QUARTA-FEIRA, 19 DE JULHO DE 2000 C109
Eels Live in The Great American Music Hall - Fotografia de Rui Gonçalves

Como devem imaginar na última crónica não falei dos trajes de todos, mas não foi porque ache que estavam menos originais, mas porque simplesmente já era difícil de me lembrar de todos.

Mas acerca da festa. O espírito da festa foi extraordinário e foi bonito ver como as pessoas entraram facilmente na brincadeira e no desafio de se vestirem à 60's e 70's. Eu gostava de ver a repetição desta festa em território nacional, quando voltarmos... Provavelmente muita gente não teria a coragem de aparecer assim vestido na rua e ir a uma festa em Portugal, porque há sempre aquela vergonha e a mania que toda a gente vai reparar e falar... E vai! Aqui nos Estados Unidos, as pessoas vestem o que querem e ninguém liga. Por isso é que lhe chamam o país da liberdade? Deve ser, porque de resto quase tudo é proibido.

Mas, este foi o espirito de São Francisco, do pessoal e do fim de semana do Gay Pride. Liberdade de ser como se é... E o país da liberdade.

Mas voltemos às estórias que isto está mesmo atrasado... Quase um mês.

Sábado, 24 de Junho de 2000

Depois da festa do J&J, acordar foi um processo difícil e moroso. Acordámos às 10h, e a primeira coisa que fizemos foi ligar a TSF via Internet e ouvir o Portugal - Turquia. Portugal já ganhava por 1-0 e a coisa foi melhorando até que o resultado final ficou em 2-0. Durante o jogo estava em conversa directa com a Sofia em Inglaterra que tinha 14 pessoas em sua casa, a comemorar o São João e a ver o futebol.

Enquanto isso a mãe da Patrícia já se tinha levantado, também e eu pela primeira vez em 6 meses consegui pôr as mãos num jornal português. Sim! Pôr as mãos, porque até agora tinha só posto os olhos... Na página na Internet.

Quando o jogo acabou resolvemos sair para ir tomar o pequeno almoço a algum lado. Eu, o Tiago, a Rita, a Mónica e a Joana, porque a Patrícia ia mostrar a cidade à mãe.

Ao sair do prédio delas reparei que mesmo em frente no The Great American Music Hall (http://www.musichallsf.com/) actuavam nessa noite, os Eels. Como quem não quer a coisa fui perguntar se tinham bilhetes e quanto é que custavam. Só $10? Comprei logo um. Nem que fosse sozinho, depois de ter ido ver os Primal Scream sozinho não perdia nada em ir ver os Eels também, e além disso ainda não conhecia esta sala, que supostamente é a mais antiga da Califórnia.

Enquanto comprava o bilhete um dos roadies da banda, que estava a descarregar o material de palco, dizia a uma tipa, que tinha comprado o bilhete à minha frente, que ele é que iria fazer a primeira parte, porque não conseguiram arranjar uma banda pelo preço que pagavam. O tipo, que devia de ter quase 50 anos e tinha um ar de quem tinha vindo de uma quinta qualquer ou que vivia na rua, falava aquilo com ar de gozo, mas estava a falar verdade como irão ver.

O pessoal decidiu ir almoçar, porque já não eram horas de tomar o pequeno-almoço, e como é costume as possibilidades levantadas e recusadas são sempre imensas, pelo que já estávamos quase na Market St. quando decidimos ir ao MOMA, o Museam Of Modern Art (http://www.sfmoma.org/).

Ainda não visitei o museu, mas não deve demorar muito, porque se deixo muito para o fim já sei que acabo por não ver nada. Mas, o café é muito giro. Decorado de uma forma moderna e em tons de castanhos terra misturados com metais mate, fica muito bonito. As mesas são em metal e as cadeiras têm uma forma esquisita e difícil de explicar, mas vocês quando vierem cá eu mostro-vos. Fez-me lembrar a Pizzarte em Aveiro... Ah! Saudades de uma verdadeira pizza italiana, um verdadeiro crepe ao fim da tarde ou uma sangria com os amigos. 

Mas, o melhor do café do museu, são as sandes de fiambre que parecem feitas para verdadeiros americanos, mas que naquele dia, e com o estômago mal tratado como tinha, me pareceram ainda maiores do que realmente são. Gostei também da pirâmide de chapa de zinco, que nos dão para assinalar a nossa ordem, e que serve para os empregados mexicanos depois virem trazer a comida à mesa. Sui generis.

