e comemos qualquer coisa. No entretanto o telemóvel do Tom tocou... Era o Martin, mas eu não ia atender. Aproveitei para telefonar à Mariana a ver o que se passava. Nada! Não se passava nada. O pessoal foi-se embora porque estava tudo muito choco.

Ok! Fui para casa da Marina e fui dormir. Estava estoirado depois de um dia todo a correr.



Índice: Página I1 Col. 1
Próxima Crónica: Página C129 Col. 1