Quarta-feira, 12 de Julho de 2000
Levantei-me às três da manhã da Califórnia, para
estar às oito da manhã de Michigan, pronto para o ensaio geral
do nosso stand. No dia anterior tinha demorado quase uma hora do
Centro Tecnológico ao Hotel e não queria arriscar muito. Gostava
de saber porque é que me puseram num hotel a quase 15 quilómetros
do local onde ia decorrer a exposição.
Correu tudo bem e às dez estávamos prontos a receber
os empregados da Ford. Aquela exposição tinha como objectivo pôr
os empregados da Ford em contacto com as novas tecnologias usadas,
ou a usar, pela empresa. Vocês não imaginam a quantidade de gente
que trabalha para a Ford, porque nos dois dias de exposição não
houve um minuto de sossego.
Passou pelo stand todo o tipo de empregado da Ford.
Desde a linha de montagem aos escritórios da administração, esteve
lá de tudo. Basicamente andavam todos à procura de brindes. Mal
se punha alguma coisa em cima da mesa era ver as moscas a pousarem
e a levarem. Além disso, o facto de estarem a ser projectadas imagens
em três dimensões num écran com dois metros por dois metros e meio,
e poder usar-se os óculos fazia com que todos quisessem ver aquilo.
Ah! E, alguém deve ter pensado que os óculos eram giros porque
na primeira meia hora desapareceram uns.
Mas, a maioria ficava curioso com o funcionamento
dos óculos, porque ao contrário do que é normal não têm uma lente
de cada cor. São feitos de cristal liquido e piscam a uma velocidade
que não é perceptível pelo olho humano. Assim, cada lente pisca
alternadamente e em sincronismo com as imagens que são projectadas
fazendo com que cada olho veja apenas uma imagem de cada vez, simulando
as três dimensões sem perda da qualidade da imagem, nem da percepção
da cor. Se se olhar sem óculos vêm-se as duas imagens sobrepostas
porque os nossos olhos não diferenciam as projecções distintas à velocidade
que estão a ser projectadas.
No dia anterior tínhamos tido alguns problemas com
a electricidade porque o mongo do electricista e do amigo, que
tinha mais canetas no bolso que as que eu já usei na minha vida,
resolveram ligar o Onix2 que consome 16 amperes a um circuito que
suporta 20 e onde já estavam ligados os sistemas do stand da Silicon
Graphics. Mas, tiveram a brilhante ideia de isolar a coisa num
circuito só e tudo estava quase perfeito.
Dois stands ao lado estava a empresa concorrente
da EAI na área do VisConcept e estava a demonstrar o software deles.
A Opticore de seu nome teve mais azar que nós, porque estavam numa
zona com muita luz e a quantidade de reflexos no écran não deixavam
ver muito bem as imagens. Nós conseguimos apagar quase todos os
reflexos com cartões negros. Além disso o software deles é algo
limitado e não tem movimento aplicado aos objectos, pelo que eles
para rivalizarem com o nosso, simulavam a coisa no computador ao
lado e com um rato. Achei aquilo um bocado ridículo. Mas, a verdade é que
o sistema deles é muito menos falível que o nosso, o que nos deixou
mal, como vão ver depois.
O local da exposição, era um instituto de investigação
da Ford e de outras companhias. Ao contrário do que acontece em
Portugal, quase toda a investigação nesta terra é feita ou financiada
por empresas privadas. Mas, o tal local da exposição não era mais
que o corredor central desse tal instituto e estávamos todos apinhados
contra as paredes em stands de pouco mais de 5 metros e numa extensão
de meio quilómetro. O melhor do tal instituto era a cantina e a
cafetaria por onde eu passei mais vezes num dia do que o que pretendia
fazer na minha vida. A dada altura do dia já quase vomitava o café americano,
pois já devia ter bebido mais do que o meu organismo tolerava.
Eu aproveitava a presença de um colega na parte
do stand onde estava o VisConcept a ser demonstrado e ia dar uma
volta pelos outros stands. Cada vez que passava em frente ao stand
da Opticore, recebia uma série de olhares de lado, uma vez que
eu estava com uma camisa a dizer VisConcept. E, nem podia olhar
muito para o écran porque senão eles mudavam a imagem, mas, tal
como todos eu andava era à procura dos brindes. Umas canetas, portas-chaves,
rebuçados, drops, t-shirts, bolas anti-stress e mais o que quiserem
imaginar. O brinde mais inútil que eu encontrei em toda exposição
foi um dispositivo plástico fantástico que permite abrir CDs...
Abrir o plástico dos CDs. Sim! Aquele plástico onde os CDs vêm
embrulhados. Imaginem um dispositivo que corta essa plástico...
Acham que estas coisas são mesmo necessárias? Estes americanos
não têm unhas? Não sabem puxar uma ponta de um plástico?
