Terça-feira, 11 de Julho de 2000
Existe aqui um buraco espaço-tempo que me pôs confuso
quanto ao início da terça e o fim da segunda-feira. Porque para
mim foi um bocado contínuo, apesar de achar que ainda consegui
dormir uma horita atravessado no banco do avião.
Acordei com os primeiros raios de sol e com Detroit
ao fundo. Não passava de uma grande área em forma de teia de aranha
iluminada e ao fundo os laranjas do nascer do sol misturavam-se
com o azul escuro do breu nocturno. Continuo a achar que é o momento
mais bonito do dia, apesar de normalmente não ter muita vontade
de o ver. Mas, faz-me lembrar os quartos de serviço da manha no
mar e as infindáveis noites de farra na universidade. Acho que
por isso é que eu tiro tantas fotos ao pôr-do-sol, porque é semelhante
e porque nunca fico acordado até ao nascer do sol. Ou não acordo
tão cedo.
Eram duas da manhã em São Francisco, cinco em Detroit
e dez em Portugal.
O avião aterrou sem problemas, apesar da viagem
ter sido muito atribulada com o avião a abanar o tempo todo, mas
nada de grave se compararmos com a vez em que cheguei ao Porto,
vindo de Amsterdão, no dia em que um pequeno furacão assolou a
zona e levantou alguns telhados em Vila do Conde, um bocado mais
a norte. Mas, acho que por aqui os aviões voam mais baixo e por
isso apanham mais turbulências.
Levantei a bagagem sem problemas, pois aquela hora
poucos são os otários que andam de avião, apesar de me ter parecido
que há mais otários do que pensava. Fui levantar o carro. Um shuttle
passa em frente ao aeroporto e deixa as pessoas que largaram o
carro, antes de voarem e apanha as pessoas que vão levantar os
carros, que era o meu caso. Todas as companhias de aluguer de carro
fazem o mesmo, aquilo parece um comboio de minibuses.
A reserva estava em meu nome, mas não gostei do
facto de me cobrarem as despesas no meu cartão de crédito. Eu sei
que serei reembolsado, mas acontece que como estagiário que ganha
uma miséria (aqui) um quarto do dinheiro disponível mensalmente
faz muita falta.
O carro que me alugaram foi um Dodge Intrepid....
Dourado. Sim! Dourado... Metalizado! Aquilo é mais champanhe mas
eles dizem que é dourado e eu acredito. Mudanças automáticas, ar
condicionado, sofá de condutor e passageiro motorizados, 5 ou 6
metros de comprimento e a linda inscrição "Objects in the mirror
are closer than they appear" que tantas saudades me traz do meu
jipe Galloper.
Depois da inspecção e do pequeno almoço no MacDonalds
do outro lado da rua, rumei a tentar saber onde era o local de
encontro. Tinha uma ideia mas, como vão ver, estava longe de ser
a correcta.
Apanhei a 94 em direcção a Leste, direito a Detroit.
Segui as instruções do Yahoo e estava na estrada certa. De repente
o trânsito estava parado. Aí comecei a ver que afinal por aqui
também há artistas do volante e que se faz de tudo. Usar a berma
da direita, buzinar para o da frente e até utilizar uma entrada
da auto-estrada como saída. Comecei a sentir-me em casa, embora
o estado de alguns carros e o ar de alguns dos condutores fosse
sensivelmente pior do que já vi no Casal Ventoso. Já me tinham
avisado que a aqui a coisa piava de outra maneira e que o à vontade
para andar nas ruas à noite não era o mesmo, mas haviam realmente
alguns verdadeiros artistas da pastilha elástica.
Finalmente Greenfield Street... Mas a primeira à esquerda é que
não ia dar a lado nenhum. Se calhar estava na rua certa mas no
sentido contrário. Meia volta e... Perdido!
Eu sabia que isto tinha alguma coisa a ver com a
Ford, mas naquela zona era tudo Ford... A fábrica da Ford parece
a Lisnave, mas umas vezes maior e também muito suja. Decidi ir
perguntar ao segurança da fabrica, mas como seria de esperar o
mongo não sabia de nada, nem fazia ideia onde era o tal Technical
Center da Ford... Pois não! Porque não existe, pelo menos com esse
nome e além disso não era isso que eu andava a procura.
