C34 QUINTA-FEIRA, 24 DE FEVEREIRO DE 2000
Água Corrente - Fotografia de Rui Gonçalves

Terça-feira, 22 de Fevereiro de 2000

Vim para o escritório na Vaynessa, estava uma ventania tão grande que numa parte do caminho, a descer, que eu vou aos 40 km/h (não digam nada mas é excesso de velocidade para a zona) não cheguei aos 20 km/h. E na parte plana, passa uma tipa por mim a correr e perguntou-me se eu não estava a andar para trás. Já fiz melhor algumas subidas.

Mas como havia a promessa de chuva decidi trazer o impermeável na mochila. Ainda bem, porque quando sai ao fim do dia, não chovia, o céu caia às postas.

Entre ir a pé até Marin City que são 20 minutos a pé, para apanhar o autocarro ou montar a Vaynessa e fazer 25 minutos de pedalada até casa... Tudo isto debaixo de chuva, sem guarda chuva, que dá um jeitaço na bicicleta. Mas havia o fato impermeável, mas tinha-me esquecido das luvas.

Optei por ir na Vaynessa, uma vez que a chuva abrandou. Digo-vos que o impermeável foi a melhor compra que eu fiz desde que aqui cheguei. Não entrou agua em lado nenhum, mesmo depois de 25 minutos debaixo de chuva e a andar depressa. Só encharquei as botas e a mochila, mas nada de grave, comparado com o gelo que fiquei nas mãos. Nunca mais me esqueço das luvas.

O Singh finalmente desligou o computador. Ao fim de 9 dias, fantástico. Como é que o Windows 95 conseguiu não rebentar... Agora compreendo porque é que aquilo estava avariado, quando cheguei.

Quarta-feira, 23 de Fevereiro de 2000

Acordei decidido a dar a volta à minha vida. Pus o despertador para mais cedo e não fiquei na ronha para me levantar.

Sai cedo e cheguei cedo ao escritório... Peguei no trabalho como nunca. Agarrei em código dum lado, pus noutro, compilei, linkei, alterei, voltei a compilar, vi os resultados... Tudo corria bem... Ate' um certo momento...

As coisas começaram a bater mal. Não consegui perceber a razão. Bati com a cabeça, mas não aguentei mais e fui dar uma volta.

Peguei na Vaynessa e fui por Tennesse Valley até ao Pacífico. Estava um belo início de tarde, o sol estava alto e apesar da brisa fria do mar até que se conseguia andar de mangas de camisa. As aves de rapina rondavam no ar, eram pelo menos uma meia dúzia. Não sei o que é que elas comem, mas se eu fosse uma das pequenas aves aqui da zona, não gostava tanto daquela visão. Bem, também é uma questão de probabilidades, se há tantas aves, a probabilidade de ser comida diminui... Reconfortante!!!

Segui a estrada até ao parque de estacionamento à entrada do Parque de Recreio de Marin. Com muito cuidado, entrei em terra, para não me sujar com a lama, pois estava vestido normalmente e ainda ia para SF essa tarde.

Numa descidita, larguei os travões e facilmente a querida Vaynessa chegou aos 50 km/h, suponho que não existe limite de velocidade naquela zona, mas não parei para perguntar... Aliás porque não havia ninguém.

Cheguei à praia. O mar estava bravo e com o degelo e as chuvas, os rios que dão à baía trazem montes de porcarias, como terra e troncos, que depois de serem levados para o mar, vem dar à praia. A areia estava castanha e cheia de troncos. Antes de chegar a areia há um lago que estava a transbordar para a praia, tal era a quantidade de chuva que tinha caído nos últimos dias.

Imaginem a praia do Carvalhal na Zambujeira do Mar, mas com metade do tamanho e com um vale verdejante por detrás. Só faltava um bar como o do Carvalhal.

Sentei-me num banco a apreciar o mar. Ao longe passava um cargueiro na sua marcha lenta para norte e ao fundo via-se a zona sul de SF. Não subi as escarpas porque não quis deixar a Vaynessa sozinha... Eu também não gosto de estar sozinho e não gosto que me abandonem.

