C120 QUARTA-FEIRA, 2 DE AGOSTO DE 2000
Dodge Intrepid - Fotografia Publicitária

Quarta-feira, 12 de Julho de 2000

Levantei-me às três da manhã da Califórnia, para estar às oito da manhã de Michigan, pronto para o ensaio geral do nosso stand. No dia anterior tinha demorado quase uma hora do Centro Tecnológico ao Hotel e não queria arriscar muito. Gostava de saber porque é que me puseram num hotel a quase 15 quilómetros do local onde ia decorrer a exposição.

Correu tudo bem e às dez estávamos prontos a receber os empregados da Ford. Aquela exposição tinha como objectivo pôr os empregados da Ford em contacto com as novas tecnologias usadas, ou a usar, pela empresa. Vocês não imaginam a quantidade de gente que trabalha para a Ford, porque nos dois dias de exposição não houve um minuto de sossego.

Passou pelo stand todo o tipo de empregado da Ford. Desde a linha de montagem aos escritórios da administração, esteve lá de tudo. Basicamente andavam todos à procura de brindes. Mal se punha alguma coisa em cima da mesa era ver as moscas a pousarem e a levarem. Além disso, o facto de estarem a ser projectadas imagens em três dimensões num écran com dois metros por dois metros e meio, e poder usar-se os óculos fazia com que todos quisessem ver aquilo. Ah! E, alguém deve ter pensado que os óculos eram giros porque na primeira meia hora desapareceram uns.

Mas, a maioria ficava curioso com o funcionamento dos óculos, porque ao contrário do que é normal não têm uma lente de cada cor. São feitos de cristal liquido e piscam a uma velocidade que não é perceptível pelo olho humano. Assim, cada lente pisca alternadamente e em sincronismo com as imagens que são projectadas fazendo com que cada olho veja apenas uma imagem de cada vez, simulando as três dimensões sem perda da qualidade da imagem, nem da percepção da cor. Se se olhar sem óculos vêm-se as duas imagens sobrepostas porque os nossos olhos não diferenciam as projecções distintas à velocidade que estão a ser projectadas.

No dia anterior tínhamos tido alguns problemas com a electricidade porque o mongo do electricista e do amigo, que tinha mais canetas no bolso que as que eu já usei na minha vida, resolveram ligar o Onix2 que consome 16 amperes a um circuito que suporta 20 e onde já estavam ligados os sistemas do stand da Silicon Graphics. Mas, tiveram a brilhante ideia de isolar a coisa num circuito só e tudo estava quase perfeito.

Dois stands ao lado estava a empresa concorrente da EAI na área do VisConcept e estava a demonstrar o software deles. A Opticore de seu nome teve mais azar que nós, porque estavam numa zona com muita luz e a quantidade de reflexos no écran não deixavam ver muito bem as imagens. Nós conseguimos apagar quase todos os reflexos com cartões negros. Além disso o software deles é algo limitado e não tem movimento aplicado aos objectos, pelo que eles para rivalizarem com o nosso, simulavam a coisa no computador ao lado e com um rato. Achei aquilo um bocado ridículo. Mas, a verdade é que o sistema deles é muito menos falível que o nosso, o que nos deixou mal, como vão ver depois.

O local da exposição, era um instituto de investigação da Ford e de outras companhias. Ao contrário do que acontece em Portugal, quase toda a investigação nesta terra é feita ou financiada por empresas privadas. Mas, o tal local da exposição não era mais que o corredor central desse tal instituto e estávamos todos apinhados contra as paredes em stands de pouco mais de 5 metros e numa extensão de meio quilómetro. O melhor do tal instituto era a cantina e a cafetaria por onde eu passei mais vezes num dia do que o que pretendia fazer na minha vida. A dada altura do dia já quase vomitava o café americano, pois já devia ter bebido mais do que o meu organismo tolerava.

Eu aproveitava a presença de um colega na parte do stand onde estava o VisConcept a ser demonstrado e ia dar uma volta pelos outros stands. Cada vez que passava em frente ao stand da Opticore, recebia uma série de olhares de lado, uma vez que eu estava com uma camisa a dizer VisConcept. E, nem podia olhar muito para o écran porque senão eles mudavam a imagem, mas, tal como todos eu andava era à procura dos brindes. Umas canetas, portas-chaves, rebuçados, drops, t-shirts, bolas anti-stress e mais o que quiserem imaginar. O brinde mais inútil que eu encontrei em toda exposição foi um dispositivo plástico fantástico que permite abrir CDs... Abrir o plástico dos CDs. Sim! Aquele plástico onde os CDs vêm embrulhados. Imaginem um dispositivo que corta essa plástico... Acham que estas coisas são mesmo necessárias? Estes americanos não têm unhas? Não sabem puxar uma ponta de um plástico?