Digamos que o portão de entrada da Ford parece-se
com uma portagem e que nos poucos minutos que ali estive, entraram
e saíram tantos carros que eu julguei que estava realmente numa
portagem. Cada sentido tem duas linhas e todos os carros que entram,
param para os condutores mostrarem a sua identificação e os que
saem para mostrar que se vão embora.
Mas, eu já estava atrasado e fui-me à minha vida.
Voltei à rua que me tinham indicado e virei na primeira à esquerda.
E, encontrei um Visteon Technical Center... Devia ser aquele e
até era parecido com a descrição que o Joe me tinha dado. Parei
o carro e fui ao local combinado, mas nada de Joe. Dei uma volta
por ali, mas não vi nenhum telefone e decidi meter-me no carro
e dar uma volta ao campus.
Assim que peguei no carro encontrei a portaria principal,
voltei a estacionar e fui perguntar se havia algum Joe Zebrowski
por ali. Sim! Constava dos registos... Sucesso!
Telefonei para a extensão dele, mas ninguém atendia.
Resolvi telefonar para o telemóvel, ele atendeu e disse que me
ia buscar... Passaram 10 minutos e eu achei que já era gozo. Levantei-me
e caminhei. Passaram 20 minutos e nada. Era abuso, fui ao carro
buscar o computador portátil e apanhar ar. Passaram 30 minutos
e voltei a telefonar...
Foi aí que descobri que estávamos em lugares distintos.
E, a chamada caiu e eu não tinha mais moedas... Lindo!
Mas telefonei com o cartão e consegui as indicações
para o lugar correcto que ficava a uns quilómetros, mas não muitos,
dali.
Lá fui e cheguei ao sítio certo com quase 1h45m
de atraso... Mas nada de grave pois as coisas ainda estavam muito
verdes por ali. Eram 9h15m em Detroit, ou seja, 6h15m para o meu
cérebro que ainda funcionava com o horário da Califórnia.
Estava lá o Joe e o Randall. O primeiro é a cara
chapada do Benoit, um bocadinho mais baixo e a falar inglês sem
sotaque francês. O segundo é uma verdadeira betoneira de hambúrgueres,
com mais de 1,80m e com mais de 200 quilos. As calças estavam completamente
caídas pelo cu e o tecido usado no polo dava para fazer pelo menos
três que me servissem. É bom estar numa terra onde a minha barriga
veste médio e às vezes (raras) small.
Estivemos a brincar com o stereo e com os óculos
3D até que às 10h30m (Californianas) fui almoçar.
Fui ali ao lado a um grego fast-food chamado Pharthenon
II. Do melhor da comida grega... Mas em formato americanizado,
ou seja, em sandes. Lá teve que ser. A salada estava óptima, mas
a espetada nem por isso... Mais um café para ajudar a manter-me
acordado e de volta ao Centro Tecnológico iTek.
Estava um calor e uma humidade no ar que fazia com
que a roupa se colasse ao corpo e a progressão da caminhada fosse
um trabalho para Hércules. O que vale é que o Dodge tinha ar condicionado,
porque senão tinha morrido com o calor e o sono misturados... Andava
com uns palitos nos olhos!
A dada altura estava a tentar configurar o sistema
e um tipo chegou-se ao nosso pavilhãozinho e perguntou - "What
you're doing here?". Eu em tom de gozo respondi-lhe a verdade do
que se passava naquele momento - "Nothing!". O homem não gostou
muito do humor californiano. Parece que por ali as pessoas levam
as coisas mais à séria. Ele não disse nada e o meu colega Bill é que
lhe explicou o que andávamos a fazer e mostrou-lhe o que iríamos
mostrar no dia seguinte.
Tenho que começar a ter cuidado com esta minha aculturação
californiana, porque em Portugal, uma piada destas podia ser considerado
um insulto. Aqui não passou de mais uma piada e um gajo sem humor,
porque o Bill nem ligou ao que eu disse. Já me começo a sentir
um americano piadético e estúpido.
No fim do dia em Detroit e a meio da tarde na Califórnia,
e uma vez que estava tudo a funcionar mais ou menos bem, resolvi
ir deixar as coisas ao hotel, ver o meu mail e talvez dar uma volta.