Decidimos ir dar uma volta pelos jardins de Yerba Buena, que ficam ali mesmo entre o MOMA e o Metreon, o cinema, e centro comercial e de entretenimento da Sony. Como é normal em todos os jardins norte-americanos há uma queda de água e um sítio para atirar moedas e pedir desejos. Esta queda de água é parecida com a da Expo 98, mas muito mais pequena e sem a mesma pujança, mas larguei uma moeda e pedi um desejo. Eu peço sempre coisas simples mas tão difíceis de serem concretizadas, que acho que estou a desperdiçar dinheiro. Mas, não vos vou dizer o que pedi, senão o desejo não se realiza.

Deitámo-nos na relva do parque e ficámos ali a tarde toda na conversa e apanhar sol como uns verdadeiros americanos. Ou alemães... Mas é tão bom e é pena que em Portugal não se faça o mesmo. Porque é que em Portugal se nos deitarmos na relva de um parque qualquer somos logo expulsos de lá? A relva serve só de efeito decorativo?

Mas, enquanto o Tiago ressonava entre duas conversas, a Mónica foi ver as horas da missa à igreja de St. Patrick, ali mesmo em frente, eu ia beber água ao bebedouro, para compensar a sandes de fiambre e o álcool da noite anterior, a Joana dormia e a Rita também.

Um grupo de jovens americanos alunos de uma qualquer escola de arte, como milhares deles que existem por aqui e que aproveitam qualquer ocasião para fazerem uma pequena performance, estavam a tentar fazer uma corrida de pintainhos. As crianças acumularam-se para ver aquele grupo de rapazes e raparigas de fato de macaco amarelo, ou vestidos de todas as cores e com o cabelo cortado das formas mais esquisitas e das cores mais variadas. Mas, a segurança do parque veio acabar com a coisa, porque era proibido animais no parque... Como se os pintainhos fossem atacar algum utente do parque. Mas, podiam sujar a relva onde estávamos deitados.

Só me arrependi uma centena de vezes de não ter levado a câmara fotográfica comigo, pois motivos coloridos não faltavam e a luz estava mesmo boa para umas linda fotografias.

No entretanto a Mónica e a Rita foram à missa e nós os restantes fomos para casa delas. O Tiago e a Joana iam dormir a Mountain View, mas voltavam no dia seguinte de moto para ver a Lesbian, Gay, Bi and Transgender Pride Parade.

Eu como não tinha nada para fazer, fui passear e ver o bólide a ver se estava tudo bem. Subi a Polk St. até à California St. e daí até à Webster St. Para quem não conhece, são quase 7 quarteirões, o que equivale a cerca de 2 quilómetros de ida e mais outro tanto de volta.

Mas, em Polk, quase a chegar a California, parei numa livraria de livros usados que se diz a maior e mais bem organizada de São Francisco. Não duvido, pois o número de prateleiras e de estantes fazia lembrar uma biblioteca e a limpeza e organização por temas fazia inveja à minha colecção de banda desenhada. E digo-vos que há quem me goze por aquilo estar tão organizado. Só o cheiro a mofo é que estragava um bocado o ambiente e estava-me a fazer impressão, para além de que estava com alguma pressa de ir até ao bólide e voltar a tempo de jantar e ir ao concerto dos Eels.

A California St. tem umas casas victorianas muito bonitas, depois de se passar a Van Ness e fui maravilhado a apreciar as vistas até a Webster. Mais uma vez me arrependi de não trazer a câmara, mas tinha que lá voltar quando fosse embora, portanto podia resolver a questão. Porém a luz podia não ser a mesma.

Quando voltei a casa da RM&P, estivemos a fazer o jantar enquanto eu limpava as lentes e a câmara, pois a coitada tem um ano e já sofreu tanto que estava mesmo porca. Já não me lembro bem o que foi o jantar, sei que foi frango, mas foi comido à pressa, pois já estava na hora do concerto. Mas, isso não fez com que soubesse bem, depois de uma tarde passada no parque e de uma caminhada como aquela.

