Sábado, 22 de Julho de 2000
Acordámos cedo, porque o combinado era sair do cais
da Marina do Pelicano em Sausalito por volta das 10h da manhã.
Fomos tomar o café, acompanhado com um bolo ao Tully's no centro
comercial, ali do outro lado da rua. Preparámos umas sandes e pusémo-nos
a caminho, depois de uma pequena arrumação à cozinha.
Chegámos mesmo a tempo e consegui por o bólide num
sítio, que apesar de ser um bocado longe, não era de parqueamento
limitado ou pago. Assim que entrámos no cais apareceu o Mário a
correr... Num outro cais. Alguém lhes tinha dado indicações, mas,
indicações erradas.
Lá entrámos para o Bliss, onde já nos esperava o
capitão Ken, pronto para mais uma viagem pela baía. A última que
eu fiz até agora. Engraçado como velejei mais de inverno e na primavera,
que propriamente no verão. Não que esteja menos vento, pelo contrário,
quem conhece São Francisco sabe bem que Agosto é o mês do vento,
mas, porque há sempre outras coisas para fazer ou porque o Ken
prefere ir fazer Windsurf ou porque fui de férias ou o Ken o fez.
Saímos e estava um bocado encoberto para os lados
de São Francisco. Rumámos a São Francisco e virámos à Golden Gate.
O mar estava lindo. As ondas entravam pela proa e enchiam o barco
de água. Este adornava com o vento que enchiam as velas e nós voávamos.
Estive um bom bocado ao leme e com o adornanço do barco tinha que
estar com um pé em cima dos bancos laterais para conseguir estar
na vertical.
O Mário e a Claúdia ajudavam nas manobras, a soltar
e a puxar cabos. Nos intervalos andavam de máquina em punho. A
Sá... Bem, a Sá não se mexia há quase uma hora e estava branca
enfiada dentro do casaco com frio e enjoada. Aquela saida para
o mar, ou quase mar, tinha sido a gota de água no enjoo. O Ken
insistiu para que ela fosse para o leme, pois ao leme sempre se
distraia e enjoava menos, mas, ela não se achou capaz de aguentar
de pé, então rumámos para águas mais calmas.
Cada vez que manobravámos o veleiro, a Sá saia do
banco de um dos lados para ir para o do outro lado do veleiro.
Aprendeu depressa a licção de que se quisesse vomitar teria que
se por do lado contrário ao vento. Felizmente não houve problemas
desses.
Passámos a ponte e o sol abriu. As águas ficaram
mais calmas e a Sá conseguiu abrir o capuz e apanhar um ar mais
fresco na cara. No entretanto o Mário cada vez que ia dentro do
veleiro vinha mais enjoado, mas, logo lhe passava com o ar fresco
e a visão da cidade e arredores. A Cláudia, com o jet-lag e com
o cansaço, foi dormir um bocado para o sofá interior do veleiro,
uma vez que já não haviam grandes manobras a serem feitas ali.
E, os restantes resolvemos almoçar.
As sandes sobraram. A Sá não comeu, a Cláudia só comeu
um bocado... O Ken ajudou à festa e comeu connosco. Como tem sido
habitual fomos dar a volta por detras de Alcatraz. Cada vez que
ali passo fico a ver se realmente valeria a pena gastar o dinheiro
para ir ver aquele monte de ruínas, amontoados de pedras e cagadas
de gaivotas ou se toda a publicidade em volta do rochedo não é mais
do que isso, e como quase tudo por aqui, é maior a história que
pintam da coisa do que realmente o que há para ver.
Atracámos sem problemas, limpámos o sal e o pó do
Bliss, fechámos as cobertas e fomonos embora. O Ken estava com
pressa pois ainda estava com vontade de ir fazer windsurf. O Mário
e a Sá foram à sua vida.
Eu e a Cláudia fomos até casa, mas não sem antes
pararmos no outro centro comercial do outro lado da autoestrada
para beber um café, pois o cansaço e o sol não são propriamente
uma boa combinação. Ainda passámos pela Macy's, só para ver como
era e para aproveitar um bocado o ar condicionado.
Quando chegámos a casa arrumámos as coisas e fomos
para São Francisco. Ainda haviam muitas aventuras para decorrer
nesse dia. Um barbecue em casa do Tom, que podia transformar-se
em festa e um concerto em Fillmore dos Einstürzende Neubauten.
Tinha combinado com a Mariana, ir apanhá-la em casa.
