QUARTA-FEIRA, 2 DE AGOSTO DE 2000 C121
Detroit ao Pôr-do-Sol - Fotografia de Rui Gonçalves

Quinta-feira, 13 de Julho de 2000

Pude acordar mais tarde porque não havia necessidade de fazer um ensaio geral. Saí do hotel, depois de pagar e fui tomar o pequeno almoço a um estabelecimento de venda de Donuts e Café. Tipicamente à americana. Um balcão enorme e só donuts. A clientela resumia-se a dois velhos que bebiam o café, uma velha que só refilava e dois polícias, obviamente. Mas, alguma vez viram alguma tasca de Donuts sem pelo menos um polícia? O dono do tasco era meio chinoca e mal falava inglês. Empanturrei-me com um Donut de chocolate e queimem a língua pela milésima vez, na porra do café da treta destes americanos. Porque é que o café tem que vir sempre a ferver?

Quando cheguei ao stand recebi a triste notícia que o VisConcept tinha crashado antes da chegada da administração na noite anterior e que ninguém conseguiu fazer uma demonstração do software, porque não o conseguiram arrancar. Não percebo como é que uma coisa que esteve a correr um dia inteiro crasha umas horas depois de eu ter saído. É a lei de Murphy em acção ou então há dados no problema que não foram muito bem contados.

A verdade é que tive alguns problemas a arrancar a coisa, naquela manhã, mas, depois de um arranque da configuração dos canais dos monitores, tudo arrancou na perfeição. Ainda bem, porque naquele momento estavam no stand uns elementos da área de design do Instituto de Desenvolvimento da Ford. Consegui lhes mostrar o software todo e como é fácil usá-lo e no momento em que arranquei a apresentação correu tudo bem. Não parou mais até ao fim do dia.

A dada altura a meio da tarde, uma tipa dirigiu-se a mim e perguntou-me se não me conhecia da televisão. Eu na televisão? Só apareci no Portugal Radical, mas já foi há quase três ou quatro anos. Lá lhe disse que não, que não devia de ser daí que me conhecia. Perguntou-me a nacionalidade e quando lha disse, contou-me que a cantora preferida dela era uma tal de Alice. Alice? Nunca ouvi falar. "The girl from Ipanema", disse ela... Outra vez? Não! Lá lhe contei a diferença entre Brasil e Portugal e qualquer dia começo a dizer que a minha banda americana preferida são os U2. Mais tarde, vim a descobrir que a cantora era a Elis Regina e não Alice. A confusão entre a Álisse e Élis. O Brasil está mesmo na moda por estes lados...

A mulher viu a calinada que tinha cometido e fugiu. Acho bem... Eu na televisão?

Logo a seguir e quase como por coincidência, apareceu um inglês, que não devia de tomar banho há uns dias, com mais caspa que cabelo e com um mau hálito impressionante, com um microfone na mão e com um camera-man. A ideia era dar uma visão do que se estava a passar ali, aos empregados da Ford em Inglaterra. E, como eu era europeu e para dar uma ideia da diversidade americana, lá estive a demonstrar o software para que depois os britânicos pudessem ver em casa. Lá estava eu na televisão... Afinal a fulana da Alice tinha razão.

Mal acabou a exposição, agarrei nas minhas coisinhas e fiz-me à estrada porque queria apanhar o voo das 7h da tarde, embora o meu bilhete fosse para o das 9h30m. O Joe tinha-me convidado para ir beber uma cerveja no fim da exposição, mas não percebi muito bem qual era a noção de fim da exposição para ele, porque ficou lá a desmontar o stand. Eu tinha muita coisa para fazer e muitos quilómetros para fazer, ainda.

Deixei o carro no parque, depois de encher o depósito, como manda o contrato. Fiz 200 milhas em três dias... 320 quilómetros, numa cidade em três dias. Conseguem imaginarem as distâncias? Paguei e apanhei o shuttle para o aeroporto.

Entrei na área da Northwest e fiquei completamente confuso. A confusão era enorme, aquilo parecia estação do Rossio em hora de ponta e só estava na parte da Northwest que tem qualquer coisa como 65 portões de acesso a mangas de enchimento de aviões. Imagino o resto do aeroporto, se todas as companhias locais têm aquela área.

Vi umas máquinas de check-in electrónico e consegui mudar o voo e reservar lugar. A fila para a bagagem de quem faz o check-in electrónico não tinha ninguém e depressa estava despachado. É impressionante como estes americanos que têm estas facilidades todas não as usam, na maioria dos casos. Eles gostam de ser atendidos por pessoas e depois têm telefones em que só se ouvem gravações. Contradições à americana.

Comecei a redigir uma carta ao Ken a explicar o sucedido e que tinha ficado muito decepcionado com o comportamento que a empresa teve para comigo ao mandar-me para Detroit à última da hora e sem nada pago. Mas, o portátil andava com problemas de bateria e pouco escrevi. Acabei de a redigir no palmtop durante o voo.

