SÁBADO, 3 DE MARÇO DE 2001 V1

Ver o Mundo, Ver Portugal


Caros Amigos...


Há um ano atrás encontrava-me na Califórnia, Estados Unidos da América, na área da baía de São Francisco, a estagiar numa empresa em Mill Valley que desenvolvia software de criação, tratamento e visualização de objectos tridimensionais. O meu trabalho consistia em testar uma nova aplicação, direccionada à indústria automóvel, de apresentação de protótipos virtuais em tamanho real, com possibilidade de navegação e em estereoscopia. Mais tarde, fiz algumas demonstrações desse mesmo software em alguns pontos dos Estados Unidos, o que me permitiu aperceber de algumas das diferenças que existem entre os diferentes Estados. Para além disso tive a sorte de poder fazer duas semanas de férias que me levaram a visitar grande parte do sul do estado da Califórnia, parte do Arizona, do Nevada e do Utah.

Eu vivia a Norte de São Francisco, no Concelho de Marin, uma zona privilegiada. Como era uma zona preservada, no fim dos anos 60 os famosos hippies de São Francisco ocuparam-na à procura do contacto com a natureza, mas como a construção é limitada logo tornou-se

Ao Atravessar a Ponte - Fotografia de Rui Gonçalves

muito cara. Marin é, assim, uma região com grande qualidade de vida, pela preocupação na sua preservação, mas ao mesmo tempo, muito cara. Não é de admirar, portanto, que habitem nesta zona a maioria dos membros de administração das principais empresas da região, e que vivam em quase perfeita harmonia com a natureza que os rodeia, com os hippies e as suas filosofias de vida.

A meio do Tamalpais - Fotografia de Rui Gonçalves

Neste ambiente, o nível cultura é elevado e que o conhecimento sobre Portugal é notório. A maioria dos comentários sobre o nosso país e sobre a nossa maneira de ser e viver, que tive a oportunidade de escutar, foi de que éramos um país muito bonito, muito menos estragado que Espanha, ainda no seu estado "bruto" e, que os portugueses eram muito simpáticos e prestáveis.

É normal ver Vinho do Porto nas prateleiras dos supermercados e nas listas dos restaurantes, como se fosse quase um produto de luxo, o que me permitiu

fazer alguns brilharetes, com alguns colegas, ao oferecer garrafas de Vinho do Porto, que a minha esposa me trouxe de Portugal, nas suas visitas. Porém, também é normal ver Vinho do Porto com origens tão diversas como África do Sul, Austrália ou mesmo do norte da Califórnia, de Napa ou Sonoma. Aliás, um outro estagiário do Contacto na região a sul de São Francisco, chegou a ouvir um comentário de que os portugueses imitavam um famoso vinho de Napa, só que lhe punham um "o" no fim do nome para o diferenciar. Esse vinho com origem em Napa, era o "Port Wine".

Mas, esta história passou-se a sul de São Francisco, no chamado Silicon Valley, onde a vida é levada em função do trabalho a cumprir em prazos bem definidos e na maioria das vezes não há tempo para se adquirir conhecimentos para além dos estritamente necessários ao desempenho eficiente no local de trabalho. Isto já não é tão visível em São Francisco e em Marin, onde a vida é levada mais devagar.

Em São Francisco, os jovens têm uma preocupação cultural, uma vontade de conhecer sempre algo mais e a multi-culturalidade germina em todos os espaços possíveis, por isso não é de admirar que na minha faixa etária, seja relativamente fácil encontrar quem já tenha viajado pela Europa. Nos Estados Unidos, não é possível esquecer a nossa identidade europeia, porque ela existe e é bem perceptível na maneira como nos vestimos e na maneira de ser e estar, em confronto com a identidade americana. Os norte-americanos têm uma inveja enorme do nosso património e da nossa história, esquecendo-se que, em parte, também é a deles.

O Homem e o Banjo - Fotografia de Rui Gonçalves

Dos norte-americanos que conheci e que já tinham estado em Portugal, todos, exceptuado um, eram da opinião que Portugal era um país incrivelmente bonito, baratíssimo e povoado de gente desinibida e que se desfaziam em simpatia. O único que não expressou esta opinião sobre Portugal, apenas tinha entrado em Portugal por umas horas e tinha estado em Miranda do Douro, acompanhado por uns amigos Espanhóis. A opinião dele era de que em Portugal não se passava nada e que tínhamos parado no tempo. Depois de conhecer mais alguns portugueses, já mudou de opinião e em breve terá a hipótese de a confirmar in loco, quando cá voltar.

