C82 QUINTA-FEIRA, 11 DE MAIO DE 2000
Ao atravessar a ponte - Fotografia de Rui Gonçalves

Esqueci-me de vos contar que a semana passada descasquei todo na testa e no nariz. Assim na quarta começou a descascar na testa e parecia que tinha lepra, na quinta parecia uma das personagens do Star Treck com uma falha mais clara a meio da testa e na sexta parecia que não tomava banho há meses e tinha umas manchas de encardido nas extremidades da testa. No sábado já estava mais normal e a humidade do dia ajudou, mas mesmo assim o nariz parecia que tinha sardas... É o que dá andar a velejar à hora do almoço sem protector solar.

Domingo, 7 de Maio de 2000

Acordei à hora normal de um dia de trabalho. Porque é que quando me deito tarde o meu despertador biológico não desliga e me deixa dormir até tarde? Virei-me para o outro lado, depois para outro, e de volta ao mesmo. A chuva caia lá fora e batia na janela... Não apetecia mesmo levantar. A cabeça estava pesada e a boca seca, como se estivesse a lamber papel mata-borrão. Afinal a mistura das Super Bocks e o vinho ao jantar produziram uma reacção pouco agradável no meu estômago e metabolismo.

Fiquei na cama até serem horas de me apetecer levantar. Afinal era domingo e com a chuva todos os planos com o Ben ficaram em águas de bacalhau.

Comi o pequeno-almoço e fui tomar café e às compras, no centro comercial lá da frente. Entrei no Good Guys uma loja de electrodomésticos e estavam em saldos... Fantástico! É pena que as câmaras de vídeo sejam todas NTSC e que os outros electrodomésticos sejam para 120v. Mas pronto sempre deu para dar uma vista de olhos e trazer um filtro polarizador novo para a minha câmara...

Quando voltei resolvi dedicar-me ao lixanço da bicicleta do Jesse. Liguei o portátil à Internet, pus uma músiquinha e sentei-me a lixar a bicicleta.

Já estava quase a acabar, quando a Cláudia se ligou no ICQ. Tinha chegado de visitar a minha sobrinha em Vila Real e de uma ida ao cinema com os nossos amigos João e Rita... Estivemos na conversa um bom bocado...

No entretanto também apareceu no ICQ, a Mariana, com quem tinha combinado (mais ou menos) ir jantar, porque ela ia jantar com uns tipos da revista Ideias & Negócios, ou coisa parecida, e não queria ir sozinha. Eu tinha acedido às pressões, mas agora que estava em casa, de boxers, sentado no chão a lixar a bicicleta e a ouvir a chuva lá fora, não me apetecia muito ir para São Francisco... Mas o que é que eu tinha a perder? Nada! Até podia ser uma boa oportunidade de arranjar mais uns contactos... E jantar à borla!!!

Tomei banho e pus-me a caminho. O carro estava na reserva, mas aguentava-se até lá e depois metia-se gasolina, porque já estava atrasado.

Apanhei a Mariana em casa e fomos para a Van Ness, para o Cathedral Hill Hotel, onde os tais jornalistas estavam hospedados. Quando chegámos, já o Rui estava à nossa espera no lobby, com uma cara de quem precisava era de ir dormir. Mais um ataque do jet-lag...

Depois de se juntarem a nós mais três tipas, partimos para Valencia com a 16th, para irmos jantar a um restaurante espanhol, mesmo ao lado do Ti-cus de domingo, dos crépes. Comer umas tapas... Já me estava a babar!

A Mariana, o Rui e mais uma tipa foram de taxi e eu levei as outras duas no bólide da Mariana. Arranjei estacionamento mesmo em frente ao restaurante. Que luxo!

Comemos Calamares, Camarões, Amêijoas, Tortilha e Sangria. Ficámos na conversa, enquanto comíamos. Afinal se eram jornalistas, não estavam ali com esse propósito, aparentemente. Estavam ali para uma conferência sobre Comunidades Virtuais e estavam como membros da gestão do Terravista. A conversa foi agradável e a comida estava excelente.