Só porque ela não podia subir (é vedado o transito de bicicletas, não sei se à mão se pode ou não) não a podia abandonar... E precisava de alguém com quem conversar.

Depois de ter refrescado a cara, voltei. Pelo caminho alguém tentava que a coruja que vive lá num eucalipto, aparecesse, para lhe tirar uma foto. Um tipo que passava disse-me que a coruja já lhe tinha atirado uma cobra quase para cima. Julgo que foi sem intenção. O tipo perguntou-me se o meu guarda-lamas (fender) me protegia da muita lama que por ali havia... Só lhe disse que esperava que sim. Riu-se. Mongo!!!!

Fui buscar o Guardian, um dos jornais de actividades lúdicas grátis de SF e cheguei ao escritório quase uma hora e meia depois de sair. Encontrei-me com o Ken, que acabava de chegar de Detroit, no corredor e estive-lhe a contar os progressos da manhã. Ficou contente de ver que eu era capaz de improvisar e que estava a progredir no trabalho... Enganei-o bem! Ahm!?! Se calhar não... Sou se calhar muito exigente comigo.

Falei com a Cláudia, para ver se animava e sai para SF. Tinha combinado encontrar-me com o Jorge na porta da Amoeba em Haight para irmos ver uma performance acústica do Lou Barlow dos Folk Implosion grátis que estava marcada para as 6h da tarde. Mas o Jorge telefonou para a KUSF (Radio Universitária de São Francisco) para reservar lugar e disseram-lhe que havia mais duas actuações, uma às 8h e outra às 10h.

Ele reservou para as 8h e combinámos encontramo-nos às 19h45m.

Cheguei adiantado, como é costume... Devo ser masoquista e gosto de esperar. Dei uma volta pela a Amoeba e percebi que não havia nenhuma actuação às 8h, como tinham dito ao Jorge. Devem ter gozado com a cara do pessoal. Comprei um CD do Moby... E já me arrependi. Comparado com o "Play"... Não há comparação possível.

Saí e fui ver se o Jorge chegava. Fui comprar uma cervejita para beber, como combinado. Comprei um 6-pack de Budweiser. Enrolei a saca da Amoeba na lata e bebi a primeira lata. Sabem que aqui não se pode beber álcool na rua... Poder até se pode, mas com o rótulo escondido. Daí ver-se tanto homeless com uma saca de papel com uma garrafa de vinho, whiskie ou cerveja lá dentro. Assim, lá estava eu de mochila às costas com uma saca de papel que embrulhava um lata de Bud na mão, em frente a Amoeba à espera do Jorge.

Passou um homeless que andava a pedir e olhou para mim e a rir-se diz, como se tivesse a adivinhar o que eu lhe diria se me pedisse a mim: "Don't ask me, I ain't got no penny!"... Pelos vistos já eram um homeless, até tinha um saco cama na mochila e tudo.

O Jorge não chegava e bebi a cerveja dele e entrei na Amoeba a ver se afinal havia alguma coisa ou não... Nada! Decidi vazar. Bebi mais uma cervejita e caminhei pela Haight até ao Buena Vista Park.

Ofereceram-me droga, pediram-me cigarros, chamaram-me irmão... É tão fácil ser homeless nesta cidade. E bêbado... É tão ténue a fronteira entre a esperança e o fracasso, entre a sobriedade e a falta de objectivos na vida. Tão depressa se pode ser alguém como ir parar a uma valeta... Ao percorrer aqueles metros e depois de três cervejas percebi que somos tão vulneráveis e dependentes dos outros e se nos falta uma mão, somos capazes de nos perdermos.

Apanhei o autocarro que passou naquele momento e fugi dali. Cheguei a casa da RM&P tão à rasquinha que devia ter a bexiga próxima do colapso.

Elas finalmente compraram uma televisão. Vimos os Simpsons e a entrega dos Grammys... Deitei-me tarde.



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