C124 QUARTA-FEIRA, 23 DE AGOSTO DE 2000
Gaivota nos pilares - Fotografia de Nuno Moura

Domingo, 16 de Julho de 2000

A véspera da Cláudia chegar. Já tinha pedido a segunda-feira de folga para a poder ir buscar ao aeroporto, mas ainda faltava um dia.

Mal acordei telefonei para casa, em Portugal, para saber se estava tudo bem. Não! Nada estava bem... A Cláudia não encontrava o passaporte em lado nenhum. Era domingo e ela tinha voo marcado para a madrugada de segunda, ninguém no mundo lhe tirava um passaporte a tempo de embarcar. E, para além disso adiar o voo era adiar a vinda muito tempo, porque os voos estavam esgotados e superlotados durante o verão... E conseguir lugar ia ser um caso complicado.

Fiquei doente. Voltei a telefonar meia hora mais tarde e ela pediu-me para não o voltar a fazer tão cedo. Também ela estava nervosa e eu só a estava a pôr pior. Mas, o que é que eu podia fazer.

Estive um bocado na conversa com a RM&P para tentar me destrair, mas não era possível. Combinei ir à tarde com a Rita e com a Mónica a uma festa qualquer em casa de um colega desta, que mora no último andar de um prédio e que queria comemorar a lua cheia. Bem, com o nevoeiro que estava a lua era a última coisa que se devia de ver nessa noite.

Saí. Já tinha combinado com o Nuno, a Ana Pinhal e a Mariana irmos à missa na Saint John Will I-Am Coltrane African Orthodox Church. Uma igreja ortodoxa africana que venera o John Coltrane. Sim! Uma das imensas igrejas tipicamente americanas, com a particularidade de ser um concerto de Jazz.

Tinha telefonado à Mariana e ficámos de nos encontrar à porta da tal igreja. Originalmente a igreja era mesmo ao lado de casa dela, mas tiveram que mudar porque o senhorio não devia de curtir muito a música do John Coltrane. Assim, a igreja era mesmo ali a dois quarteirões de casa da RM&P. Era num edifício que pertencia a uma comunidade ou organização não governamental de ajuda aos mais carenciados, no segundo andar. Pouco se parecia com uma igreja.

A Mariana nunca mais chegava e fomos entrando. No entretanto apareceu a Helena Brito, a Gilda e o marido.

Subimos as escadas e deparámos com uma sala em forma de L, com um piano de cauda e uma bateria no centro e com figuras do John Coltrane e o seu saxofone, tipo icones religiosos de igreja, por detrás de algo que se parecia com um altar. Haviam microfones espalhados pela sala dando a entender que seriam uns quatro ou cinco músicos, ou padres?

Ficámos mesmo ali ao pé das escadas e fomos encaminhados para umas cadeiras por umas anfitriãs muito simpáticas. A cerimónia ia começar em breve.

A maioria das pessoas que estavam a assistir eram turistas ou pessoas de fora. Ao contrário do que seria suposto a maioria eram brancos, uma vez que se tratava de uma igreja de inspiração africana.

De repente entra na sala um padre negro com um hábito branco até aos pés e a tocar um saxofone. Atrás dele vêm mais dois saxofonistas, um negro e um branco loiro, que andou a viajar durante toda a cerimónia, agarrado à pandeireta. O pianista, de casaco de cabedal com tinta branca e um lenço no cabelo, que me pareceu ser o responsável para o atraso da cerimónia, começou a tocar e o baterista era um miúdo que não devia de ter mais que seis anos. A baixista era uma rapariga negra que estava grávida e sentada por detrás da bateria, só a consegui ver muito mais tarde, mas apercebi-me do som do baixo desde o início e estava-me a intrigar donde vinha. Estavam a tocar mais ou menos de improviso e a festa tinha começado.

O coro era formado por três mulheres negras. Uma cantava soul como se tivesse nascido para aquilo e as outras duas apenas faziam vozes. Uma carregava um bébé ao colo e aparentemente era casada com o saxofinista negro. De repente vieram-nos pôr umas marambas, pauzinhos e uns tubos com areia nas mãos para que pudéssemos colaborar na cerimónia. Estivémos ali quase duas horas a tocar e a cantar como se já soubessemos as letras e a música de cor. Não era preciso, aquilo era jazz puro de improviso em Jam Session. Lindo!