À tarde a Andrea, uma secretária da EAI de Detroit,
perguntou-me qual era a minha nacionalidade, pois como seria de
esperar eu tenho sotaque. Digamos que eu não percebi nada do que
ela disse, porque por ali o pessoal fala mesmo depressa, ao contrário
da Califórnia onde toda a gente fala nas calmas e tem sotaque espanholado.
Foi um outro colega que me traduziu e eu respondi-lhe que era português.
Aí é que ela partiu a loiça toda ao perguntar "Português de onde?
Do Brasil ou de Portugal?", novamente tive que explicar a diferença
entre nacionalidade e idioma. E, mais uma vez, dei um ar de que
ela era uma ignorante e foi gozada pelos colegas.
Mas o melhor de estar ali é que tinha carrão para
dar umas voltas, apesar de já ter quase queimado um bocado dos
pneus quando no dia anterior travei ao pensar que estava a embraiar
o carro para meter a segunda. Carro automático, gotta it? E, a
manivela das velocidades era no guiador, já me sentia um verdadeiro
americano a estacionar, a passar de Drive para Rear e Parking.
Nunca usei o travão de mão.
Nessa noite, a administração da Ford ia fazer uma
visita à exposição. Havia jantar e tudo, mas só permitiam a presença
de duas pessoas por stand. Como já estava tudo a correr bem e como
havia outros interesses no stand que não os meus, fui dispensado.
Assim que fui dispensado às 4h locais, hora de fecho da exposição,
fui para o carro e mudei de roupa. Uma t-shirt e umas sandálias,
porque o calor na rua era demais para estar de camisa preta. E,
abalei para ir dar uma voltita antes de ir ter com a Cristina às
6h.
Que dizer das primeiras impressões acerca da cidade.
No dia anterior já me tinha apercebido do tamanho e das distâncias
entre quarteirões e da confusão resultante de não se poder virar à esquerda
nos semáforos e ter que dar a volta mais à frente. Digamos que
em Detroit os quarteirões medem-se às milhas, ou seja, cada quarteirão
tem uma milha quadrada. As ruas paralelas à beira rio chamam-se
1st Mile, 2nd Mile e por aí diante até à 8th Mile onde acaba a
cidade propriamente dita e começam os arredores. A Cristina trabalha
em Troy na East Big Beaver Rd. que é a mesma coisa que a 16th Mile
Rd. e mora perto da 12th Mile Rd em Royal Oak, isto tudo fora dos
limites da cidade, felizmente.
Eu só me perdi umas vezes, ao tentar encontrar uma
casa de material fotografia que vendia coisas usadas, isto porque
cada vez que queria virar à esquerda num semáforo não podia e depois
falhava a inversão de marcha e tinha que fazer mais uma milha até ao
próximo cruzamento e voltar para trás. Ainda me perdi numa zona
residencial do género do American Beauty, por momentos fiquei à espera
de ver uma mulher de vestido a cortar rosas no jardim. Mas, digamos
que quando cheguei à tal loja de fotografia, estava quase na hora
de ir ter com a Cristina e acabei por não ver nada, além de como
não sabia o queria e não queria gastar dinheiro, mais valia não
incomodar muito.
Quando cheguei aos escritórios onde está a Cristina
a estagiar, já passava um pouco das 6h, a hora combinada. Já não
estava ninguém no escritório, mas vinha a sair um tipo que se dirigiu
a mim em espanhol. Estranhei o facto, mas logo percebi que ele
era mesmo espanhol, o que é normal numa companhia espanhola, que é o
caso e além disso a Cristina tinha-lhe dito que estava à espera
de um amigo português. E, ele deve ter depreendido que o meu espanhol é muito
melhor que o português dele, como é normal.
Só entrei por um bocado, mas os escritórios pareceram-me
pequenos e acolhedores. A empresa faz peças de plástico para o
ramo automóvel, a maior indústria de Detroit e se calhar são clientes
das empresas portuguesas Iberomoldes e Simoldes, onde estão a estagiar
os meus amigos Tiago Sacchetti no México e o Jorge Simões no Brasil,
respectivamente.
Fomos pousar o carro da Cristina a casa e aproveitei
para telefonar à Cláudia. A casa da Cristina é bastante grande
comparada com as do pessoal aqui na Califórnia e em proporção ao
número de pessoas que as habitam, mas como todas está muito vazia,
se calhar por isso me pareceu maior. Fica numa zona sossegada e
perto do centro de Royal Oak, uma zona muito gira.
Saímos e começou a visita turística à cidade. Descemos
uma das largas ruas que se dirigem para o centro de Detroit e assim
que cruzámos a 8th Mile Rd, foi como se tivéssemos entrado num
campo de batalha. Não haviam quase pessoas a pé na rua e as poucas
que se viam era quase todas de raça negra. Os carros tinham ar
de quem usa aquilo para carrinhos de choque e as casas eram poucas
as que tinham vidros na janelas e portas, e haviam mesmo algumas
que pela cor negra deviam ter ardido bem.