Tinha conseguido mandar um mail à Cristina Santos que está em Detroit
a realizar o estágio do Contacto e queria ver se ela tinha respondido
e se dava para nos encontrarmos. É engraçado que nem há uns dias
tínhamos estado juntos na Califórnia... Lembram-se?
Olhei para o mapa e como não me apetecia andar perdido
de novo na cidade, tirei as perpendiculares ao local e fui devagar,
naquelas avenidas com quatro faixas para cada lado, porque estava
a começar a sentir o cansaço. Passei o Hotel e tive que dar a volta
na primeira possibilidade. Em Detroit, nunca se pode virar à esquerda
nos cruzamentos e uma centena de metros à frente tem um sítio para
fazer inversão de marcha e assim, depois poderemos virar à direita
no cruzamento. Ou seja, para se virar à esquerda tem que se fazer
inversão de marcha e virar à direita. Ah! Todos os cruzamentos
e zonas de inversão de marcha têm semáforos. Daqueles semáforos
que se costuma ver nos filmes, pendurados em cabos de electricidade
e que abanam com o vento. Parecia que estava num filme...
Consegui chegar ao Hotel para me voltar a chatear.
De novo a reserva estava feita em meu nome e de novo tive que pagar
com o meu cartão de crédito. Digamos que com estas coisas todas
somadas a empresa me deve $800, quando eu tenho $1300 para gastar
por mês, depois de pagar $675 de renda. E, digamos que quando vos
escrevo isto ainda não recebi um tostão e a sobrevivência é feita à custa
de poupanças. Quero ir de férias e estou a ver que tenho que andar
a pedir dinheiro. Afinal estas coisas não acontecem só em Portugal.
Mas, voltando ao Hotel em Detroit. O recepcionista
era um tipo de raça negra, com cerca de 130 quilos como muitos
por ali, de fato e gravata, muito bem aprumado, bem mais do que
aqui na Califórnia e muito simpático, aliás como a recepcionista
que se colou logo a tentar ver a minha carta de condução e de que
país é que eu era. A primeira declaração da moçoila, que estava
com mais base na cara do que a que vem numa normal embalagem de
produto, foi, se aquela era a nossa carta de condução normal. Mas,
com ar de desdém. É verdade que as nossas cartas são um nojo, mas
escusava de dizer aquelas coisas. Só lhe disse que sim, mas que
em breve teriamos cartas com banda magnética como as americanas.
Mas, ela estragou tudo quando soube que eu era português
e se saiu com "Oh! I have a friend from Venezuela". Palerma! Até o
recepcionista gozou com ela... Apesar de eu simpaticamente lhe
tentar explicar a grande diferença entre Portugal e Brasil e o
Sul da Europa e a América do Sul. Digamos que a menina reguila
fugiu e foi atender outro cliente. Até fiquei com pena, porque
a moçoila até era jeitosa e sempre ajudava a manter-me acordado
enquanto preenchia os papéis.
Pousei as coisas no quarto e li o mail. Mas, não
sei antes ter montes de problemas para me ligar ao número de acesso.
Não percebo porquê mas em Detroit tem que se marcar o indicativo
do local.
A Cristina tinha respondido e eu tentei telefonar-lhe.
Não atendeu, deixei mensagem e fui passear. Não queria ir muito
longe. Só queria jantar e voltar cedo para a cama, mas estava sem
fome, porque para mim ainda eram 6h da tarde.
Fui ver uma loja de música e livros e quando saí já estava
a fechar, assim como quase tudo por ali. Acabei por ter que jantar
numa pizzaria às 7h da tarde, para o meu organismo. E, como estava
a ficar de noite e não me apetecia andar a passear com o sono que
estava, voltei para o Hotel. Estava-me a começar a passar com a
história de ter que eu pagar o hotel e o carro. Liguei-me à Internet
para navegar um bocado e tentar acalmar. O Ben ainda estava no
escritório em Mill Valley. Contei-lhe a história e ele só me disse
que na minha situação também ficava lixado, mas que fosse dormir
que no dia seguinte as coisas me iam parecer diferentes. Tinha
razão.
Desliguei o computador e tentei telefonar de novo à Cristina.
Apanhei-a e estivemos a falar quase uma hora, como se não nos víssemos
há meses. Combinámos ir jantar no dia seguinte.
Deitei-me às 9h da noite em São Francisco. |