Aliás, o combinado era ir com ela comprar um colchão, pois as irmãs
estavam para chegar, como já vos disse, e ela queria arranjar mais
sítio para a pernoita. Mas, não consegui estar a tempo em casa
dela para isso. Ficou para o dia seguinte. Estivémos um bocado
na conversa e fomos para o Barbecue do Tom.
Eu tinha andado a recolher um monte de música no
meu portátil para o barbecue do Tom. Ele tinha-me pedido para arranjar
música e depois ligávamos o portátil à aparelhagem. Mas, o cabo
que eu tinha para o efeito não funcionava. Não percebi porquê,
mas a verdade é que o cabo devia de estar estragado. O que vale é que
o Tom é um homem de recursos e conseguiu desencantar um cabo semelhante
e a música estava a rolar. MP3 forever! E, sempre o problema de
cabos...
Salvo mesmo a tempo de comer uma salsicha e beber
uma cerveja, antes de sair para o The Fillmore. Estava um pôr-do-sol
extraordinário. Principalmente visto da varanda de casa do Tom
que fica mesmo ali perto do mar, em Ocean Beach. Mas, estava a
ficar um frio.
Mais uma vez o velho problema do estacionamento.
Lá consegui estacionar mesmo por detrás da igreja de Gospels Coreana,
num sítio que surpreendentemente tinha montes de lugares vagos.
Era um bocado escuro e mal cheiroso. Numa esquina. Fiquei duplamente
preocupado, pois podia ser rebocado ou assaltado, pois tinha as
coisas todas para dormir na mala do carro. Mas, quem é que suspeitava
de um Golf Vermelho com um farol partido.
Entrámos antes do concerto começar. A sala estava
composta de seres muitos estranhos desde mongos a grunhos havia
de tudo. Um deles de crista e suiças azuis passeava-se com uma
namorada vestida e pintada de geisha. Pareciam que iam ambos morrer
ali de fome. Pareciam que tinham chegado do Biafra.
Depois passeavam-se pela sala um monte de punks
e darks que ainda sonhavam com os Einstürzende Neubauten do início
dos anos 80. Mas a música dele evoluiu... Alguns fans é que não.
A dada altura as luzes apagaram-se e entrou um vulto,
aparentemente despenteado, para o centro do palco. Um foco de luz
iluminou-o. Era o Blixa Bargeld. O público entrou em delírio. Ele
não se mexeu. Com o tempo o público foi-se calando e o Blixa agarrou
num maço de cigarros, tirou um, colocou-o na boca e acendeu-o.
Inalou uma grande passa e deitou fora o fumo com os lábios encostados
ao microfone. Criou-se uma cortina de fumo em frente à cara dele.
Parecia que o Blixa estava disposto a provocar.
Como sabem é proibido fumar em espaços fechados na Califórnia,
mas, isso pouco interessava a quem estava em palco. Aliás, mesmo
fora dele, porque viam-se muitos isqueiros a acender no escuro
da sala e na sua maioria não eram para acender, propriamente, cigarros.
Mas, se a intenção do Blixa era provocar, não percebi,
porque não era só isso que ele queria fazer com o cigarro, porque
voltou a inalar e a largar o fumo em grandes bufaradas contra o
microfone, de uma maneira ritmada, mas lenta, criando um som que
serviu de introdução ao primeiro tema da noite. "Silence is Sexy" foi
o primeiro tema e posso-vos dizer que não podia ter sido mais bem
escolhido.
"Silence is Sexy, just your silence is not sexy
at all" entre inalações e bufaradas de fumo de cigarro que marcavam
o ritmo lento da música, marcaram o início de um grandioso concerto.
Talvez o melhor que eu vi por aqui e um dos melhores da minha vida.
Pelo menos um dos maiores porque só terminou 2h40m depois com uma
versão super longa de 20 minutos do Tabula Rasa, suponho eu.
Começou em silêncio e acabou em verdadeira apocalipse
sonora. Tudo aquilo que os punks esperavam, tiveram que esperar
quase três horas para ouvir. Mas, pelo meio pode se ver em palco
um desfilar de "instrumentos" bizarros e engenhosos, alguns deles
demasiados pesados e elaborados para o tempo que tocaram, mas,
a necessidade de criar sons novos e dar um aspecto visual aos sons
que se ouvem num disco, fez com que alguma máquinas dantescas estivessem
em palco. Um "xilofone", parecido com aqueles que têm as caixas
música, feito com pequenas placas de metal colocadas de forma radial
num cilindro com cerca de um metro e que rodava, era tocado com
baguetas de bateria, provocando um som continuo de um motor acompanhado
por um ritmo de metal que é quase impossível descrever pela sua
especificidade. A máquina era muito perigosa. Imaginem uma série
de pontas metálicas a rodarem e um tipo a bater-lhes com as baguetas...