A dada altura entrou um guitarrista vestido à espanhola e uma tipa com castanholas e vestida à sevilhana. Lembram-se de eu falar da bailarina com barriga, que vi na quarta feira anterior, num restaurante em Haight? Pois bem, esta era tudo menos espanhola e apesar de dar bem às castanholas, estava longe de ter a garra das sevilhanas. Parecia que se repetia sempre no mesmo passo... Isto para não falar no guitarrista que não tocava guitarra. Juro! O tipo passou o tempo a bater na caixa da guitarra com os dedos e a olhar a tipa com ar de carneiro mal morto. Mas os outros clientes (americanos) gostaram e pediram bis... Quem não conhece é como quem não vê, já diz o povinho.

Acabámos e voltámos ao hotel. Bebi um porto oferecido pela Terravista, que assim paga o esforço de eu manter lá a minha página pessoal.

A dada altura já estavam todos cheios de sono, devido ao jet-lag e eu e a Mariana decidimos deixá-los dormir.

Fui levar a Mariana a casa e segui no bólide emprestado na reserva. Tinha que meter gasolina. Dei o U-Turn em Divisadero e fui por Divisadero até à Lombard. A bomba logo abaixo da casa da Mariana estava sem gasolina em metade das bombas e as outras estavam cheias de gente. Decidi que mais à frente haveria outra e aí punha gasolina.

A próxima foi já na Lombard e era do canto contrário da estrada. Não dava para lá ir, segui para a ponte naquela de que até à entrada da auto-estrada existiria outra bomba. Mentira. A dada altura ainda pensei sair antes da ponte em direcção à 19th Avenue, mas acreditei que passava a bomba e que conseguia chegar a Marin City, onde há um bomba com gasolina a $1.59 o galão...

A dada altura, mesmo depois de já não haver hipóteses de voltar atrás, nem quase de parar, reparo que o relógio digital no painel deixou de dar horas e marcava um 16, que eu não sabia o que queria dizer. Acreditei que seriam o número de milhas que ainda podia andar... Até passar para 17... Era impossível aumentar.

Segui, entrei na ponte e o carro começou a subir a pequena elevação que a ponte faz no meio do tabuleiro... E o carro começou a travar, e não respondia quando acelerava. Estava sem gasolina na entrada do tabuleiro da ponte, logo a seguir à curva das portagens. Lindo...

Liguei os quatro piscas, vesti o impermeável e desatei a correr em direcção às portagens, à espera que alguém lá me pudesse ajudar.

Os passeios da ponte já estavam vedados àquela hora. Havia um portão com quase dois metros de altura que me proibia de atravessar, e ainda por cima tinha arame farpado para impedir que o saltassem. Resolvi tomar o parapeito que separa o passeio da estrada, mas o trânsito era muito e estava muito perto, pelo que tive que me agarrar bem à rede e quase rastejar na vertical encostado à mesma. Consegui passar a vedação, mas o importante era chegar aos escritórios da ponte... Que eram do outro lado das portagens.

Como só se paga portagem no sentido de entrada na cidade, no sentido onde eu estava os carros passavam muito depressa, pelo que tive que passar por debaixo da ponte. Encontrei uma garrafa de água vazia na entrada e levei-a comigo, pois ainda podia ser precisa.

Começava a achar que nada pior me podia acontecer e estava a ficar chateado com a minha estupidez e confiança, que aliás naquela altura já não era nenhuma. Imaginem o que é ficar sem gasolina no meio da ponte sobre o Tejo, num carro quase ilegal e sem carta de condução americana e sem passaporte... Só mesmo a mim!!!

Mas, afinal nem tudo estava mal... Podia estar pior! Porque nessa altura, enquanto eu corria sob o túnel debaixo da auto-estrada, a bater com a garrafa de água vazia na parede, irritado... Apareceu um carro da polícia.