Quando entrei no The Great American Music Hall, fiquei logo chateado. Então, não é que me ficaram com o bilhete. Eu que guardo religiosamente todos os bilhetes de concertos a que vou. Embora aqui os bilhetes sejam uma treta, pois são iguais aos bilhetes do cinema e não têm nada de especial... Mas, mesmo assim gosto de os guardar e tenho direito a fazê-lo. Mas, pronto, não ia bater no porteiro por causa disso e não ia deixar de ver o concerto.

A sala é linda. Mesmo! Parece um teatro e eventualmente já o foi. O trabalhado do telhado e dos balcões faz lembrar algumas coisas do São Carlos ou do Sá da Bandeira, o que aliás tem coisas em comum, pois o TGAMH já foi um bordel. Porém, esta sala é a mais pequena de todas as que fui, o que dá um ar acolhedor e bastante agradável ao ambiente. Uma coisa boa nos concertos aqui é que nunca se vendem bilhetes a mais e a sala apesar de esgotada estava bastante agradável e havia espaço para passear e apreciar as belezas da sala. Vou ver se levo uma câmara para a próxima, porque pelo que vejo toda a gente faz isso, por aqui.

Entra-se directamente para a sala de concertos, não há um corredor ou mesmo uma cortina que tape a sala do exterior. Apenas se sobe umas pequenas escadas e está-se de frente para o palco e da rua vê-se o concerto. A sala deve ter cerca de 50 metros de profundidade, desde a porta ao palco e em cada lado existem uns balcões género mezanino que são de uma beleza extraordinária e que estão assentes numas colunas de mármore. O chão é de madeira e brilhava como se de um espelho se tratasse. E ao centro da sala um candeeiro dá a luz suficiente para criar a atmosfera perfeita para se ver uma banda como os Eels, ou outra. Nas paredes haviam espelhos que me fizeram lembrar o lindo Café Magestic... Fiquei maravilhado! Voltarei lá em breve com a Cláudia, para lhe mostrar a beleza da sala. Vale a pena!

O pessoal estava todo sentado no chão à espera da primeira parte, quando entrei. Sentei-me e aguardei também. Fiquei a cerca de duas filas do palco que estava a pouco mais de um metro de altura do chão e que dava um ar de proximidade com o público extraordinário. Já fui a muitos concertos, mas estes concertos de bandas menos conhecidas e em salas pequenas são os melhores. Cada vez que vou a um concerto destes, lembro-me dos tempos em que comecei a sair à noite no Porto, onde cresci, e havia uma série de bares pequenos com bandas ao vivo, principalmente na Ribeira. Nessa altura haviam dezenas de bandas de garagem em Portugal e o rock estava a dar a sua segunda explosão. Ainda me lembro de estar aos saltos no micro-palco do Luis Armastrondo na Ribeira, com uns tipos desconhecidos que pareciam os Pogues portugueses e que faziam de qualquer concerto uma festa e que se chamavam Sitiados.

Ali a sala era um bocado maior e o palco não era tão pequeno, mas com a parafernália de instrumentos que o povoavam parecia bastante pequeno. À primeira vista era possível descortinar um contrabaixo, um piano género saloon, uma ou duas guitarras, dois violinos, uns saxofones de vários tamanhos, ferrinhos, bateria, tímpanos e um xilofone. Mas, durante o concerto passaram por ali, ainda além desses, marambas, um baixo, um banjo, um pífaro, uma flauta transversal, um trombone, uma trompete, um clarinete e umas duas guitarras acústicas e de diferentes formas. Era impressionante ver a quantidade de instrumentos que cada um dos intervenientes tocava.

Mas, já estou a pôr a carroça à frente dos bois, porque ainda não entrou o responsável pela primeira parte. 

A dada altura apagaram as luzes e anunciaram no sistema de som, que devido a um acidente de carrinha, a banda que iria fazer a primeira parte, não o poderia fazer. A tal banda imaginária, de seu nome Baby Rappers (violadores de criancinhas), tinha morrido toda num terrível acidente com a carrinha da banda e quem iria preencher o seu lugar era um dos roadies dos Eels, de seu nome Spyder.

Afinal a treta de que ele ia fazer a primeira parte era mesmo verdade. Entrou em palco com uma guitarra eléctrica e disse que os próximos vinte minutos eram dedicados à sua música e a algumas histórias da sua vida, de quatro anos na estrada com os Eels. A música era normaleca. Género cantor popular tradicional americano, misturado com country e rock. Nem sei bem do que falava mas era basicamente de amores não correspondidos.