À tarde a Andrea, uma secretária da EAI de Detroit, perguntou-me qual era a minha nacionalidade, pois como seria de esperar eu tenho sotaque. Digamos que eu não percebi nada do que ela disse, porque por ali o pessoal fala mesmo depressa, ao contrário da Califórnia onde toda a gente fala nas calmas e tem sotaque espanholado. Foi um outro colega que me traduziu e eu respondi-lhe que era português. Aí é que ela partiu a loiça toda ao perguntar "Português de onde? Do Brasil ou de Portugal?", novamente tive que explicar a diferença entre nacionalidade e idioma. E, mais uma vez, dei um ar de que ela era uma ignorante e foi gozada pelos colegas.

Mas o melhor de estar ali é que tinha carrão para dar umas voltas, apesar de já ter quase queimado um bocado dos pneus quando no dia anterior travei ao pensar que estava a embraiar o carro para meter a segunda. Carro automático, gotta it? E, a manivela das velocidades era no guiador, já me sentia um verdadeiro americano a estacionar, a passar de Drive para Rear e Parking. Nunca usei o travão de mão.

Nessa noite, a administração da Ford ia fazer uma visita à exposição. Havia jantar e tudo, mas só permitiam a presença de duas pessoas por stand. Como já estava tudo a correr bem e como havia outros interesses no stand que não os meus, fui dispensado. Assim que fui dispensado às 4h locais, hora de fecho da exposição, fui para o carro e mudei de roupa. Uma t-shirt e umas sandálias, porque o calor na rua era demais para estar de camisa preta. E, abalei para ir dar uma voltita antes de ir ter com a Cristina às 6h.

Que dizer das primeiras impressões acerca da cidade. No dia anterior já me tinha apercebido do tamanho e das distâncias entre quarteirões e da confusão resultante de não se poder virar à esquerda nos semáforos e ter que dar a volta mais à frente. Digamos que em Detroit os quarteirões medem-se às milhas, ou seja, cada quarteirão tem uma milha quadrada. As ruas paralelas à beira rio chamam-se 1st Mile, 2nd Mile e por aí diante até à 8th Mile onde acaba a cidade propriamente dita e começam os arredores. A Cristina trabalha em Troy na East Big Beaver Rd. que é a mesma coisa que a 16th Mile Rd. e mora perto da 12th Mile Rd em Royal Oak, isto tudo fora dos limites da cidade, felizmente.

Eu só me perdi umas vezes, ao tentar encontrar uma casa de material fotografia que vendia coisas usadas, isto porque cada vez que queria virar à esquerda num semáforo não podia e depois falhava a inversão de marcha e tinha que fazer mais uma milha até ao próximo cruzamento e voltar para trás. Ainda me perdi numa zona residencial do género do American Beauty, por momentos fiquei à espera de ver uma mulher de vestido a cortar rosas no jardim. Mas, digamos que quando cheguei à tal loja de fotografia, estava quase na hora de ir ter com a Cristina e acabei por não ver nada, além de como não sabia o queria e não queria gastar dinheiro, mais valia não incomodar muito.

Quando cheguei aos escritórios onde está a Cristina a estagiar, já passava um pouco das 6h, a hora combinada. Já não estava ninguém no escritório, mas vinha a sair um tipo que se dirigiu a mim em espanhol. Estranhei o facto, mas logo percebi que ele era mesmo espanhol, o que é normal numa companhia espanhola, que é o caso e além disso a Cristina tinha-lhe dito que estava à espera de um amigo português. E, ele deve ter depreendido que o meu espanhol é muito melhor que o português dele, como é normal.

Só entrei por um bocado, mas os escritórios pareceram-me pequenos e acolhedores. A empresa faz peças de plástico para o ramo automóvel, a maior indústria de Detroit e se calhar são clientes das empresas portuguesas Iberomoldes e Simoldes, onde estão a estagiar os meus amigos Tiago Sacchetti no México e o Jorge Simões no Brasil, respectivamente.

Fomos pousar o carro da Cristina a casa e aproveitei para telefonar à Cláudia. A casa da Cristina é bastante grande comparada com as do pessoal aqui na Califórnia e em proporção ao número de pessoas que as habitam, mas como todas está muito vazia, se calhar por isso me pareceu maior. Fica numa zona sossegada e perto do centro de Royal Oak, uma zona muito gira.

Saímos e começou a visita turística à cidade. Descemos uma das largas ruas que se dirigem para o centro de Detroit e assim que cruzámos a 8th Mile Rd, foi como se tivéssemos entrado num campo de batalha. Não haviam quase pessoas a pé na rua e as poucas que se viam era quase todas de raça negra. Os carros tinham ar de quem usa aquilo para carrinhos de choque e as casas eram poucas as que tinham vidros na janelas e portas, e haviam mesmo algumas que pela cor negra deviam ter ardido bem.