De repente nos bancos junto ao portão da manga do meu voo, já não havia lugares e havia gente sentada por todo o lado. Pelos vistos o voo estava com gente a mais. Ainda bem que fiz o check-in cedo.

Saímos quase com 40 minutos de atraso. Não percebo, mas voa mais gente para, do que de São Francisco, conclusão tomada a partir de duas experiências feitas em outras tantas viagens dentro do país.

Fiquei à janela mesmo na frente do avião, logo atrás da classe executiva. Ao meu lado vinha um tipo que tinha um palmtop parecido com o meu, mas que só sabia jogar xadrez e solitaire. Subimos acima das nuvens que mal existiam, mas, o nevoeiro não passava despercebido. Lá fora só se via pequenas porções de terra em forma de paralelogramos separadas por arbustos e aqui e ali um pequeno lago ou um rio. Tudo o mais plano possível, sem qualquer elevação. Até que chegámos a um dos grandes lagos perto de Chicago, que aparentemente tinha areia na zona junto da água. Deixei de o ver, porque as nuvens aumentaram de densidade e o algodão não deixava ver nada para além do sol e as sombras que se formam nas nuvens e dão um ar de conforto, que como se de um colchão se tratasse. Mas o lago é mesmo grande porque cerca de vinte minutos depois as nuvens desapareceram e viu-se de novo a costa, desta vez do lado de Chicago. Mas a cidade estava do outro lado do avião. A paisagem repetia-se, pequenos terrenos em forma de paralelogramos e estradas longas e paralelas ou perpendiculares, entre si. Mas nem uma elevação de terreno. Um laguito aqui ou ali e um ou outro rio. Deve ser mesmo bom para a prática do BTT...

Saímos do Michigan, e entrámos em Illinois, depois seguiu-se Iowa, Nebraska, Colorado, Utah, Nevada, e finalmente a Califórnia.

Algures sobre um rio bastante grande curvámos para sul e subitamente os pequenos terrenos passaram a porções de terra um bocado maiores e a esquadria passou a parecer-se com uma rede gigante. Passámos uma série de perturbações que fizeram com que o avião se parecesse com um carrinho na montanha russa, a subir e descer.

E, eu adormeci. Não foi por muito tempo, porque no entretanto serviram o jantar e de repente já estávamos a aterrar no aeroporto de São Francisco. Eram quase 9h da noite na Califórnia.

Como é costume no aeroporto de São Francisco estive quase uma hora para recuperar a minha mala e no entretanto já tinha perdido o autocarro para San Rafael e tinha escurecido. Apanhei o seguinte e cheguei a San Rafael quase às 11h da noite e ainda tinha que apanhar uma outra ligação até casa.

Telefonei ao Ben, para ver se me dava uma boleia, mas ninguém atendeu. Devia de estar na boa vida ou no escritório. Como não tinha autocarro de ligação até quase à meia noite, coloquei as malas em cima do banco e deitei-me nele a ler uma revista.

De repente na plataforma do outro lado, um casal põe-se aos berros e ela atira-lhe com uma garrafa de água à cara. Lindo! Só me faltava uma cena do Circo.

Ele resolveu vir falar com o segurança da estação de camionagem, que estava numa cabina mesmo ao lado do banco onde eu estava. E, ela veio atrás aos berros. Ela estava com um vestido até aos joelhos, daqueles que nem a minha mãe já usa, mas que eu vi muitas vezes lá guardado no guarda-fatos. Um vestido com cornucópias e de alças, tipo anos 60. Ele estava vestido normalmente, com uma blusa de lã, esticada pelos actos de violência dela.

Ela aparentava ser deficiente mental. E era! O problema era esse mesmo. Ele era o pai e segundo a filha, ele queria interna-la num hospício em que lhe dariam choques eléctricos. Ela queria apanhar o autocarro para São Francisco para fugir ao pai e refugiar-se num outro hospício na cidade, porque estava a precisar de ajuda mental. Ou menos ela tinha consciência disso.

Só sei que de repente ela atira-se ao pai e parte-lhe os óculos, que se espalharam pelo passeio e caem os dois em cima do banco ao lado do que eu estava deitado. Ela esperneava e esmurrava o pai, enquanto este tentava bloquear os seus intuitos e tentava prendê-la. Eu levantei-me e tirei o portátil e a câmara do alcance de ambos. Já se tinham juntado ali cerca de cinco ou seis pessoas, mas ninguém ajudava nenhuma das partes. Acho que isto se acontecesse em Portugal, haviam logo dois três que tentavam separar a coisa, mas aqui ninguém se meteu. A vida é deles e quem sabe se no fim ainda acusam alguém de agressão.

Mas, houve quem chamasse a polícia, porque de repente chegaram dois carros. Um deles traziam cães anti-motim ou intimidadores. Lá separaram o pai e a filha. E, depois de um longo interrogatório a ambos, meteram a rapariga algemada num dos carros e levaram-na para a esquadra presa. O pai foi para casa a pé.

E, eu apanhei o autocarro e fui dormir.



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