No entretanto cerca de 45 minutos depois da hora combinada e quase meia hora depois de começar a cerimónia chegou a Mariana. Não mudou nada! Já não a via há um mês, pois tinha ido em trabalho para Portugal e daí para Cuba em férias. Mas, o atraso típico não o tinha perdido.

O sermão do bispo da igreja (sim, porque o senhor que tocava o saxofone era bispo) durou quase uma hora. O homem era espectacular, conseguiu manter-nos atentos durante aquele tempo todo. Mandou umas piadas às igrejas de gospels e contou-nos a história de quando tinha sido preso e aí descobriu a música e a mensagem do John Coltrane. Em tom de brincadeira ainda tentou disfarçar a dizer que tinha sido um amigo que tinha sido preso e não ele, mas nem valia a pena, porque assim a história nem tinha muito cabimento. No fim veio-nos cumprimentar pela nossa excelente prestação... E a festa continuou...

Mas a minha cabeça já estava noutro lado. Saí da missa no fim do sermão e fui telefonar para a Cláudia... Já tinham passado 4 horas. A Rita tinha encontrado o passaporte. Uff! Que alívio... Já estava no Porto em casa do pai e estava a preparar-se para dormir.

Tentei telefonar para a casa da RM&P, mas como de costume estava ocupado. Queria dizer que não ia à festa com elas, pois a cerimónia tinha demorado mais que o pensava e estava a chover o que não ajudava nada para ver a lua. Desisti e voltei à igreja do John Coltrane. A Mariana, o Nuno e a Ana também já tinham desistido e estavam cá embaixo à minha espera.

Decidimos ir almoçar a um japonês na Van Ness. A Cláudia encontrou o passaporte e vinha no dia seguinte, o que merecia uma comemoração. Mas já era tarde para encontrar algum Jap aberto e acabámos por ir a um paquistanês-americano... Treta de comida. Hamburgueres com sabor a caril, basicamente!!! Ainda por cima o empregado era burro que nem um cêpo e não percebia muito bem inglês, o que é prescindível para quem atende num restaurante em São Francisco, porque aqui ninguém fala inglês. Além disso era meio chinês o que tem tudo a ver com um restaurante paquistanês-americano, "whatever that means"!

Mas pronto, lá comemos aquela comidinha saudável, enquanto se combinava uma ida ao Safeway para fazer compras. A Marina queria encher a casa de comida porque estava à espera das irmãs e umas amigas que vinham passar uns tempos à terra das oportunidades. E por outro lado o Nuno, estava a viver com a Ana Pinhal, enquanto a vida não se decidia e porque tinha sido "expulso" de casa da RM&P com a chegada da mãe da Patrícia, e ambos precisavam de uma boleia para trazer tudo o que queriam comprar no supermercado. Eu tinha o bólide da Mariana! Não podia fugir, mas além disso pouco mais havia que fazer, numa cidade que fica tão deprimente quando chove.

Assim, fui às compras com o Nuno, Ana e Mariana. Os primeiros foram comigo no bólide enquanto a Mariana foi lá ter de mota. Passámos a tarde no supermercado. Parecia o filme dos Malucos no Supermercado. O Nuno e a Ana, aproveitaram o facto de ter uma boleia para poderem comprar quase o supermercado todo e a Mariana simplesmente comprou o supermercado, para poder receber condignamente as irmãs. O N&A conseguiram o feito de comprar 8 pacotes de cereais. 8 pacotes de cereal para duas pessoas? Era para puderem misturar diziam eles. O Carro ia do melhor, a mala cheia e o banco de trás a deitar por fora. Ainda por cima na compra de uma embalagem de papel higiénico de tamanho industrial davam outro de borla e a Mariana ficou abastecida para o resto do ano, mas o carro é que ficou quase sem visibilidade para trás.

Fui levar as compras a casa da Ana, enquanto a Mariana ia para casa de mota. O Nuno despejou tudo em casa e voltou comigo para casa da Mariana. A Ana ficou a estudar.

Tínhamos comprado uma orelha de porco e resolvemos comê-la. Ah! Saudades! Lá consegui cozinhar a coisa, mas ficou um bocado rija... Mas caiu que nem ginja.

Enquanto isso a R&M chegaram e estivemos ali na conversa durante umas horas sobre as coisas banais e importantes da vida.

Voltei para casa da RM&P cerca da 1h.



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