Imagino se lhe apanhava uma mão.
Outra máquina era um tipo relógio de pé, cujos ponteiros
ao rodarem batiam em caixas metálicas com diferentes sons, nos
quartos de hora a um ritmo fixo, fazendo com que se tivesse uma
base ritmada contínua para uma das músicas. Além disso tinha umas
pequenas cornetas de som que aumentavam o som.
Mas para além das máquinas dantescas foram tocados
em palco coisas como um tubo de vinilo com cordas em arco, latas
de metal de diferentes tamanho, chapas metálicas, tubos metálicos
de canalização e tubos de caleiras plásticos. Mas, também houve
espaço para alguns instrumentos tradicionais, e ouviu-se um baixo,
uma guitarra e um sintetizador... Mas, não necessariamente tocados
de uma forma tradicional.
O Blixa ainda se fez acompanhar de megafone, mas
o melhor "instrumento" que o vi usar foi um compressor de ar. Sim!
Um normal compressor usado para encher pneus. Imaginem alguém vestido
de fato sem camisa, de tronco nú sob o colete e com um tubo vermelho
em espiral a fazer sons e ritmos com o ar que de lá saíia. Usando
a boca, os dedos e o microfone como paredes para criar sons ritmados
apartir do ar comprimido. Espectacular!
Mas, para quem era tão dark e alternativo há cerca
de 15 anos atrás, o Blixa anda muito bem disposto e até diz umas
piadas. Como guitarrista dos Bad Seeds do Nick Cave só o vi ter
alguma intervenção em alguns temas, como uma vez no Porto em que
ele cantou a parte da Kilye Minogue do "Where the Wild Roses Grow" e
que só se ria entre as intervenções. Mas, na maioria das vezes
tem uma presença apagada e discreta. Pois ali ele foi tudo menos
discreto e apagado e passou a noite toda a mandar piadas. Aliás
a banda foi apresentada como sendo um grupo de médicos especialistas
em Nevoeiroterapia com barulho, a uma alusão ao bom tempo que faz
em São Francisco e ao rótulo que a banda tem.
A dada altura tocaram um tema todos sentados no
chão o que dava a entender que era o fim, mas que ainda deu para
mais quase 40 minutos, 20 dos quais em verdadeira Barulhoterapia
industrial. Porém, em quase todo o concerto a música foi bastante
calma e com ritmos certos e até dançáveis, dando sinais que os
Einstürzende Neubauten andam a ouvir música de dança... Mas de
qualidade. Só houve um momento em que quase conseguiram expulsar
toda a gente da sala ou arrebentar com os tímpanos do pessoal,
quando mantiveram um feedback altissimo durante quase um minuto.
O público já não sabia bem o que fazer, mesmo com os ouvidos tapados
e quando se mexia a cabeça parecia que o feedback mudava de tom
e parecia que os tímpanos iam estoirar. Até que veio o silêncio
sexy.
Saímos de lá todos rotos. Dançar, saltar e assimilar
aquele concerto, depois de uma manhã de vela com o mar lindo, mas
bravo que esteve e ainda andar a correr de um barbecue para um
concerto... Mata qualquer um!
Voltámos para casa do Tom, onde pensávamos ir comer
mais qualquer coisa e beber uns copos com o pessoal. Mas, quando
lá chegámos já lá não estava ninguém. Entrámos à espera de encontrar
o pessoal na borga, ou pelo menos na conversa, porque não se ouvia
barulho de fora. Mas nada, nem bilhete nem nada e tudo aberto...
O Tom confia mesmo na vizinhança.
Arrumei o PC, ligámos a TV e comemos qualquer coisa.
No entretanto o telemóvel do Tom tocou... Era o Martin, mas eu
não ia atender. Aproveitei para telefonar à Mariana a ver o que
se passava. Nada! Não se passava nada. O pessoal foi-se embora
porque estava tudo muito choco.
Ok! Fui para casa da Marina e fui dormir. Estava
estoirado depois de um dia todo a correr.
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