A única coisa de pé e bem tratada eram as igrejas
que proliferavam por todo o lado. Em cada quarteirão haviam pelo
menos duas ou três, completamente diferentes e pertencentes a cultos
distintos e diversos. Umas vermelhas, outras amarelas, umas góticas,
outras românicas, havia de tudo.
Detroit é uma cidade essencialmente industrial e
um dos centros ferroviários do país. Ali chegaram no fim da guerra
da civil, e com o fim da escravatura, muitos dos negros que fugiram
das zonas agrícolas dos estados do sul. Mas, só muito mais tarde é que
os negros conseguiram o direito de trabalhar nas fábricas de automóveis,
porque até aí só podiam trabalhar nas indústrias satélites. Durante
a segunda guerra mundial a mão de obra mais barata e o aumento
da produção automóvel fez com que os negros passassem a ser a maior
força laboral da indústria automóvel em Detroit. Como protesto
da facção branca dos trabalhadores houve um primeiro motim em 1943.
Mas o maior motim aconteceu em 1967, com o aumento dos protestos
por melhores condições de trabalho e os mesmos direitos que os
trabalhadores brancos, e que resultou numa completa destruição
da cidade. Os brancos saíram da cidade para os subúrbios e Detroit
tornou-se num ghetto. É a cidade com maior índice de criminalidade
do país.
Tirando a sede da General Motors e as igrejas no
centro da cidade, Detroit por vezes parece Sarajevo depois dos
bombardeamentos, em estado de sítio e com quase ninguém nas ruas
a não ser dentro dos carros e com as portas trancadas. É triste
ver um espectáculo decadente daqueles.
Além disso conduz-se tão bem como no Porto ou Lisboa,
mas os carros são um bocado maiores e já estão moldados pela condução
dos seus proprietários... Isto assumindo que os donos dos carros
são os mesmos que os conduzem.
Mas, fora da cidade nos subúrbios toda a gente é fina
e só se joga Golf. As raças aí estão todas misturadas e não deu
para perceber se existem conflitos raciais, embora sejam conhecidos
os problemas entre raças em Detroit.
Como a zona é muito plana, os greens de golf proliferam
como cogumelos e na rádio só se houve falar em ir passear para
não sei onde e ir jogar golf. Os anúncios de promoção das zonas
de férias na região só falam em Golf. E, além disso, um dos brindes
que a minha empresa ia sortear no stand no dia seguinte, era um
conjunto de golf de escritório num estojo em cabedal e formado
por um taco, uma bola e uma tábua com um buraco. Lindo!
Nós seguimos até à beira rio. Um rio que liga dois
dos grandes lagos da região. Aí resolvemos ir dar um salto à outra
margem, ao Canadá. Atravessámos o túnel e estávamos no Canadá.
Detroit é muito mais bonito do outro lado do rio, além de que está tudo
muito mais arranjado e verde por ali. Parei o carro e passeámos
a beira rio, a ver o sol a pôr-se por detrás dos edifícios do centro
da cidade do outro lado e na conversa sobre tudo, um pouco.
Mas, começava a ser tarde e nesta terra nunca se
janta tarde ou então não se encontra sítio para jantar. Voltámos
para Detroit pela ponte e apanhámos a auto-estrada até Royal Oak,
onde resolvemos ir jantar. Pelo caminho, e junto à saída da ponte,
havia um prédio com mais de dez andares que não tinha uma janela
inteira, conseguia-se ver de um lado ao outro do edifício.
Chegámos ao centro de Royal Oak num instante e depois
de uma voltita pelas redondezas resolvemos jantar qualquer coisa
não muito pesada, porque eu estava quase a ir para a cama. Fomos
a um restaurante mediterrânico.
Royal Oak é muito interessante. Fez-me lembrar um
bocado Fairfax, aqui perto de onde eu moro, mas em versão de Michigan.
Fairfax é onde moram os hippies todos dos anos 60 e cujos filhos
são hippies ricos, ou seja, aqueles hippies que andam de BMW, mas
que se vestem à hippie. As lojas só vendem artesanato, pintura,
roupa e livros hippies. Pois bem, ali a cultura é outra. É a cultura
das Harley Davidson, que são do estado vizinho do Illinois. Mas
o conceito de restaurantes e bares é o mesmo. Esplanadas muito
giras e restaurantes de todas as origens.
Jantámos e como me queria deitar cedo fui levar
a Cristina a casa. Ainda estivemos na conversa um bocado no carro,
enquanto eu testava os motores do meu banco para ver qual era a
posição mais à frente possível. Ninguém é capaz de conduzir naquela
posição, porque eu fiquei com a testa colada no pára-brisas e com
as costelas encostadas ao guiador.
Despedimo-nos e eu fui para o hotel. |