TERÇA-FEIRA, 13 DE JUNHO DE 2000 C97
Sombra no Tamalpais - Fotografia de Rui Gonçalves

Tenho que vos pedir desculpas porque me esqueci de duas coisas importantes na última crónica. Não sei como, mas consegui esquecer-me de vos contar dois pormenores passados nessa semana. Se calhar até sei porque é que me esqueci... É tudo resultado do stress de acabar a apresentação para mostrar aqui em Los Angeles de onde vos escrevo isto, enquanto espero que os tipos da Silicon Graphics se lembrem de aparecer para instalarem as suas máquinas. Mas isso depois eu conto-vos com mais calma...

A verdade é que os últimos dias desta última semana foram um bocado stressantes, mas os da semana que vos contei na última crónica foram também puxados... Mas nada que me fizesse pensar que esta semana fosse como foi...  Isto fez com que as crónicas estejam atrasadas, mas espero contar-vos tudo sem me esquecer de nada, como na outra semana... Espero ter algum tempo mais calmo nos próximos dias, aqui em LA.

Pois bem, acerca das tais histórias perdidas:

Na quarta-feira, dia 31 de Maio, quando estávamos no Bar do Diogo, andava por lá um tipo forte de idade e cara de índio com uma bebedeira descomunal, pelo menos aparentemente. Pois bem, o índio bêbado decidiu meter-se com o pessoal e a dada altura apanhou o Nuno. Segundo o Nuno foi um momento irreal... O Shaman disse-lhe que em tempos tinha conhecido um português de nome Mota e no entretanto perguntou-lhe "Mr. Moura isn´t it?"... O Nuno disse que ficou sem palavras. Nunca tinha visto tal índio na vida e o shaman sabia o nome dele... Ficou tão pasmado e assustado que literalmente fugiu do índio bêbado. Acho que eu tinha-lhe sacado mais uma série de informações... Não se podem desperdiçar oportunidades destas. São verdadeiras coisas que ninguém acredita...

A outra história perdida é menos importante em termos de acontecimentos e experiências a recordar mais tarde, mas é grave eu simplesmente ter-me esquecido dela. Pois bem, acontece que na última crónica disse-vos que, na sexta-feira, voltei para casa ao fim do dia, liguei a televisão, deitei-me na cama e gozei uma cerveja... Pois é, isso é tudo menos verdade. A verdade é que quando cheguei a casa estava realmente com uma vontade de bater em alguém e saí de casa para ir deitar essa raiva por algum lado, e escolhi ir suá-la um bocado para o monte Tamalpais.

Tinha convidado o pessoal todo a irem caminhar no sábado (já vos conto) para o monte Tamlpais, mas como estava com uma raiva interna, tive que ir ver o que me esperava no dia seguinte. Assim, calcei as botas, peguei na câmara fotográfica, no mapa e arranquei no bólide da Mariana para a montanha. Aquilo é mesmo ao lado de minha casa, mas como é uma área protegida as estradas são poucas e tive que ir dar uma volta pelo escritório. Para a próxima vou já para o trabalho de botas e com a câmara.

Cheguei ao Pan Toll, o ponto de partida da caminhada agendada para o dia seguinte cerca das 7h30m e decidi andar cerca de meia hora na direcção certa e depois voltar para trás, uma vez que o parque fecha os portões cerca das 9h da noite e quem está, está, quem não está estivesse...

Entrei no Trilho Matt Davis. Não me perguntem porque é que se chama assim, mas suponho que deve ser o nome de quem deu dinheiro para a sua criação e manutenção. Andei cerca de 1,6 milhas (2,6 km), sempre por um trilho de pé-posto, primeiro por uma zona arborizada, seguindo a meia encosta numa zona escarpada e com alguns pequenos ribeiros que cruzava e que desciam encosta abaixo. O trilho estava em excelentes condições, haviam algumas pontes que atravessavam os tais pequenos ribeiros que nesta altura estão quase secos, haviam mesmo zonas em que haviam estruturas de sustentação do trilho de modo a não haver derrocadas e notava-se que o trilho era bastante usado, mesmo que aquela hora só tenha visto duas pessoas. Mas, no início do trilho havia um sinal que avisava para o perigo de encontros com pumas e com cascavéis. Dos primeiros nem sinais, mas das malditas cobras viam-se bastantes marcas a atravessar o trilho, embora eu não tenha visto nem uma.

As árvores ao longo do trilho tinham as mais diversas formas. Haviam mesmo algumas caídas que continuavam a crescer em direcções imprevisíveis. Mas, de repente o arvoredo acabava e abria-se para uma zona de erva dourada. Tudo era dourado e podia-se apreciar as vistas. Nas costas ficava São Francisco que aparecia entre duas montanhas e que desaparecia por detrás do nevoeiro, que aquela hora fazia valer a sua habitual presença na cidade. À esquerda o pacífico até perder de vista.

Porque é que o oceano é tão bonito se é uma estrutura repetitiva e extensa sem nenhuma diversidade? Se calhar é por isso mesmo... É uma massa imensa de algo que gostamos e tememos ao mesmo tempo.

Mas voltando ao trilho. No ponto onde estava via em frente Stinson Beach, que se estendia numa franja de areia entre a lagoa de bolinas e o pacífico, mesmo em cima da falha de S. André... E o sol a pôr-se por detrás do parque de Point Reyes National Seashore. Tive que parar para apreciar as vistas e porque sabia que as vistas não iam mudar muito se eu continuasse pelo trilho. Tirei algumas fotos e senti-me uma pessoa diferente... Já tinha esquecido os problemas do trabalho e a vontade de bater em alguém tinha-se ido. É tão bom poder ter estes escapes e saber usá-los, quando estamos sós e longe da família e dos amigos, aqueles que nos aturam nestas ocasiões.

Quando voltei para trás começou a anoitecer e no lusco-fusco algumas formas assustavam, pois um ramo castanho com um pássaro preto pousado a mexer-se, parece um puma deitado a mexer a cauda... Mas não passavam de ilusões... Bem, a dada altura apareceu um veado pequeno a comer, mas como estava no fim (ou início) do trilho e estava descampado, a luz já era mais intensa e não me assustei.

Agarrei no bólide e desci para Stinson Beach, por uma estrada que nunca tinha feito. O vidro da frente estava tão sujo que não via nada. Tive que parar para deitar o resto da água que tinha numa garrafa para o limpar. A dada altura na descida, vejo no espelho retrovisor um vulto castanho a atravessar a estrada atrás de mim. Como ainda estava a pensar nos pumas e não queria perder a oportunidade de ver um, voltei atrás... Mas era um veado. Mais um veado, na terra deles...

Nessa altura, sim, voltei para casa, fiz o jantar, que acompanhei com um copo de vinho, liguei a televisão, deitei-me na cama e gozei a minha companhia numa sexta à noite, sozinho em casa... Com uma cerveja.



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