A única coisa de pé e bem tratada eram as igrejas que proliferavam por todo o lado. Em cada quarteirão haviam pelo menos duas ou três, completamente diferentes e pertencentes a cultos distintos e diversos. Umas vermelhas, outras amarelas, umas góticas, outras românicas, havia de tudo.

Detroit é uma cidade essencialmente industrial e um dos centros ferroviários do país. Ali chegaram no fim da guerra da civil, e com o fim da escravatura, muitos dos negros que fugiram das zonas agrícolas dos estados do sul. Mas, só muito mais tarde é que os negros conseguiram o direito de trabalhar nas fábricas de automóveis, porque até aí só podiam trabalhar nas indústrias satélites. Durante a segunda guerra mundial a mão de obra mais barata e o aumento da produção automóvel fez com que os negros passassem a ser a maior força laboral da indústria automóvel em Detroit. Como protesto da facção branca dos trabalhadores houve um primeiro motim em 1943. Mas o maior motim aconteceu em 1967, com o aumento dos protestos por melhores condições de trabalho e os mesmos direitos que os trabalhadores brancos, e que resultou numa completa destruição da cidade. Os brancos saíram da cidade para os subúrbios e Detroit tornou-se num ghetto. É a cidade com maior índice de criminalidade do país.

Tirando a sede da General Motors e as igrejas no centro da cidade, Detroit por vezes parece Sarajevo depois dos bombardeamentos, em estado de sítio e com quase ninguém nas ruas a não ser dentro dos carros e com as portas trancadas. É triste ver um espectáculo decadente daqueles.

Além disso conduz-se tão bem como no Porto ou Lisboa, mas os carros são um bocado maiores e já estão moldados pela condução dos seus proprietários... Isto assumindo que os donos dos carros são os mesmos que os conduzem.

Mas, fora da cidade nos subúrbios toda a gente é fina e só se joga Golf. As raças aí estão todas misturadas e não deu para perceber se existem conflitos raciais, embora sejam conhecidos os problemas entre raças em Detroit.

Como a zona é muito plana, os greens de golf proliferam como cogumelos e na rádio só se houve falar em ir passear para não sei onde e ir jogar golf. Os anúncios de promoção das zonas de férias na região só falam em Golf. E, além disso, um dos brindes que a minha empresa ia sortear no stand no dia seguinte, era um conjunto de golf de escritório num estojo em cabedal e formado por um taco, uma bola e uma tábua com um buraco. Lindo!

Nós seguimos até à beira rio. Um rio que liga dois dos grandes lagos da região. Aí resolvemos ir dar um salto à outra margem, ao Canadá. Atravessámos o túnel e estávamos no Canadá. Detroit é muito mais bonito do outro lado do rio, além de que está tudo muito mais arranjado e verde por ali. Parei o carro e passeámos a beira rio, a ver o sol a pôr-se por detrás dos edifícios do centro da cidade do outro lado e na conversa sobre tudo, um pouco.

Mas, começava a ser tarde e nesta terra nunca se janta tarde ou então não se encontra sítio para jantar. Voltámos para Detroit pela ponte e apanhámos a auto-estrada até Royal Oak, onde resolvemos ir jantar. Pelo caminho, e junto à saída da ponte, havia um prédio com mais de dez andares que não tinha uma janela inteira, conseguia-se ver de um lado ao outro do edifício.

Chegámos ao centro de Royal Oak num instante e depois de uma voltita pelas redondezas resolvemos jantar qualquer coisa não muito pesada, porque eu estava quase a ir para a cama. Fomos a um restaurante mediterrânico.

Royal Oak é muito interessante. Fez-me lembrar um bocado Fairfax, aqui perto de onde eu moro, mas em versão de Michigan. Fairfax é onde moram os hippies todos dos anos 60 e cujos filhos são hippies ricos, ou seja, aqueles hippies que andam de BMW, mas que se vestem à hippie. As lojas só vendem artesanato, pintura, roupa e livros hippies. Pois bem, ali a cultura é outra. É a cultura das Harley Davidson, que são do estado vizinho do Illinois. Mas o conceito de restaurantes e bares é o mesmo. Esplanadas muito giras e restaurantes de todas as origens.

Jantámos e como me queria deitar cedo fui levar a Cristina a casa. Ainda estivemos na conversa um bocado no carro, enquanto eu testava os motores do meu banco para ver qual era a posição mais à frente possível. Ninguém é capaz de conduzir naquela posição, porque eu fiquei com a testa colada no pára-brisas e com as costelas encostadas ao guiador.

Despedimo-nos e eu fui para o hotel.



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