Golden Gate ao Pôr-do-sol - Fotografia de Kenneth Pimentel

Mas, dos que já cá tinham estado, a opinião com mais valor foi dada por dois amigos, um mecânico e outro empregado agrícola, que tinham decidido viajar até ao nosso país, depois de verem um programa de televisão sobre a nossa história, isto quando já tinham decidido visitar a Grécia. Ficaram surpreendidos com a razão inversa entre o tamanho do nosso território e a dimensão da nossa história e não ficaram em nada defraudados com a visita. Vinham de França, e entraram em Portugal por Viana do Castelo, fizeram a costa toda até ao Algarve e acabaram as férias em Lagos. Quando souberam que era português não me largaram a noite toda com histórias e aventuras, como

se ainda estivessem mergulhados na nossa cultura. Foi um momento de grande sentimento patriótico.

Uma amiga que vive em São Francisco contou-me que, um dia quando ia despejar o lixo, cruzou-se com um vizinho e que trocaram algumas frases. Quando ela lhe disse que era portuguesa, ele começou a cantar, num sotaque quase imperceptível, o verso "Não há estrelas no céu!". Mais tarde tive o prazer de ouvir o mesmo cantar e fiquei impressionado como é que do outro lado do mundo alguém ainda se lembraria daquela música.

A situação em que fiquei mais surpreendido, foi uma noite, depois de uma regata no veleiro do meu chefe na empresa (que era neto de portugueses, mas que não sabia nem compreendia o português), quando um dos membros da tripulação se referiu ao facto de eu ter que me retirar antes do jantar a bordo, com a interjeição "Mais fica!", em português limpo e claro. Depois disto tive que ficar para jantar, pois (para além de gostar de sushi) queria saber a razão de tal conhecimento acerca da nossa língua.

O nosso timoneiro da regata, tinha crescido algures na

Detroit ao Pôr-do-Sol - Fotografia de Rui Gonçalves

zona central da Califórnia, predominantemente agrícola (e onde nasceu o meu chefe), onde os portugueses eram muitos e tinha como vizinhos uma família de portugueses com sete filhos, pelo que era normal ouvir-se tal interjeição quando algum faltava às refeições. Para além disso trabalhava com várias empresas de fogo artifício, quase todas com origem em famílias de emigrantes portugueses, e na maioria muito profissionais. Acabámos a refeição com um Vinho do Porto.

São Francisco - Fotografia de Rui Gonçalves

Aliás as marcas de emigrantes portugueses na região são bastante perceptíveis, desde São José, onde existe uma grande comunidade portuguesa, até Napa, a região do vinho, passado pela zona central da Califórnia, onde cheguei a ver uma praça de touros com bandeira portuguesa e onde soube que se usavam bandarilhas com velcro para não ferir o touro.

Mas, este conhecimento acerca de Portugal e dos portugueses, não se estende a todo o território, pois quando estive em Detroit no estado de Michigan, fui várias vezes confrontado com alguma ignorância

acerca do nosso país. No período de três dias em que lá estive, tive como comentários ao facto de ser português frases como "Eu tenho uma amiga Venezuelana" e "A minha cantora preferida é a Elis". Mas, depois de explicar que Portugal e Brasil eram coisas diferentes, as pessoas ficavam algo constrangidas e não mais falavam em Portugal, possivelmente por ignorância.

Estas diferenças entre norte-americanos são bastante perceptíveis. E, se num mesmo Estado, como na Califórnia, a diferença entre a população do Norte e do Sul é bastante acentuada, as diferenças entre nós, portugueses, e os norte-americanos são por vezes chocantes.

Os norte-americanos em geral são muito individualistas e muito difíceis de cativar como amigos, mas, no caso dos californianos, são muito sociáveis e de fácil comunicação. É extremamente fácil, e até normal, sair à noite, entrar num bar em que não se conhece ninguém e falar com toda a gente. Apesar de serem pouco expressivos e ficarem impressionados com o modo como usamos as mãos para complementar a fala, são bastante extrovertidos e simpáticos.