Perdido por cem perdido por mil. Eles já me tinham visto e já estavam desconfiados, pelo que resolvi fazer-lhes sinal para pararem e ajudarem-me... Pararam no fim do túnel e eu corri a ter com eles. Expliquei que era estrangeiro e que tinha ficado sem gasolina no meio da ponte, num sítio algo perigoso.

Eles comunicaram imediatamente para os serviços da ponte e disseram para entrar dentro do carro. Um perguntou-me se tinha armas ou facas, e eu levantei os braços e deixei que me revistassem. Depois é que me lembrei que tinha um pequeno canivete, e para que não houvesse mal entendidos dei-o para a mão do polícia.

Eram dois polícias bastante novos. Não deviam ter mais de 25 anos, e como diz o Ben, deviam de fumar umas coisas. Um era da minha altura e conduzia, o outro era baixinho e usava umas calças de impermeável amarelas (iguais às minhas), ambos eram loiros... Deviam de fazer surf. O baixinho foi o que me revistou...

Depois havia o problema que traziam uma série de coisas no banco de trás e eu não podia me sentar lá... Não percebi o que lá estava, mas pareciam computadores portáteis ou coisa parecida. Então eu fui à frente e o baixinho foi atrás, o que suponho é contra o código deles, mas eu já estava ilegal e já...

Ao chegar ao carro, o polícia condutor disse-me para eu dar a volta à chave e seguir as ordens que ele me dava pelo altifalante. Iam-me empurrar até ao fim da ponte... Vocês não estão bem a ver. Os carros da polícia aqui têm faróis potentes virados para a frente, altifalantes que se devem ouvir a centenas de metros de distância e no pára-choques têm duas barras verticais com uma estrutura de borracha anti-choque.

Agora imaginem eu num Golf GTI sem gasolina, a ser empurrado por um carro da polícia no meio da Golden Gate Bridge... Não! Foi emocionante.

Liguei o carro, e eles encostaram levemente a frente do carro deles à traseiro do bólide da Mariana. Começaram a acelerar e lá fui eu, devagar, mas o carro foge um bocado para os lados e é preciso estar atento. No fim da ponte, julgavam que a descida era suficiente para me fazer chegar ao Vista Point, um parque que os turistas usam para ver a ponte e São Francisco. Mas o carro desacelerou e começou novamente a parar, pelo que encostaram de novo só para chegar ao parque.

No entretanto iam-me a dizer para virar para o parque e ter cuidado com a curva. Não traziam as luzes acesas, mas eu levava os quatro piscas... Deve ter sido engraçado para quem passava ver aquilo.

Quando virei para o parque, os travões não travavam. Como não havia motor, os travões estavam perros, como se o óleo não circulasse. Bombeie o óleo duas ou três vezes, carregando e largando o travão... O carro fez a curva, bem e parei no primeiro sítio possível...

Oiço vindo do carro da polícia, em alto som "What a ride, ahm?" e saiem os dois polícias e perguntam-me "That was fun, or what?", com um sorriso como se tivessem divertido muito. Tentei ser simpático e disse que sim, que foi emocionante.

E quando esperava pelo momento de me pedirem os documentos e começarem a arranjar problemas, dizem-me que já vem o reboque dos serviços da ponte com gasolina... Não podia crer!!!

O reboque chegou e o homem perguntou-me se tinha $4. Eu até lhe dava $10 se os tivesse naquele momento, mas a verdade é que tinha só $6... O homem, um negro de 50 anos, não estava muito para conversas, nem muito divertido. Despejou 2 galões (7 litros) para o depósito, disse-me qual a bomba mais próxima, recebeu os $5 e foi-se embora...

Agradeci à polícia por tudo e entrei para o carro. Pegou logo, mas levou um bocado para pararem os soluços... Quando ia arrancar, não reparei por onde tinha ido o reboque e resolvi fazer inversão de marcha.

Mais uma asneira, e oiço do carro da polícia, através do altifalante "Wrong way, follow the tow car"... E pronto fiz um volta completa, entrei na auto-estrada.

Não meti gasolina. Queria era me deitar, depois de tanta aventura...



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