Ao fim de quase um quarto de hora, parou, arrumou a guitarra e disse que ainda tinha cerca de quatro minutos, para nos contar umas histórias do Mr. E (vocalista e mentor dos Eels) e companhia. Avisou que as histórias mais interessantes e que metiam animais e sexo, não podiam ser contadas em frente aquela audiência. E, quando se preparava para contar a primeira história, tocou o telemóvel... Era o Mr. E a dizer que estava na hora de largar o palco e dar a vez aos Eels. Uma paródia muito divertida, que continuou durante o concerto todo.

O concerto começou com a entrada em palco do Butch, o baterista da banda, que estava vestido de freira, com chapéu e cruz ao peito. Começou por tocar tímpanos, enquanto o resto da banda entrava em palco. Uma tipa, que depois o Mr. E anunciou como sendo a Lisa Germano, uma importante personagem do universo 4AD nos últimos anos, entrou com uma vestimenta de renda preta, composta por uns calções e uma camisa de folhos, e tocou quase uma dezena de instrumentos, com mais predominância pelos violinos e ainda cantou. Os membros dos instrumentos de sopro entraram, um vestido com uma batina branca até aos pés e um turbante dourado e o outro de fato de cerimónia com cauda e tudo. O baixista e contra-baixista, vinha vestido à músico de saloon com colete e botas à cowboy.

Começaram com uma versão instrumental do "Novacaine for the soul", em que utilizaram quase todos os instrumentos que estavam em palco e que só era perceptível na melodia da guitarra e na parte em que o Butch gritava "Before I sputter out". Durou quase uns dez minutos, e no fim da mesma, entrou em palco o Mr. E, de braço dado ao roadie Spyder, como se fosse cego.

O concerto durou cerca de duas horas, e passaram por quase o último álbum todo, que eu ainda não conheço. Mas, ainda fizeram umas incursões ao primeiro "Beautiful Freak" e que fizeram as delícias do público presente. O Mr. E contava umas piadas de vez em quando, entre as músicas ou dizia uma graçolas, como quando apresentou a banda, e anunciou que o saxofonista tinha acabado o curso de não-sei-o-quê, naquele dia e que tinha a família entre o público, e dirigindo-se ao filho dele diz para ele ter esperança que o pai, um dia, ia deixar as drogas e que iria desempenhar as suas funções de pai condignamente.

Ainda tivemos direito a dois encores. E cada vez que o Mr. E saia ou entrava do palco lá ia o Spyder dar-lhe o braço e acompanhá-lo aos bastidores.

Num deles, quando estavam a tocar uma música que eu não conhecia, e que tinha um ritmo bastante forte, o Butch que estava na bateria e fazia a segunda voz, ficou subitamente a tocar sozinho, quando o Mr. E o resto da banda pararam de tocar surpresos com os berros que ele dava. Ele, supostamente fez que não deu conta e ainda deu mais dois berros antes de parar e reparar que estava a tocar sozinho e estavam todos a olhar para ele. Mais um momento hilariante.

Depois houve uma parte que supostamente foi uma piada, mas que tem algum fundo de verdade. O Mr. E disse que se recorda tristemente de todos os concertos que deu em São Francisco, porque no dia seguinte ao primeiro, a irmã dele morreu e no dia seguinte ao segundo, morreu a mãe. E, agora tinha sido acidente dos Baby Rappers... Mas a verdade é que a irmã se suicidou há uns dois anos e a mãe morreu no ano passado, o que influenciou bastante os últimos dois discos da banda, mas que não fez com que todo o concerto fosse um verdadeiro divertimento musical e cómico.

Ainda contou uma história de uma entrevista em Inglaterra em que lhe pediram para apontar o maior sucesso da banda que tivesse saído em single. E, ele apontou um tema que nunca tinha sido editado em single, mas que para ele era o maior sucesso deles... E assim, tocaram o maior sucesso que não foi single... Ah! Os tais ingleses passaram a música convencidos que era o single mais vendido da banda!

Quando o concerto acabou já estava a ficar cansado, pois as mazelas da noite anterior ainda estavam presentes. Mas o caminho até casa era curto... Era só atravessar a rua.

Ah! Devolveram os bilhetes à saída... Põem os bilhetes numa taça e cada um leva o que lhe apetecer, pois são todos iguais. Fiquei mais satisfeito.

E fui dormir, com os blues electrónicos dos Eels nos ouvidos...



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