Porém, esta simpatia é na maioria das vezes uma falsa simpatia. Os funcionários de lojas, hotéis ou centros de recepção, são extremamente simpáticos, mas quando a mesma simpatia se repete dia após dia, começa a parecer hipocrisia. Eles são pagos para serem simpáticos, mas para quem está de visita e não tem que conviver diariamente com isso,

Gay Parade Romeo Must Die - Fotografia de Rui Gonçalves

é extremamente agradável e útil.

Devido ao seu individualismo é normal serem extravagantes para se fazerem sobressair, mas numa sociedade onde todos são diferentes é muito difícil ser mais diferente do que os outros. Mesmo assim era normal ser reconhecido como estrangeiro, e muitas vezes europeu, só pela maneira de vestir.

Pernas na Janela em Haight - Fotografia de Rui Gonçalves

Mas, na maioria das vezes a roupa que as pessoas envergam são o menos importante para que não se sintam mal perante a sociedade. Os norte-americanos prezam as pessoas pelas suas qualidades e pelo seu desempenho. A classe social e a maneira como se vestem são, na maioria das vezes, ignorados. Era normal, na minha empresa, os clientes serem recebidos por alguém em calças de ganga e de meias. Muitos dos meus colegas de trabalho estavam no local de trabalho como se estivessem em casa e, é cultura da empresa que assim seja.

A diversidade é latente em tudo na sociedade norte-americana. As escolhas num normal café são imensas, mas se isto impressiona, também é agradável, pois assim é possível provar e experimentar diversas coisas a que normalmente não teríamos acesso. Porém, chega a ser ridículo, quando na escolha de uma salada nos é perguntado se queremos o tomate cortado às rodelas ou aos quadrados. Ou mesmo quando pretendemos pedir cheques e demoramos uns bons vinte minutos a escolher a ilustração de fundo.

Ao contrário dos portugueses os habitantes de São Francisco e Marin prezam mais o espírito que o material. E, para muitos a máxima "corpo são em mente sã" é um objectivo de vida. São imensos os parques naturais na zona, os ginásios e é normal encontrar gente de todas as classes, etárias e sociais a praticar desporto ao ar livre.

Mas, o mais impressionante é a quantidade de produtos para dietas e para a cultura corporal que se vendem no supermercado. Uma secção de cereais num supermercado californiano ocupa uma área impressionante, o leite existe em pelo menos cinco níveis diferentes de gordura e o nível de gordura dos produtos é impressa em letras gordas nos rótulos.

Mas apesar desta preocupação, e por vezes fobia, pela procura do corpo são torna-se ridícula e provoca alguns problemas de inibição. Como é sabido, os Estados Unidos, são um país de costumes conservadores, e por essa razão, o nu é quase uma coisa proibida e o corpo um mistério para a maioria dos jovens norte-americanos. Foi impressionante para alguns o facto de, quando estiveram em Portugal, conhecerem umas raparigas num bar à noite, e que no dia seguinte estarem com eles na praia a fazer topless, sem qualquer inibição ou receio. Se isto lhes provocou espanto a eles, aos amigos que nunca tinham saído dos Estados Unidos, a situação pareceu impossível.

Chinatown - Fotografia de Rui Gonçalves
A Bandeira e a Ponte do Ferry de Sausalito - Fotografia de Rui Gonçalves

Mas, o que mais me surpreendeu nos norte-americanos foi a dificuldade que têm no contacto físico com o próximo. Mesmo amigos de longa data mal têm contactos físicos e, o facto de nós, portugueses, passarmos o tempo todo aos beijinhos, também os impressionava. O aperto de mão é algo que raramente se usa, só em casos de celebração de negócios. O cumprimento normal entre dois amigos é um abraço, mas um abraço distante em que os intervenientes mal se tocam. Os beijos são quase tabu. Um amigo canadiano dizia que nós portugueses éramos muito mais honestos nos nossos sentimentos, se gostamos de alguém tocamos-lhe como se fossem parte de nós, e

se não gostamos nem lhe dirigimos a palavra. Os norte-americanos estão algures no meio termo, aparentemente mais tolerantes, mas ao mesmo tempo mais distantes.



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